POR QUE BOLSONARO É INCANCELÁVEL
Como
os conservadores, que defendem valores familiares tradicionais, se encantaram
com um homem agressivo e desrespeitoso
Pablo Ortellado e Marcio
Moretto, revista Piauí
Como é que um homem sórdido,
abjeto e indecoroso como Jair Bolsonaro se tornou a principal liderança do
conservadorismo brasileiro? Como é que conservadores, que defendem a decência e
os valores familiares tradicionais, se encantaram com um homem agressivo, bruto
e desrespeitoso? O estranhamento não é só brasileiro. Os americanos também se
perguntam como os conservadores de lá puderam se deixar seduzir por Donald
Trump, que tem os mesmos vícios. Enquanto os brasileiros se perguntam como seus
conservadores podem admirar um homem que diz que usava verba de gabinete “para
comer gente”, os americanos se questionam como seus conservadores podem
respeitar um homem que disse que certas mulheres “pegamos pela boceta”. A
explicação parece estar na cultura do cancelamento e do politicamente correto
que os conservadores tão ardentemente repudiam.
O politicamente correto
“Politicamente correto” é uma expressão pejorativa adotada pelos críticos para se referir às salvaguardas da linguagem e do comportamento que deveriam ser adotadas para proteger os oprimidos. O politicamente correto é visto pelos conservadores como uma opressão porque estigmatizaria como más ações ordinárias e aparentemente inofensivas das pessoas comuns. E, para os conservadores, que cultivam tão zelosamente os valores morais, é especialmente ofensiva a acusação de serem maus. A literatura conservadora sobre o politicamente correto é caudalosa, mas se precisamos começar por algum lugar deve ser por Olavo de Carvalho, cuja projeção sobre o conservadorismo brasileiro é inconteste. Em um artigo de 2006 no Jornal do Brasil ele diz o seguinte:
O código politicamente correto esmaga as normas baseadas na tradição religiosa e no hábito consagrado, colocando em seu lugar, com a brutalidade dos decretos inexoráveis, um sistema de cobranças artificiosas inspiradas em valores paradoxais como a empáfia feminista, o exibicionismo gay, o ódio racial e político, a rejeição pueril das responsabilidades da gravidez – tudo isso impingido como alta e irrecorrível obrigação moral.[1]
Num livro (2) em que apresenta a trajetória do seu pai, descrito como
“fenômeno ignorado”, Eduardo Bolsonaro dá grande destaque ao fato de Jair
Bolsonaro ter desafiado as normas opressivas do politicamente correto. De
maneira parecida com Olavo, diz que o politicamente correto impõe ideias
“insanas e disparatadas” fazendo as pessoas agirem permanentemente de forma
artificial, “como se fossem políticos tradicionais em campanha, sempre
sorrindo”. Segundo essa “antessala da loucura”, ninguém mais seria “normal”,
seria como se “ninguém tivesse falhas”.
No discurso das lideranças conservadoras, essas normas politicamente
corretas são um ardil e um complô do progressismo para dominar a população por
meio das instituições culturais. Mas não precisamos aderir à teoria da
conspiração para entender o apelo do discurso antipoliticamente correto junto
ao público conservador. A linguagem “politicamente correta” do progressismo é
com frequência considerada exagerada e hipersensível pelos conservadores. A
linguagem neutra, a crítica às microagressões e ao racismo estrutural são
denunciadas como excessos ridículos e como uma hiperfragilidade dos
progressistas. A expressão “floquinho de neve” é empregada no meio conservador
para indicar essa sensibilidade excessiva que se deixa ofender pelas coisas
mais tolas.
Leia também: Incômodas verdades de um boquirroto https://bit.ly/3MCEdLA
É especialmente repudiada pelos conservadores a condenação por atos
involuntários, como quando, por exemplo, os progressistas consideram racismo o
emprego inadvertido de uma expressão como “denegrir” ou “mercado negro”. Como o
uso da expressão é inadvertido e não tem intenção racista, receber a pecha de
“racista” é considerado, por um lado, um exagero ridículo, mas, por outro, é
considerado ofensivo, já que o racismo é abominável. A gramática moral
progressista imputa uma pesada condenação a um ato involuntário, subvertendo o
princípio moral das pessoas comuns segundo o qual a ausência de intenção
funciona como atenuante.
