Entrando na Civilização de Algoritmo
Márcio Fabri dos Anjos, Unisinos
Porque o algoritmo pode
marcar um processo civilizatório? A resposta aparece na sua vitrine, a inteligência
artificial, a fina representação das maiores conquistas tecnológicas de
nossa era. Viagens siderais de instrumentos em busca de informaç ;ões sobre o
macrocosmo; mergulhos profundos para esmiuçar ainda mais os segredos recônditos
do microcosmo; nada disso se faz sem a inteligência artificial. Mas ela se
adentra também no cotidiano de nossas vidas, relações, lazer, trabalho,
comunicação, saúde e até no ar que respiramos. Está ali, de modo discreto,
indireto e quase imperceptível nos instrumentos que usamos ou nas consequências
resultantes do seu uso. Ela representa um inegável serviço, sem cujos
instrumentos não teríamos recursos que garantem o bem estar e a produtividade
de hoje. É assim provedora de um fascínio tecnológico que caracteriza nossa
era, como já notava Baudelaire
;no século 19. Mas não seria esse fascinante presente como um cavalo de Troia que
traz no seu bojo forças dominadoras dirigidas para subjugar?
Esta ambivalência dos instrumentos entre servir e
dominar é imemorial, uma vez que sua utilidade pode ser orientada pelo agente
que o maneja em vista de suas próprias finalidades. O detalhe sobre o agente
que maneja o instrumento, é crucial ao se tratar da inteligência artificial. De
fato, o desenvolvimento tecnológico moderno veio acentuar pôr em crise a
relação entre o agente humano e seus instrumentos numa a celerada evolução
que Michael Polanyi,
em 1941, chamou de Grande
Transformação. As sucessivas revoluções industriais são um
lugar antológico para se perceber a radicalidade com que os agentes humanos se
dedicam à produção de instrumentos com maior eficiência de produzir, e isto os
afeta profundamente. [1] Vários pensadores, entre os quais Lévinas e Bauman, há
tempo alertaram para o fato de o próprio ser humano estar se transformando
nesse processo por uma transferência do cerne de sua interioridade para a
exterioridade produtiva e eficiente, com a consequente perda de valores éticos
para ser e agir.
Polanyi (1881-1976) se soma a
estes vários pensadores antecipando questões epistêmicas implicadas nos avanços
atuais da inteligência artificial, ao passar de análises sociológicas para os
fundamentos filosóficos do próprio processo cognitivo. S uas aulas foram publicadas
com o sintomático título: Conhecimento
pessoal: rumo a uma filosofia pós-crítica. [2] Ali
reforça, entre outras, que o conhecimento é constituído por fragmentos de
experiências sensíveis que vão sendo reunidas em categorias e se confirmando ou
não em hábitos e tradições; e consequentemente marcam a interpretação que faz
das realidades. Entende assim que a dimensão “emotiva” da percepção pessoal é
um elemento essencial subjacente a todo conhecimento explícito, reconhecido em
sociedade como tal. Em obra subsequente explica esta dimensão tácita como um
princípio que domina todo conhecimento pessoal, e é constituído por inúmeras
conexões pessoais cuja consci ência explícita escapa ao sujeito, de modo que
“podemos saber mais do que conseguimos dizer” (p. 136). [3] A passagem do
tácito para o explícito se dá através de linguagem que expresse sentimentos, o
apelo a outras pessoas, e a verificação fatos, sendo a verificação dos fatos
decisiva nesse processo de explicitação do conhecimento. [4]
Com estas abreviadas referências visamos ressaltar que
o desfecho do desenvolvimento
tecnológico na inteligência artificial é
fruto de um processo em que nós seres humanos também nos transformamos em meio
às evoluções tecnológicas. E o aceno feito à incursão de Polanyi à
epistemologia do conhecimento põe em evidência como a verificação de fatos pode
ser determinante para a interpretação das realidades em âmbito individual e
social, e na própria fundamentação das ciências, no sentido de hoje. Isto
enfatiza a relevância desta obra que de modo perspicaz coloca os algoritmos na
encruzilhada de uma civilização.
