AS BOAS INTENÇÕES DE MARTIN SCORSESE
Quase tudo é perfeito em Assassinos da Lua das Flores, menos o horror reconstituído diante da câmera
Eduardo Escorel/Piauí
Nada justifica pôr em questão as boas intenções de Martin Scorsese e Eric Roth ao escreverem um roteiro baseado em Assassinos da Lua das Flores: Petróleo, morte e a origem do FBI, livro de não ficção do jornalista David Grann, publicado no Brasil em 2018. Tampouco há motivo para duvidar dos bons propósitos de Scorsese ao dirigir Assassinos da Lua das Flores, produzido pela Apple Studios com orçamento de 200 milhões de dólares e duração de 3 horas e 26 minutos, tendo Leonardo DiCaprio e Robert De Niro à frente do elenco. Afinal, é tarefa louvável querer ampliar o conhecimento a respeito da série de assassinatos de indígenas cometidos a mando de homens brancos quando uma reserva de petróleo foi descoberta em território do povo Osage, no estado de Oklahoma, na década de 1920.
Em entrevista à revista Sight and Sound de outubro, o senso de missão de Scorsese ficou claro. Ele disse: “Bem, somos cúmplices. Mas nós somos. Nós simplesmente somos. Então… é realmente sobre todos nós. Nós todos somos os assassinos. O europeu branco entra, a civilização ocidental entra. Nós somos os assassinos e precisamos compreender isso. Temos de confrontar isso em nós mesmos.”
Todavia, a sensação que fica após assistir a Assassinos da Lua das Flores é incômoda. Causa estranheza sentir que as intenções meritórias do realizador parecem resultar incompatíveis com o cânone cinematográfico de produções milionárias de qualidade, como as que Scorsese costuma dirigir. Quase tudo é perfeito no filme, menos o horror reconstituído diante da câmera. É como se a excelência da fatura industrial norte-americana, seu repositório de talento artístico e sua perfeição técnica atenuassem a gravidade dos crimes narrados, demonstrando haver, talvez, contradição insanável entre a necessidade de fazer um espetáculo atraente para milhões de espectadores e a vontade de abordar fatos históricos graves. Segundo artigo recente no site da Forbes, Assassinos da Lua das Flores “quase certamente” não irá recuperar nas bilheterias seu enorme custo de produção e os milhões a mais gastos em despesas de marketing, tornando-se, “infelizmente, mais um filme de grande orçamento que fracassou em 2023”.
A narrativa é bem conduzida na primeira metade de Assassinos da Lua das Flores, enquanto vão sendo relatados eventos de conhecimento restrito (inclusive nos Estados Unidos) até o livro de Grann ter sido publicado por lá, em 2017. O filme desanda, porém, na segunda metade, passando a ser pouco mais do que um acúmulo de episódios banais quando passa a tratar da investigação que leva Ernest Burkhart (DiCaprio) e seu tio William King Hale (De Niro) a serem detidos e julgados.
A cerca de 15 minutos do final, volta a ganhar interesse a partir do longo plano do julgamento em que Burkhart declara ter atuado obedecendo ordens de seu tio Hale e o acusa de ser o mandante dos assassinatos. Réu confesso, demonstra sua extrema fraqueza na crucial sequência seguinte, diante de Mollie Burkhart (Lily Gladstone), sua mulher osage. Ela pergunta ao marido se ele “contou toda a verdade”. Ele responde: “Sim, contei. Minha alma está limpa. É um alívio estar livre de tudo isso. Eu não ia deixar ninguém chegar perto de você ou das crianças.” Mollie persiste: “O que você me dava?” A pergunta desconcerta o marido. Ele reage com outra pergunta: “Como?” Mollie insiste: “O que havia nas injeções, šǫmįhkase [termo osage para coiote, usado pelo casal como sinal de afeto]? O remédio que você me dava… o que havia nas injeções que você me dava?” Quando o marido responde apenas “insulina”, ela se levanta e vai embora. Mollie sabe que estava sendo envenenada por ele, que iria morrer e suas terras com a reserva de petróleo seriam herdadas pelo marido, deixando de pertencer aos osage. Ao mentir uma vez mais, Burkhart perde a última oportunidade de se redimir. Admitindo toda a verdade, Mollie talvez fosse capaz de relevar os crimes do marido, conforme discutível noção religiosa.