A
gramática moral dos movimentos identitários é completamente estranha para
grande parte da população. Qualquer pessoa com mais de 30 anos que não tenha
passado por espaços de socialização nos quais esses códigos estão em vigor,
como universidades públicas ou grupos feministas, quase certamente não os
domina. O ressentimento contra o politicamente correto advém, por um lado, do
conflito entre a gramática moral dos movimentos identitários e a moral ordinária
das pessoas comuns. Mas ele é também intensificado pelas mídias sociais. Para
entender como os novos meios de comunicação impactam o conflito moral entre
conservadores e progressistas é necessária uma pequena digressão teórica.
O colapso dos contextos
Em seu trabalho mais influente, A representação do eu na vida cotidiana (1959), o sociólogo Erving Goffmann se dedicou a estudar a interação face a face como uma performance teatral. Cada interação presencial estabeleceria um contexto que funcionaria como um cenário no qual as pessoas atuariam, desempenhando papéis. Os indivíduos em um contexto provocam impressões nos demais tanto ao transmitir conscientemente uma expressão quanto ao emiti-la inconscientemente. Essa capacidade de assumir diferentes papéis em diferentes contextos permite que, por exemplo, uma mesma pessoa se apresente como séria e respeitável no ambiente de trabalho, como divertida e engraçada num bar com amigos e como terna e carinhosa em casa com os filhos.
Os contextos estudados por Goffmann se restringem aos limites espaciais, aos lugares onde ocorrem. Enquanto certo contexto se estabelece na sala de jantar, outro se estabelece na cozinha. Seguindo o vocabulário do sociólogo, a cozinha e o banheiro seriam os bastidores nos quais as pessoas se preparam para atuar no palco, nesse caso representado pela sala de jantar.
A delimitação das fronteiras físicas entre diferentes contextos teria mudado profundamente com a difusão dos meios de comunicação eletrônicos. Essa é a tese do livro No sense of place (1985) do professor de comunicação Joshua Meyrowitz. Escrito nos anos 1980, o livro investiga como os meios eletrônicos, especialmente a televisão, minam a relação tradicional entre localidade e o contexto social. Isso ocorre porque a câmera captura tanto as expressões transmitidas intencionalmente quanto as emitidas involuntariamente, permitindo que mesmo pessoas ausentes fisicamente possam ser impressionadas por uma atuação. Em outras palavras, os meios eletrônicos embaralham os contextos permitindo trazer ao palco aquilo que era bastidor.
Para ilustrar os efeitos desse fenômeno provocado pelos meios eletrônicos, Meyrowitz conta como o acesso à televisão atrapalhou a estratégia de comunicação do líder do movimento Black Power, Stokely Carmichael, nos Estados Unidos dos anos 1960. Carmichael adotava dois discursos diferentes em suas palestras presenciais: um para o público negro que precisava mobilizar, outro para o público branco que apoiava a integração racial. Quando ganhou projeção política e seus discursos passaram a ser televisionados, ele teve que escolher se usava o discurso militante para o público negro ou o discurso moderado voltado para os apoiadores brancos, já que, na tevê, ele perdia o controle do contexto. Quando escolheu manter o discurso inflamado e militante, “encheu seu público secundário com ódio e medo e provocou a ira da estrutura do poder branco”.[3]
Nos anos 1980, os efeitos desse colapso de contextos eram experimentados apenas por pessoas públicas com acesso aos meios de comunicação de massa, como Carmichael. Como notou a socióloga americana danah boyd[4], junto com a popularização da internet, dos smartphones, e finalmente das mídias sociais, essa dinâmica se expandiu para um público mais amplo. O gerenciamento das impressões é bem mais difícil nas mídias sociais, por conta de uma arquitetura que favorece o “colapso contextual”.
Leia também: Fake news sobre urnas,
pesquisas e TSE dominam retórica da mentira https://bit.ly/3BQHoup
Como
no Twitter ou no Facebook as postagens não podem ser facilmente direcionadas
para um determinado público (apenas amigos de infância ou apenas colegas de
trabalho), quem publica não consegue controlar o contexto no qual as mensagens
serão recebidas. Assim, por exemplo, uma postagem divertida, retratando uma
noite de bebedeira com os amigos, pode causar uma má impressão quando for
recebida por um colega no trabalho. Falando em linguagem goffmaniana: com o
colapso de contexto, os usuários de mídias sociais têm grande dificuldade em
administrar as personas que precisam adotar
em cada cenário.
