Assim se converte a
Saúde em produto financeiro
Uma
série de pesquisas inovadoras e um debate expõem em profundidade o processo
pouco compreendido de financeirização da Saúde brasileira. Como ela avançou? De
que modo apropria-se do SUS? Quais as alternativas?
Gabriela Leite, OutraSaúde
O que é a financeirização da Saúde? Como
ela avança, no mundo e no Brasil? Um conjunto de trabalhos publicados nos Cadernos de Saúde Pública – edição 38, volume 2 – busca
expor este processo, que se relaciona com a privatização, mas é mais profundo.
Onde antes havia empresas médicas e associações filantrópicas, ocupando espaços
abertos pelos vazios assistenciais do SUS, surgiu um novo cenário. Mega-grupos
corporativos , sem rosto – porque compostos em grande parte por fundos que
administram riquezas de bilionários e de “investidores institucionais” – veem a
medicina privada como um negócio a mais em seu “portfólio” de aplicações.
Querem estabelecer o reino da saúde-mercadoria, mas para isso apropriam-se dos
recursos do SUS e do Estado brasileiro. Alguns dos pesquisadores que coordenam
as pesquisas recém-relatadas falaram a respeito numa edição do ciclo de debates do
programa Saúde Amanhã, conduzida por José Noronha, e
comentada pela economista Sulamis Dain (UERJ).
Lígia Bahia (UFRJ) Mário Scheffer (USP) Mário Dal Poz (UERJ) Cláudia
Travassos (Fiocruz), analisaram seis setores da saúde privada: hospitais,
escolas médicas, farmácias, empresas de diagnóstico e terapia, planos de saúde
e Organizações Sociais de Saúde (OSSs). Sua metodologia incluiu a criação de um
banco de dados pioneiro. Nos seis setores examinados, selecionaram-se as dez
empresas e três redes com maior faturamento. E analisaram-se seus impactos na
saúde brasileira.
Lígia listou algumas das observações centrais do processo de
financeirização das últimas décadas: a saúde privada agigantou-se. As empresas
nasceram pequenas e descapitalizadas, mas tornaram-se mais fortes, fundiram-se
em grupos maiores e conseguiram atrair investimento mesmo em momentos de crise
financeira. A maior concentração de capital está entre os planos de saúde.
Cláudia Travassos apontou, por sua vez, algumas características do processo de
financeirização da saúde brasileira: a formação de oligopólios; a
diversificação e expansão de outras áreas – como a Educação privada; o
crescimento dos hospitais filantrópicos ligados à aliança Proadi (como o
Hospital Albert Einstein e o Sírio-Libanês); e um foco das empresas no mercado
de consumidores de alta renda.
A pesquisadora compara a situação com os Estados Unidos, país que parece
ser modelo para a saúde-mercadoria brasileira: quanto mais aumenta o poder de
mercado de algumas empresas, mais crescem os gastos dos norte-americanos – o
que causa grande estratificação social e larga diferenciação entre a saúde
pública e a privada. “Em uma ponta, encontra-se a elite que pode pagar; na
outra, uma oferta de serviços de má qualidade e desatualizados.” Esse modelo
reflete-se na visão brasileira de que o SUS deve ser um sistema para os pobres.
Mario
Dal Poz aprofundou a discussão expondo a questão do ensino privado de saúde.
Sua pesquisa acompanhou a privatização das escolas médicas nos últimos anos. É
um processo global, segundo ele, que na América Latina acontece com mais
intensidade no Brasil, Chile e Colômbia. Desde o começo dos anos 1960 a criação
de novos cursos de medicina privados se dá com muito mais intensidade do que a
de escolas públicas – e estão mais concentradas na região sudeste. Entre 2000 e
2018, período que a pesquisa compreende, o número da oferta de vagas saltou
321%. E por quê? O pesquisador observou a mesma tendência de concentração de
oferta em grandes grupos educacionais, com fundos de investimento entre seus
acionistas.
Mário
Scheffer resumiu a importância desse conjunto de pesquisas inovadoras que
apresentam um retrato do setor privado. “Entender a dinâmica do mercado de
saúde é fundamental para compreendermos o funcionamento e os rumos do sistema
de saúde no Brasil”, reflete ele. “Já há algum tempo”, continua, “vínhamos
registrando esse movimento de formação de grandes grupos econômicos por meio de
fusões e aquisições, abertura de capital, maior volume de financiamento,
empréstimos, crédito privado e público – mesmo para setores que não atendem o
SUS”.
Os
pesquisadores expuseram, no conjunto de suas falas, uma preocupação central:
qual o impacto desse processo no sistema público de Saúde? Scheffer ofereceu
alguns números: apenas as 20 maiores empresas de diferentes setores faturam,
juntas, mais de 120 bilhões de reais por ano – pouco menos que o orçamento do
ministério da Saúde para 2023, estimado em R$ 146,4 bi. Não foi sempre assim,
alertou o pesquisador, e é preciso atentar ao fato de que esse crescimento só
aconteceu ancorado pelo SUS. “Ele não é mais visto como ameaça, mas como
oportunidade”, alertou. Como aconteceu na pandemia, quando o sistema único
sustentou e garantiu um mínimo de segurança sanitária, e as empresas de planos
de saúde lucraram como nunca…
O
debate teve as considerações preciosas de Sulamis, que iniciou sua fala
reforçando a ideia de Scheffer de que o Estado “continua absolutamente decisivo
para manter e subsidiar o setor privado, dando ossatura a esses novos grupos
através de renúncia de arrecadação, créditos, aporte de recursos fiscais
diretos e subsídios”. A economista elogiou o esforço conceitual, metodológico e
de pesquisa dos cientistas, que oferece um outro olhar sobre a desigualdade na
Saúde brasileira.
Sulamis
vê uma saída, uma “peça essencial para ruptura e transformação desse cenário”:
o Complexo Econômico-Industrial de Saúde, que só poderá existir com a garantia
de um SUS fortalecido, que seja o centro do processo de transformação. Ela se
apoia na observação de que o velho neoliberalismo está em xeque, em especial
após a pandemia, com o rompimento dos paradigmas da política fiscal tanto nos
Estados Unidos quanto na Europa, que mostraram que o gasto social é essencial
para conter crises. Sulamis se envergonha ao constatar que, no Brasil, em plena
campanha eleitoral, ainda se debate “teto de gastos”…
Para superar essa fase, a professora resgata o pensamento da pensadora italiana
Mariana Mazzucato e sua “economia das missões sociais”. Segundo ela, é preciso que
haja grandes objetivos de transformação para que a sociedade se articule e se
mobilize para a mudança – que só virá com forte investimento do Estado em
projetos sustentáveis e inovadores. Sulamis acredita que é o momento de a Saúde
se alinhar a um novo propósito que seja refundador da saúde pública e do Estado
brasileiro. Esse novo propósito pode ser o Complexo Econômico-Industrial de
Saúde.
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