O DESMATAMENTO SEGUNDO BOLSONARO
Burocratas
de órgão recém-criado pelo governo vão analisar em quais áreas a floresta foi
derrubada de modo legal ou ilegal – mas sem consultar cientistas especializados
no assunto
Bernardo Esteves, revista piauí
O governo brasileiro
criou na semana passada um órgão com a missão de fazer a revisão dos números de
desmatamento e incêndios gerados pelo Inpe, o Instituto Nacional de Pesquisas
Espaciais. A Câmara Consultiva Temática vai “qualificar os dados” e determinar
quais áreas foram desmatadas legal e ilegalmente, conforme estabeleceu uma resolução publicada
na última quinta-feira (2/6) no Diário Oficial da União.
A nova câmara terá
representantes de cinco ministérios: Meio Ambiente, Agricultura, Defesa,
Economia e Justiça. O Ministério da Ciência, ao qual está vinculado o Inpe,
ficou de fora. Na prática, a medida exclui o instituto, responsável desde os
anos 1980 pelo cálculo da taxa oficial de desmatamento da Amazônia, do processo
que vai determinar os números de desmatamento ilegal que serão considerados
válidos pelo governo.
A legislação ambiental
prevê casos em que um proprietário pode desmatar suas terras. Em propriedades
rurais situadas na Amazônia, os produtores são obrigados por lei a manter 80%
da floresta de pé (na prática, a maior parte das propriedades se enquadra em
exceções a essa regra, conforme mostrou um levantamento encomendado
pela piauí). A possibilidade do
desmatamento legal às vezes é usada como uma cortina de fumaça para
relativizar os indicadores muito negativos alcançados no governo de Jair
Bolsonaro. A taxa de desmatamento já vinha crescendo nos governos de Dilma
Rousseff e Michel Temer, mas sob Bolsonaro atingiu um patamar que não se via
desde 2006 – no ano passado chegou a 13,2 mil km2 de corte raso da floresta.
Mas
o desmatamento legal corresponde apenas a uma fração muito pequena da área
derrubada, conforme mostra o levantamento feito pelo MapBiomas, uma rede de
organizações da sociedade civil, universidades e empresas de tecnologia. Essa
iniciativa faz o cruzamento dos dados de desmatamento com autorizações legais
de derrubada e registros de multas, e divulga os resultados na
internet. O coordenador do MapBiomas, o engenheiro florestal Tasso Azevedo,
disse que apenas de 1% a 2% da área desmatada na Amazônia tem autorização legal.
“O Brasil tem
monitoramento sofisticado, a cargo do Inpe, e tecnologia para diferenciar
atividades legais de ilegais quando se foca desmatamento”, disse a advogada
Suely Araújo, ex-presidente do Ibama que atua como especialista sênior em
políticas públicas do Observatório do Clima. Além do MapBiomas, ela citou o
Sinaflor, um sistema operado pelo Ibama desde 2018. “O governo Bolsonaro
deveria respeitar o conhecimento técnico existente no país e deixar os órgãos
ambientais trabalharem.”
A criação de um órgão para
qualificar os números de desmatamento levantou em ambientalistas a suspeita de
que ele possa ser usado para maquiar dados de desmatamento negativos para o
governo. Não é a primeira investida do
governo contra o Inpe. Em 2019, Bolsonaro disse que os números de desmatamento
eram mentirosos e que o instituto estava agindo “a serviço de alguma ONG”, num
episódio em que ele acabou por cobrar do ministro Marcos Pontes a cabeça do
então diretor do instituto, o físico Ricardo Galvão. O presidente deixou claro
que gostaria de ter visto os números antes da sua divulgação. “Não posso ser
pego de calças curtas”, disse.
O cientista da
computação Gilberto Câmara, ex-diretor do Inpe, se disse preocupado com a
criação da nova câmara, mas acredita que a natureza técnica do trabalho do
instituto o blinda dos ataques do governo. “Para manipular os dados é preciso
um mínimo de competência”, afirmou o cientista. “Órgãos do Estado cuja ação
depende da competência tecnológica são mais resilientes às intervenções de um
governo populista do que aqueles cuja ação não depende tanto da qualificação dos
quadros.”
O órgão que vai
qualificar os dados de desmatamento é, na verdade, a reformulação de uma câmara
instituída numa resolução de dezembro de 2021. Foram alterados o seu objetivo e
a sua composição: entraram os ministérios da Economia e da Justiça, e saíram o
Ibama e o ICMBio, as duas autarquias responsáveis pela fiscalização ambiental.
“Foram tiradas da discussão os pontos focais do combate ao crime ambiental”,
disse o advogado Fábio Ishisaki, coordenador jurídico do Política por Inteiro,
iniciativa que monitora políticas públicas ambientais. “Não faz sentido dizer
que vai qualificar [os dados de desmatamento]
e excluir os órgãos ambientais da comissão”, completou Tasso Azevedo.
Veja: A
mentira o desgasta e enfraquece; mas o mantém conectado à sua base https://t.co/Dp8f13AzZ4
A piauí questionou
o Ministério do Meio Ambiente sobre o que se entendia por “qualificação dos
dados de desmatamento e incêndios”, e perguntou ainda por que Inpe, Ibama e
ICMBio não estão representados na câmara recém-instituída. O ministério
respondeu com uma nota que não esclareceu nenhuma dessas questões, e não
atendeu a um pedido de mais informações. Leia a íntegra da nota do MMA:
“O Ministério do Meio
Ambiente esclarece que a Resolução Nº 11, de 25 de março de 2022, prevê a
qualificação dos dados publicados e já fornecidos pelo INPE, por isso, a Câmara
Consultiva é composta por órgãos que possuem outras bases de dados: CENSIPAM
(Ministério da Defesa), Polícia Federal (Ministério da Justiça e Segurança
Pública), INCRA e SFB (Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento) e
Secretaria de Governo Digital (Ministério da Economia). Cabe destacar ainda que
a composição da Câmara Consultiva Temática fora aprovada em colegiado
estabelecido pelo Decreto Nº 10.142, de 28 de novembro de 2019.”
.
Programa de Lula em debate https://bit.ly/3trR3UK
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