O cancelamento
Essa situação permanente na qual os
contextos se embaralham e colapsam nas mídias sociais permitiu a ativistas dos
movimentos identitários desenvolver uma estratégia política de denúncia que
ficou conhecida como “cancelamento” – uma punição que consiste em uma espécie
de boicote social no qual uma pessoa denunciada por condutas condenáveis é
publicamente difamada e perde seguidores, apoiadores e visibilidade pública. A
denúncia consiste em expor uma conduta condenável deslocando-a de contexto. Uma
comunicação pessoal, um tuíte antigo ou uma foto privada, quando trazidas para
a esfera pública, romperiam a máscara de civilidade, expondo o machismo ou o
racismo do denunciado.
A cultura do cancelamento é fruto de pelo menos três fatores. Em
primeiro lugar, a ampliação do uso de mídias sociais que dificultam o controle
do contexto na emissão de mensagens. Em segundo lugar, uma cultura ativista que
politizou as relações interpessoais nas dimensões de gênero, raça e
sexualidade, no espírito do slogan “o pessoal é político”. Finalmente, o uso
estratégico da “exposição” como ferramenta de denúncia da opressão.
Essas características do cancelamento são fáceis de ver quando olhamos
para um caso concreto. Em fevereiro de 2022, o influenciador e deputado
estadual de São Paulo Arthur do Val anunciou que iria para a Ucrânia em missão
humanitária para “mostrar aos brasileiros a realidade da guerra”,
contrapondo-se à postura de neutralidade que o presidente Jair Bolsonaro tinha
adotado no conflito. Ele arrecadou 180 mil reais para a compra de mantimentos e
suprimentos para os refugiados e para apoiar o exército ucraniano. Quando
retornava para o Brasil, já no começo de março, uma reportagem no site Metrópoles expôs
áudios que Do Val enviou para um grupo de amigos no WhatsApp descrevendo as
mulheres que havia encontrado na Ucrânia. Entre outras coisas, ele dizia que “a
fila das refugiadas” “só tem deusa” e que elas “são fáceis porque são pobres”.
O choque entre a natureza humanitária da viagem, em contexto de guerra,
e o conteúdo do áudio que degradava as mulheres refugiadas causou grande
impacto. Arthur do Val era pré-candidato ao governo de São Paulo, com cerca de
2% de intenção de votos, e precisou renunciar a sua candidatura a governador e,
depois, a seu mandato de deputado estadual. Mesmo assim, foi cassado e perdeu
os direitos políticos. Ele também precisou se desfiliar do partido Podemos e
perdeu o apoio político do ex-juiz Sérgio Moro e do então governador de São
Paulo João Doria. Nas mídias sociais, perdeu 53 mil seguidores.
Do Val argumentou que “houve um mal-entendido” e que as “pessoas estão
misturando os áudios com outro contexto”. Disse ainda: “Fui para fazer uma
coisa, mandei um áudio infeliz, e a impressão que passou é que fui fazer outra
coisa.” Disse, por fim, que “uma coisa é o Arthur que
foi lá fazer a missão. Outra coisa é o Arthur que já tinha saído e mandou um
áudio em grupo privado, para os amigos dele.” Do Val alega que o escândalo
advinha da descontextualização do áudio. O áudio não seria voltado para a
esfera pública, mas para um grupo restrito, falando de um tema privado, de uma
forma descontraída, entre amigos.
O que houve, efetivamente, foi uma mudança deliberada do contexto do
áudio para expor o machismo do deputado, como já havia sido feito em muitos
outros casos de cancelamento. Os cancelamentos se aproveitam das possibilidades
de registro da comunicação digital e deliberadamente rompem as barreiras de
contexto para expor comportamentos considerados inadequados na esfera pública
política. Ao trespassar os contextos, os cancelamentos retirariam as máscaras
de civilidade, expondo e denunciando comportamentos opressivos como se fossem
uma verdade escondida pelo jogo cínico e artificial dos bons modos.
Um político “autêntico”
Após a digressão, podemos retomar
nossa questão inicial: por que os conservadores adotaram como seu líder um
político de má conduta, vil e abjeto? A resposta é que Bolsonaro é visto como
um ator político corajoso, “autêntico”, que desrespeita tão abertamente as
opressivas normas de comportamento do politicamente correto que não pode ser
cancelado, porque, por detrás de sua máscara de persona, não há nada de pior a
ser encontrado. Bolsonaro é um campeão da causa conservadora que quer moralizar
a política, mas não aceita se submeter aos ditames morais dos movimentos
identitários que tentam transformar conservadores em pessoas más, machistas,
homofóbicas e racistas.
