A dança do poder
Ronaldo Correia de Brito, em seu site
No balé Clitemnestra,
da coreógrafa americana Martha Graham, há uma passagem que me marcou,
retornando sempre às minhas reflexões sobre o poder. Vocês lembram a tragédia
grega. Agamêmnon, irmão de Menelau e cunhado de Helena, assume o comando dos
gregos, na guerra contra Troia. Ao chegarem à baia de Áulis, de onde partirão
os navios, o rei comandante se ocupa a maior parte do tempo em caçadas.
No seu afã de caçador,
Agamêmnon abate uma cerva consagrada à deusa virgem Ártemis. Enfurecida com o
mortal, a deusa manda baixar uma calmaria sobre o oceano e os gregos não têm
como partir, por falta de ventos que inflem as velas das embarcações.
Consultam o oráculo e a
sentença não poderia ser mais cruel: os ventos retornarão se o rei sacrificar
sua filha mais velha, Ifigênia. Agamêmnon manda buscar a jovem, mentindo que
irá casá-la com Aquiles. A inocente moça chega na companhia da mãe
Clitemnestra, que desconhecia a trama do marido. Ao descobrir a cilada, ela faz
todos os esforços para salvar a filha, mas não consegue evitar o revoltante
sacrifício.
O vento sopra, os gregos partem
e combatem durante dez anos às portas de Troia. Quando Agamêmnon volta para
casa, a rainha tinha colocado um amante no leito do esposo.
A dança de Martha Graham é
arrepiante. A rainha Clitemnestra, obcecada pelo desejo de vingar a filha,
trama a morte do marido. Ela e o amante Egisto decidem assassiná-lo e se
apoderarem do trono de Micenas. Agamêmnon trouxera como presa de guerra a
princesa Cassandra, filha do rei troiano Príamo, que tinha o dom de prever o
futuro. Mas sobre ela pesava uma maldição de que ninguém acreditaria em suas
profecias. Cassandra adverte o rei sobre a trama que o levará à morte, mas ele
não crê em suas palavras.
A cena que tanto me marcou é a
seguinte: Clitemnestra finge alegria com o retorno do marido e lhe prepara um
banho. Enquanto ele se entrega ao deleite, a rainha o mata com um punhal.
Transtornada de poder e sangue, ela joga sobre as costas o manto do rei e
caminha com ele pelo palácio.
O Destino, representado por um
bailarino de estatura descomunal, realçada pelos coturnos do teatro grego, põe
o cajado sobre o manto que a rainha enverga e ele cai no chão. A realeza se
esvai. O espectador estremece diante da representação de quanto é fugaz o poder
humano. Não há texto, apenas um cajado que prende o manto ao chão, tirando da
rainha o amparo de um símbolo antigo de poder.
Clitemnestra é morta pelos dois
filhos, Orestes e Electra, que vingam o pai. Tocada pela tragédia da rainha
infeliz, Martha Graham imaginou um final feliz, em que mãe e filhos se
reconciliam e são perdoados pelos deuses.
Não sei que deuses nos
perdoarão a vaidade e o desejo de poder. Sei que todas as vezes em que me deixo
contaminar por essa quimera, O Destino, que nunca descansa nem fecha os olhos,
atua com uma precisão absoluta. O barulho da queda do manto eu escuto nos
sintomas de uma gripe, numa dor de coluna, num transtorno qualquer da saúde.
As doenças, as calamidades, as
guerras e a morte estabelecem limites ao poder dos homens. São a prova de nossa
fragilidade, nos advertem a avaliar melhor os grandes feitos e o esforço em
realiza-los. É necessário não perder a medida das coisas. Como está escrito no
Tao: quem se ergue na ponta dos pés, não pode ficar por muito tempo.
.*Médico, dramaturgo, escritor
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