De fato, o algoritmo é
um elemento tácito de toda inteligência
artificial. É um método matemático com regras e procedimentos
lógicos bem definidos, aplicados em um determinado número de dados, que são
conjugados em vista da solução de um problema ou de se atingir um objetivo.
Consegue-se por esse meio reunir dados para a construção de máquinas que os
coletam por categorias, conforme um viés desejado, e processam em incrível
velocidade. Imagine-se isto aplicado às atuações profissionais oferecendo
resultados imediatos sobre sucesso/insucesso dos procedimentos. O que Polanyi dizia do
tácito trabalho mental em reunir experiências por categorias ao elaborar
conhecimento, agora a máquina o
faz em dimensões globais, como num rápido gesto mágico. A robótica na
execução de t arefas profissionais vem mostrando crescente superioridade diante
da habilidade humana em velocidade, precisão e eficiência. Cresce com isto o
fascínio humano em navegar na artificialidade
produtiva e usufruir de suas benesses.
Freud observou que a arte (techne) tem um poder de
incentivar a ilusão que, somada aos desejos, pode gerar efeitos afetivos
incidentes na interpretação da realidade. E afirma que “a arte se aproxima d a
magia, e o artista se compara a um feiticeiro”. [5] Embora ele esteja se
referindo à arte cênica, não é mera coincidência que a raiz etimológica do
termo tecnologia seja techne,
desenhando a fonte desses fascínios como conhecimento. O que esta analogia
freudiana ensina é que o efeito da magia fascina enquanto se consomem seus
resultados ou produtos, mas muda de figura quando minimamente se desvendam, ou
pelo menos se imaginam seus bastidores.
O desenvolvimento
do algoritmo está nas bases arquitetônicas das inteligências artificiais,
de dois modos principais. Um se realiza na organização seletiva de dados, em
“pacotes de categorias”, fornecendo base principal para o conhecimento. Outro
se dá na dimensão mais profunda de habilitação do mecanismo algorítmico, quando
se reproduz na máquina a base arquitetônica do ser vivo, e de certa forma se
“ensina” o mecanismo a proceder como seres vivos. E então se chega ao limiar do
maravilhoso que assusta a quem percebe a superioridade das máquinas sobre a
potencialidade humana, que sem controle humano podem executar, produzir e
reproduzir; podem ditar a “verdade” sem dizer que é apenas um viés da verdade;
e de instrumento passam a pilotar os humanos.
Estas anotações visam ressaltar a importância do algoritmo na
avaliação ética das inteligências
artificiais, pois ali se aninham questões cruciais, anteriores
ao seu uso bom ou nefasto. De fato, esta engenharia algorítmica envolve graves
questões como o ritmo evolutivo no conjunto dos seres vivos, incidindo no risco
de se desprezar a sabedoria que tem sustentado a persistência resiliente da
vida. Atropela bases da própria condição humana constituída por relações
interativas com assimilação e maturação para se formarem pessoas de identidade
própria que exigem tempo, espacialidade circunstanciada e mesmo fragilidades.
Estes são espaços essenciais da biodiversidade criativa com que se constroem os
seres humanos. No desejo e sonho de potencializar o humano, correr-se o risco
de o destruir juntamente com se u ambiente. A obra Entrando na Civilização de Algoritmos aprofunda
estas e outras questões, reconhecendo os muitos benefícios dos avanços
tecnológicos, mas principalmente colocando às claras as interrogações cruciais
que o tecnológico leva a esquecer ou mesmo ocultar.
Toda avaliação ética no
fundo apela para perspectivas de ação. Neste sentido a presente obra é profunda
e perspicaz. De certa forma retoma o desafio da construção do conhecimento a
partir da experiência das realidades, não simplesmente através de pontos
isolados, mas numa interpretação do seu conjunto. Ao sondar tais perspectivas
na relação ci& ecirc;ncia e fé, esta obra toca numa raiz fundamental das
interpretações das ciências que passam pelo horizonte de onde emanam seus
sentidos ou metanarrativas que Lyotard em
1979 [6] já apontava como uma grande perda dos tempos pós-modernos. A atual
disputa por narrativas tópicas no ambiente político brasileiro volta, aliás, a
reconhecer a necessidade de um horizonte, pequeno que seja, para oferecer
confiança diante de posturas e propostas sociopolíticas. Na relação entre ciência e fé, a fé
representa o ambiente confiante, horizonte mais amplo, que se deseja e busca,
uma relação que Th.