No livro de Eduardo Bolsonaro, que citamos no começo do artigo, o
politicamente correto é apresentado com uma grande opressão que impele as
pessoas a agirem de forma artificiosa, fingindo respeitar regras “insanas” e
“disparatadas”. Pessoas comuns seriam levadas a agir como “políticos
tradicionais em campanha”, com um comportamento falso, artificioso, fingido,
“como se ninguém mais fosse normal”. Então, segue o autor, “quando chega uma
pessoa normal”, falando “as verdades mais básicas”, essa pessoa “passa a ser
uma possibilidade de salvação.”
Para esse núcleo conservador, Bolsonaro aparece como um ator político
corajoso, autêntico e verdadeiro que se propõe a desafiar as regras morais
absurdas e enfrentar, sem medo, o risco de cancelamento, transformando-se num
herói do povo, um verdadeiro “salvador”. Rapidamente, Bolsonaro começa a
apresentar sua principal virtude como a de ser autêntico, isto é, de ser alguém
que é idêntico a si mesmo, alguém sem máscara. A campanha de Bolsonaro adota
como o slogan um versículo do evangelho de João, “Conhecereis a verdade, e a
verdade vos libertará.” (João 8:32) O trecho é interpretado na campanha ora
como a determinação de não se submeter às crenças e asserções impostas pelo
establishment, ora como a não submissão aos maneirismos e artificialismos do
politicamente correto.
Nenhum episódio demonstra melhor a força política desta postura de
autenticidade do que a revelação do vídeo da reunião ministerial de 22 de abril
de 2020. Em abril de 2020, Sergio Moro se demitiu do cargo de ministro da
Justiça alegando que havia sido pressionado por Bolsonaro para intervir na
Polícia Federal para impedir uma investigação sobre os filhos do presidente.
Moro denunciou que numa reunião ministerial gravada, Bolsonaro teria feito uma
alusão direta à intervenção. Depois de um mês de controvérsia, o ministro do
STF Celso de Melo retirou o sigilo sobre a gravação da reunião ministerial,
autorizando a divulgação do vídeo. A intervenção de Bolsonaro pedindo
interferência na Polícia Federal era um tanto ambígua, mas o restante da gravação
revelava os bastidores do governo. Por cerca de duas horas o vídeo mostrava Bolsonaro sendo Bolsonaro:
Eu não vou esperar o barco começar a afundar pra tirar água. Estou
tirando água, e vou continuar tirando água de todos os ministérios no tocante a
isso. A pessoa tem que entender. Se não quer entender, paciência, pô! E eu
tenho o poder e vou interferir em todos os ministérios, sem exceção!
Olha como é fácil impor uma ditadura no Brasil. Como é fácil. O povo tá
dentro de casa. Por isso que eu quero, ministro da Justiça e ministro da
Defesa, que o povo se arme! Que é a garantia que não vai ter um filho da puta
aparecer pra impor uma ditadura aqui! Que é fácil impor uma ditadura! Facílimo!
Um bosta de um prefeito faz uma bosta de um decreto, algema, e deixa todo mundo
dentro de casa. Se tivesse armado, ia pra rua!
Por um momento, a oposição celebrou que as entranhas do governo
finalmente estavam expostas. O público poderia ver a crueldade, a falta de
sensibilidade e a brutalidade do governo Bolsonaro em toda a sua verdade. Mas,
apesar da agitação na imprensa, a população não pareceu impressionada. Bolsonaro,
afinal de contas, estava sendo apenas ele mesmo: o homem do povo, meio
grosseiro, que dizia, sem papas nas línguas, as verdades inconvenientes ao
establishment e que não se submetia aos ditames do politicamente correto. Onde
a oposição via denúncia, os apoiadores viam a confirmação de que, longe da
imprensa, Bolsonaro era o homem autêntico em quem tinham votado. Nenhuma
revelação poderia ser mais chocante do que tudo que já havia sido dito em
público. Sob a máscara pública da indecência, que atitude surpreendente poderia
ser encontrada? Bolsonaro é incancelável. [Ilustração: Céllus]
[1] Olavo de Carvalho. “A guerra dos vestais”. Jornal
do Brasil, 24/08/2006.
[2] Eduardo Bolsonaro e Mateus Colombo Mendes. Jair
Bolsonaro: o fenômeno ignorado. Campinas: Vide
editorial, 2022.
[3] Joshua Meyrowitz. No
Sense of Place: The Electronic Media on Social Behavior.
Oxford University Press, 1985, p. 43.
[4] danah doyd. It’s
Complicated: The Social Life of Networked Teens. Yale
University Press, 2014.
Leia também: Milícias não são Estado paralelo, propagam-se por ele, na promiscuidade entre polícias e grupos paramilitares https://bit.ly/3DGHSWk
Nenhum comentário:
Postar um comentário