Luto da Família Silva
Rubem Braga
Assistência
foi chamada. Veio tinindo. Um homem estava morto. O cadáver foi removido para o
necrotério. Na seção dos “Fatos Diversos” do Diário de Pernambuco, leio o nome
do sujeito João da Silva. Morava na Rua da Alegria. Morreu de hemoptise.
João da Silva
– Neste momento em que seu corpo vai baixar à vala comum, nós, seus amigos e
seus irmãos, vimos lhe prestar esta homenagem. Nós somos os Joões da silva. Nós
somos os populares Joões da Silva. Moramos em várias casas e em várias cidades.
Moramos principalmente na rua. Nós pertencemos, como você, à família Silva. Não
é uma família ilustre; nós não temos avós na história. Muitos de nós usamos
outros nomes, para disfarce. No fundo, somos os Silva. Quando o Brasil foi
colonizado, nós éramos os degredados. Depois fomos os índios. Depois fomos os
negros. Depois fomos imigrantes, mestiços. Somos os Silva. Algumas pessoas
importantes usaram e usam nosso nome. É por engano. Os Silva somos nós. Não
temos a mínima importância. Trabalhamos andamos pelas ruas e morremos. Saímos
da vala comum da vida para o mesmo local da morte. Às vezes, por modéstia, não
usamos nosso nome de família. Usamos o sobrenome de Tal”. A família Silva e a
família “de Tal” são a mesma família. E, para falar a verdade, uma família que
não pode ser considerada boa família. Até as mulheres que não são de família
pertencem à família Silva.
João da Silva
– Nunca nenhum de nós esquecerá seu nome. Você não possuía sangue-azul. O
sangue que saía de sua boca era vermelho – vermelhinho da silva. Sangue de nossa
família. Nossa família, João, vai mal em política. Sempre por baixo. Nossa
família, entretanto, é que trabalha para os homens importantes. A família
Crespi, a família Matarazzo, a família Guinle, a família Rocha Miranda, a
família Pereira Carneiro, todas essas famílias assim são sustentadas pela nossa
família. Nós auxiliamos várias famílias importantes na América do Norte, na
Inglaterra, na França, no Japão. A gente de nossa família trabalha nas
plantações de mate, nos pastos, nas fazendas, nas usinas, nas praias, nas
fábricas, nas minas, nos balcões, no mata, nas cozinhas, em todo lugar onde se
trabalha. Nossa família quebra pedra, faz telhas de barro, laça os bois,
levanta os prédios, conduz as bondes, enrola o tapete do circo, enche os porões
dos navios, conta o dinheiro dos Bancos, faz os jornais, serve no Exército e na
Marinha. Nossa família é feito Maria Polaca: faz tudo.
Apesar disso,
João da Silva, nós temos de enterrar você é mesmo na vala comum. Na vala comum
da miséria. Na vala comum da glória, João da Silva. Porque nossa família um dia
há de subir na política…
[Ilustração: Pablo Picasso]
.
O sentido dos fatos em poucas palavras https://bit.ly/3n47CDe
Nenhum comentário:
Postar um comentário