Na mesma entrevista à Sight and Sound, Scorsese falou das motivações de Burkhart. Para o corroteirista e diretor, o personagem “espera que seu tio atenue a pressão, em certo momento, e Mollie fique bem…”. Grande parte da história de amor resulta, segundo Scorsese, de Ernest Burkhart ter algo nele: “admirava e se sentia confortável com a cultura osage. Havia alguma decência ali. Mas por alguma razão a fraqueza de caráter [de Burkhart] me interessa. Ele é fraco e perigoso, mas ainda há amor ali. E isso é meio perturbador, mas, ao mesmo tempo, é humano. É o que somos. E foi isso que busquei com Leo e com Lily…”
Nada justifica pôr em questão as boas intenções de Martin Scorsese e Eric Roth ao escreverem um roteiro baseado em Assassinos da Lua das Flores: Petróleo, morte e a origem do FBI, livro de não ficção do jornalista David Grann, publicado no Brasil em 2018. Tampouco há motivo para duvidar dos bons propósitos de Scorsese ao dirigir Assassinos da Lua das Flores, produzido pela Apple Studios com orçamento de 200 milhões de dólares e duração de 3 horas e 26 minutos, tendo Leonardo DiCaprio e Robert De Niro à frente do elenco. Afinal, é tarefa louvável querer ampliar o conhecimento a respeito da série de assassinatos de indígenas cometidos a mando de homens brancos quando uma reserva de petróleo foi descoberta em território do povo Osage, no estado de Oklahoma, na década de 1920.
Em entrevista à revista Sight and Sound de outubro, o senso de missão de Scorsese ficou claro. Ele disse: “Bem, somos cúmplices. Mas nós somos. Nós simplesmente somos. Então… é realmente sobre todos nós. Nós todos somos os assassinos. O europeu branco entra, a civilização ocidental entra. Nós somos os assassinos e precisamos compreender isso. Temos de confrontar isso em nós mesmos.”
Todavia, a sensação que fica após assistir a Assassinos da Lua das Flores é incômoda. Causa estranheza sentir que as intenções meritórias do realizador parecem resultar incompatíveis com o cânone cinematográfico de produções milionárias de qualidade, como as que Scorsese costuma dirigir. Quase tudo é perfeito no filme, menos o horror reconstituído diante da câmera. É como se a excelência da fatura industrial norte-americana, seu repositório de talento artístico e sua perfeição técnica atenuassem a gravidade dos crimes narrados, demonstrando haver, talvez, contradição insanável entre a necessidade de fazer um espetáculo atraente para milhões de espectadores e a vontade de abordar fatos históricos graves. Segundo artigo recente no site da Forbes, Assassinos da Lua das Flores “quase certamente” não irá recuperar nas bilheterias seu enorme custo de produção e os milhões a mais gastos em despesas de marketing, tornando-se, “infelizmente, mais um filme de grande orçamento que fracassou em 2023”.
A narrativa é bem conduzida na primeira metade de Assassinos da Lua das Flores, enquanto vão sendo relatados eventos de conhecimento restrito (inclusive nos Estados Unidos) até o livro de Grann ter sido publicado por lá, em 2017. O filme desanda, porém, na segunda metade, passando a ser pouco mais do que um acúmulo de episódios banais quando passa a tratar da investigação que leva Ernest Burkhart (DiCaprio) e seu tio William King Hale (De Niro) a serem detidos e julgados.