Kuhn já reconheceu ao associar a necessidade de as
ciências mudarem suas crenças (beliefs)
para alcançarem uma revolução científica. [7]
Sem desconhecer a pluralidade religiosa, esta obra escolhe
a teologia da
criação em uma leitura cristã para desenhar perspectivas e
critérios éticos nas práticas tecnológicas em questão. É uma escolha não
excludente, mas em grande parte operacional: oferecer bases estruturais capazes
de sustentar a vida e dignidade dos seres humanos em seu ambiente
socioecológico na era de algoritmos e inteligências artificiais em
que vivemos. Desta forma visa especificamente oferecer um horizonte alternativo
que possa ser assu mido e enriquecido por diferentes confessionalidades e mesmo
por não crentes.
Além de explicitar fundamentos da teologia da criação necessários
à proposta de perspectivas éticas, os autores argumentam ao
mesmo tempo em torno das questões levantadas na primeira parte, que representam
riscos de danos ou mesmo destruição de características essenciais do humano e
valores que sustentam sua vida com dignidade. E fecham com a proposta de sete
bases estruturais éticas que possam guiar a defesa e promoção da vida humana e
seu ambiente, com dignidade, sustentabilidade e boa qualidade. É notável que
não se atenham à chamada ética aplicada ao uso de inteligências artificiais,
mas analisam questões referentes à própria constituição do ser humano.
Os dois autores que assinam a obra somam seus
conhecimentos em engenharia genética, física e teologia, sem justaposição, mas
ao contrário reconhecendo explicitamente a densidade e riqueza que resultaram
do diálogo entre ambos para a elaboração do texto. Uma interessante experiência
e um eloquente incentivo aos diálogos inter e transdisciplinares.< /span>
Para facilitar a leitura por quem não esteja tão
afeito à linguem digital, tomou-se como opção traduzir para o português
expressões usuais em inglês na linguagem de informática, como design, designer, big
data, data-assisted Science, data-driven Science, deep
learning, e outras, mantendo entre parêntesis esses termos usuais.
Nesta obra o leitor encontrará muitas informações
preciosas sobre os bastidores da engenharia digital em inteligências artificiais.
Mas principalmente poderá tomar consciência de questões de fundo que
representam graves desafios éticos referentes inclusive ao nosso próprio
momento civilizatório. Vale também um agradecimento aos autores por este raro
diálogo entre ciência e fé em um assunto tão relevante a atual.
Notas
[1] Cf. ANJOS,
M. F. Inteligência artificial, ponte para qual futuro? In: COELHO, MM. et al. (Org.). Cruzar fro nteiras:
uma urgência para a ética teológica. Aparecida: Santuário, 2022, p. 223-246.[2] POLANYI, M. Personal Knowledge: Towards a post-critical philosophy. London: Routdedge & Kegan Paul, 1958.
[3] POLANYI, M. The tacit dimension. London: Routdedge & Kegan Paul, 1966, p. 136.
[4] Cf CARDOSO, Leonor; CARDOSO Pedro. Para uma revisão da teoria do conhecimento de Michael Polanyi. Revista Portuguesa de Pedagogia, ano 41 n. 1, 2007.
[5] FREUD S. Totem y tabú. Madrid: Biblioteca Nueva, 1973. p. 1801-1804. (Obras Completas; Tomo III)
[6] LYOTARD, J. F. A condição pós-moderna: um relatório sobre o conhecimento. 9. ed. Trad. Ricardo Corrêa Barbosa. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006.
[7] KUHN, T. The Road since Structure. Chicago: Univ. of Chicago Press, 2000, p. 111-116.
Leia também: Biologia molecular: desafios científicos, conflitos éticos https://bit.ly/3CZyJGB
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