É nós na fita
Cicero Belmar*
Hoje,
um dia depois de irmos às urnas para escolher o presidente da República, a
sensação que me restou foi de ter sido testemunha da história, além, é claro,
eleitor. Toda a campanha eleitoral, que antecedeu o momento do voto, me trouxe
o sentimento de que estava sobrevivendo a fatos, situações e circunstâncias que
serão contadas em livros futuros. Igual ao que ocorreu com os movimentos pelas
redemocratização, anistia dos exilados e Diretas Já.
Todos fizemos história. Somos
nós na fita da história. Vivi cada instante sabendo a importância do tempo
presente no exato momento em que os fatos aconteciam. E esta percepção, esta
clareza do que eu representava como agente e cidadão, foi a responsável por uma
disposição à ansiedade, ao medo dos resultados, e também a uma responsabilidade
misturada com esperança. Falo em primeira pessoa porque só posso exprimir a
minha experiência pessoal e intransferível. A experiência de cada pessoa é
vivida de forma diferente e esta foi a minha.
Faço esse registro porque não é
sempre que tenho, no calor da emoção, a consciência objetiva do aqui e agora.
Mas, nesses dois últimos meses, quando a campanha pegou fogo, eu às vezes me
perguntava: como seremos vistos pela análise dos sociólogos e cientistas políticos
que vão nos avaliar daqui a anos? Afinal, somente a distância dos fatos
permitirá uma análise imparcial da sua dimensão.
Quando falo momento histórico
não me refiro somente ao resultado das urnas que, a estas alturas, todos já
sabemos. Mas, por todo o processo histórico acumulado, pelo que passamos
juntos, pelos choros e pelos risos, pelo que protagonizamos ou que assistimos
neste e nos anos anteriores. O hoje é um processamento de decisões tomadas no
passado.
Uma coisa é certa: quando as
paixões esfriarem, quando tudo o que restar for memória e palavras, seremos
vistos como personagens coletivas deste momento. Então, teremos um único nome.
A história vai nos reunir numa classificação, apesar de nossa polarização, e os
analistas vão nos chamar apenas de “povo brasileiro”.
Para
além dessa sensação de estarmos dentro da história, outra curiosidade me
ocorreu durante a campanha. Foi, sem ironia alguma, a constatação de que a vida
é, de fato, uma mutação constante. Observei muitas pessoas, candidatos e
apoiadores, que pareciam o oposto do que já foram. Como se a versão atual
estivesse ali, mas sendo incompatíveis, discrepantes, com elas mesmas. Pessoas
que mudaram de lugar e de opinião de forma muito surpreendente e radical.
Não estou julgando ninguém, mas
é realmente curioso ver alguém defendendo coisas que um dia condenaram.
Afirmando, com convicção, o contrário do que já disseram. É como se um espelho
curvo revelasse outra face da mesma pessoa. E a primeira ou a segunda, uma das
duas, estivesse deformada.
Tantas palavras para dizer
aquilo que a sabedoria popular afirma com mais precisão e graça: vi muita gente
comendo no prato que cuspiu. Ou cuspindo no prato em que um dia ainda poderá
comer.
Enfim, o primeiro turno acabou,
podendo haver um segundo para alguns. Quem não plantou vulgaridades desde que
essa luta começou, terá mais facilidade de se ver no contra-espelho da vida.
* Cícero Belmar é escritor e jornalista. Membro da Academia
Pernambucana de Letras.Leia também: Quem é que
diante do espelho https://bit.ly/3acz1iV
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