Para um novo Natal
Natal é o tempo em que os de boa vida divulgam e querem fazer crer que as diferenças acabaram entre os homens
Urariano Mota*/Vermelho
Para aquilo que já observei sobre o Natal, que ele era a data magna da hipocrisia universal, quando as pessoas dizem se amar. O tempo em que os de boa vida divulgam e querem fazer crer que as diferenças acabaram entre os homens. E os ricos de bens materiais ficam subitamente espirituais, e com o estômago repleto arrotam que a melhor salvação é a da alma. A isso devo anotar: os militantes contra a ditadura acrescentavam um motivo teórico para a crítica à fraternidade em suas próprias casas.
Fazíamos, pois me incluo, uma leitura apressada – como eram todas as nossas leituras – de A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, de Engels. Para o que ele escreveu: “na família, o homem é o burguês, e a mulher representa o proletário”. E por isso, “a família individual tem que desaparecer, ser superada”, dizíamo-nos, e com atitudes passávamos adiante. Aquela angústia pelo tempo da repressão e da nossa idade incluíam a culpa dos seres igualmente oprimidos, os nossos parentes. Se Deus existe, a nossa incompreensão nesses dias há de ser perdoada. Mas éramos igualmente punidos pela dor que nos dava reprimir sentimentos de memória doméstica.
Então o natural era procurar a fraternidade entre os companheiros e companheiras socialistas. Nos bares, nas praias, nos pontos, nas reuniões e em nossas festas. Na maioria das vezes a encontrávamos. Assim foi em páginas que escrevi no romance “A mais longa duração da juventude”:
Eu os vejo, eu nos vemos como jovens desarmados para a maldade do mundo. Temos necessidades imperiosas, bocarras abertas e famintas que tudo querem, mas não temos ainda a experiência do sabor provado. Falamo-nos as maravilhas dos vinhos que não bebemos, ambrosias, banquetes finos que não foram desfrutados, joias no colo de musas, e pelo desejo entramos como bárbaros no palácio da burguesia. “Sirvam à mesa. Agora, urgente, antes que este curto tempo passe”. Nisso, todos somos puros e carnais em um só momento. Mas onde somos só puros – supondo o isolamento da pureza – é quando não sabemos o preço que deve ser pago para a obtenção do luxo dos sentidos. Isso quer dizer, o quanto teríamos de largar o caminho reto da consciência. No estágio da pureza nos falta a provação do sangue. E os acenos tentadores da conforma&cc edil;ão social, que premia os caídos no fascínio. Mas desconhecer não é o mesmo que ceder na hora da prova, ou da provação. Há uma reta luminosa, do brilho realista ao cometa, que vai atravessar aquela mesa em 1972 e vem até 2017. Tento mergulhar nos grãos de pó dessa luz.
Zacarelli se levanta e com o copo erguido, cheio de cerveja à semelhança de taça de champanhe, fala:
– Proponho um brinde à nossa felicidade.
Levantamo-nos em impulso automático, à maneira do público que se levanta num espetáculo.
– À nossa felicidade! A nossos melhores dias! – gritamos.
As mesas em torno observam o grupo de jovens para lá de esquisitos. Mas com um ar simpático desta vez. É como se falassem a si mesmos, “são doidos, que é que tem?, doido também é gente”. Nossos copos se batem ruidosos. Sentamo-nos. E com sorrisos ficamos nos olhando. Falamo-nos em silêncio: “Então, qual é a próxima? Venha o que vier, aqui vamos”. Então me ocorre falar como o diabo que sempre salta em nós no meio da felicidade. E falo:
– Será que temos o direito de ser felizes?
– Não existe nada no marxismo que proíba a felicidade – Alberto fala.
– Eu sei, rapaz – falo. – Eu me pergunto é se temos direito à felicidade quando temos companheiros se fodendo.
– Claro, estamos revigorando as nossas forças para a luta – Zacarelli responde.
– Mas como é que podemos gozar a vida, enquanto o povo está na pior situação? – pergunto.
– Bicho – Zacarelli responde. – O povo fode, o povo bebe, o povo se embriaga a ponto de dar cambalhota.
– Sigamos o povo, companheiro – Narinha fala, com uma piscada de olho. Então me levanto:
– Ao povo! Um brinde ao povo.
Entramos juntos com um prazer sem remorso. A vontade que dá e de cantar os versos de Castro Alves, “auriverde pendão da minha terra que a brisa do Brasil beija e balança”. E nos abraçamos. E com uma nova ciranda entramos a rodar, a pular, ainda que numa dança diferente da canção que a wurlitzer toca agora, “Alone again”.
Zacarelli fala alto:
– Era bom que houvesse o maior samba do mundo. Um samba da fraternidade, meus amigos. Um novo samba …
Assim foi, mas assim não é mais. Os que sobreviveram a esse tempo, hoje maduros, não mais leem de modo ligeiro e superficial A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. Agora, abraçam as pessoas que amam, em suas casas e além delas. Mas todos ainda desejamos um novo Natal de verdadeira fraternidade. Que virá ou deve vir, só Deus sabe quando.
Foto: Observatório do Terceiro Setor/Reprodução
*Jornalista, escritor
Nenhum comentário:
Postar um comentário