09 outubro 2022

Uma crônica de Cícero Belmar

É nós na fita

Cicero Belmar*

 

Hoje, um dia depois de irmos às urnas para escolher o presidente da República, a sensação que me restou foi de ter sido testemunha da história, além, é claro, eleitor. Toda a campanha eleitoral, que antecedeu o momento do voto, me trouxe o sentimento de que estava sobrevivendo a fatos, situações e circunstâncias que serão contadas em livros futuros. Igual ao que ocorreu com os movimentos pelas redemocratização, anistia dos exilados e Diretas Já.

Todos fizemos história. Somos nós na fita da história. Vivi cada instante sabendo a importância do tempo presente no exato momento em que os fatos aconteciam. E esta percepção, esta clareza do que eu representava como agente e cidadão, foi a responsável por uma disposição à ansiedade, ao medo dos resultados, e também a uma responsabilidade misturada com esperança. Falo em primeira pessoa porque só posso exprimir a minha experiência pessoal e intransferível. A experiência de cada pessoa é vivida de forma diferente e esta foi a minha.

Faço esse registro porque não é sempre que tenho, no calor da emoção, a consciência objetiva do aqui e agora. Mas, nesses dois últimos meses, quando a campanha pegou fogo, eu às vezes me perguntava: como seremos vistos pela análise dos sociólogos e cientistas políticos que vão nos avaliar daqui a anos? Afinal, somente a distância dos fatos permitirá uma análise imparcial da sua dimensão.

Quando falo momento histórico não me refiro somente ao resultado das urnas que, a estas alturas, todos já sabemos. Mas, por todo o processo histórico acumulado, pelo que passamos juntos, pelos choros e pelos risos, pelo que protagonizamos ou que assistimos neste e nos anos anteriores. O hoje é um processamento de decisões tomadas no passado.

Uma coisa é certa: quando as paixões esfriarem, quando tudo o que restar for memória e palavras, seremos vistos como personagens coletivas deste momento. Então, teremos um único nome. A história vai nos reunir numa classificação, apesar de nossa polarização, e os analistas vão nos chamar apenas de “povo brasileiro”.

Para além dessa sensação de estarmos dentro da história, outra curiosidade me ocorreu durante a campanha. Foi, sem ironia alguma, a constatação de que a vida é, de fato, uma mutação constante. Observei muitas pessoas, candidatos e apoiadores, que pareciam o oposto do que já foram. Como se a versão atual estivesse ali, mas sendo incompatíveis, discrepantes, com elas mesmas. Pessoas que mudaram de lugar e de opinião de forma muito surpreendente e radical.

Não estou julgando ninguém, mas é realmente curioso ver alguém defendendo coisas que um dia condenaram. Afirmando, com convicção, o contrário do que já disseram. É como se um espelho curvo revelasse outra face da mesma pessoa. E a primeira ou a segunda, uma das duas, estivesse deformada.

Tantas palavras para dizer aquilo que a sabedoria popular afirma com mais precisão e graça: vi muita gente comendo no prato que cuspiu. Ou cuspindo no prato em que um dia ainda poderá comer.

Enfim, o primeiro turno acabou, podendo haver um segundo para alguns. Quem não plantou vulgaridades desde que essa luta começou, terá mais facilidade de se ver no contra-espelho da vida.

* Cícero Belmar é escritor e jornalista. Membro da Academia Pernambucana de Letras.
Leia também: Quem é que diante do espelho https://bit.ly/3acz1iV

 

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