A cerca de 15 minutos do final, volta a ganhar interesse a partir do longo plano do julgamento em que Burkhart declara ter atuado obedecendo ordens de seu tio Hale e o acusa de ser o mandante dos assassinatos. Réu confesso, demonstra sua extrema fraqueza na crucial sequência seguinte, diante de Mollie Burkhart (Lily Gladstone), sua mulher osage. Ela pergunta ao marido se ele “contou toda a verdade”. Ele responde: “Sim, contei. Minha alma está limpa. É um alívio estar livre de tudo isso. Eu não ia deixar ninguém chegar perto de você ou das crianças.” Mollie persiste: “O que você me dava?” A pergunta desconcerta o marido. Ele reage com outra pergunta: “Como?” Mollie insiste: “O que havia nas injeções, šǫmįhkase [termo osage para coiote, usado pelo casal como sinal de afeto]? O remédio que você me dava… o que havia nas injeções que você me dava?” Quando o marido responde apenas “insulina”, ela se levanta e vai embora. Mollie sabe que estava sendo envenenada por ele, que iria morrer e suas terras com a reserva de petróleo seriam herdadas pelo marido, deixando de pertencer aos osage. Ao mentir uma vez mais, Burkhart perde a última oportunidade de se redimir. Admitindo toda a verdade, Mollie talvez fosse capaz de relevar os crimes do marido, conforme discutível noção religiosa.
Na mesma entrevista à Sight and Sound, Scorsese falou das motivações de Burkhart. Para o corroteirista e diretor, o personagem “espera que seu tio atenue a pressão, em certo momento, e Mollie fique bem…”. Grande parte da história de amor resulta, segundo Scorsese, de Ernest Burkhart ter algo nele: “admirava e se sentia confortável com a cultura osage. Havia alguma decência ali. Mas por alguma razão a fraqueza de caráter [de Burkhart] me interessa. Ele é fraco e perigoso, mas ainda há amor ali. E isso é meio perturbador, mas, ao mesmo tempo, é humano. É o que somos. E foi isso que busquei com Leo e com Lily…”
A derrapada fatal de Assassinos da Lua das Flores ocorre quando Scorsese faz uma participação, como ocorre em vários de seus filmes anteriores. Reincidindo na costumeira autocomplacência, na penúltima sequência, a 15 minutos do final, ele se apresenta para ler o obituário de Mollie Cobb, então já divorciada de Burkhart. Com os olhos marejados, posiciona-se diante do microfone de um programa de auditório transmitido pelo rádio, dedicado à série de assassinatos e aos agentes do FBI que solucionaram o caso, e lê: “A senhora Mollie Cobb, de 50 anos, faleceu às 11 horas da noite de quarta-feira em sua casa. Ela era uma osage legítima. Foi enterrada no antigo cemitério de Grey Horse ao lado de seu pai, suas irmãs e sua filha.” A direção do olhar de Scorsese oscila, por um momento, entre a plateia do auditório e quase encarar a câmera de frente, antes de acrescentar: “Não houve menção aos assassinos.”
No entanto, para Richard Brody, crítico da New Yorker, quando Scorsese “atua em Assassinos, ele fala por si mesmo e fala também pelo cinema em geral”, tendo aproveitado “a sua eminência para assumir um papel de liderança na defesa de que os estúdios invistam na preservação e distribuição de filmes clássicos e lancem filmes novos e significativos de realizadores ambiciosos. Com efeito, ele tornou-se o rosto e a voz da causa da arte cinematográfica – passada, presente e futura.”
No final da entrevista à Sight and Sound, Scorsese se deixa tomar pela melancolia. Aos 81 anos, referindo-se a Assassinos da Lua das Flores, ele diz: “Mas, a esta altura, nunca pensei que chegaria à minha idade fazendo filmes. Então eu nem sei o que dizer. Tudo o que posso fazer é oferecer isso. Espero que seja aceito, espero que as pessoas gostem.”
Caleidoscópico tempo presente https://bit.ly/3Ye45TD
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