Aquele murro foi em todas nós
Cida Pedrosa*
Imagine a seguinte cena: uma mulher leva um soco no rosto de um homem ao sair do banheiro feminino de um restaurante porque é confundida com uma mulher trans. O episódio por si só já é inacreditável, mas aconteceu aqui no Recife, na véspera do Natal.
Há tantas camadas nesse caso que é preciso olhar para cada uma delas. Primeiro, o fato de nós mulheres estarmos em constante vulnerabilidade. Não há um lugar seguro para nós. Não podemos frequentar os espaços públicos sem que a violência de gênero seja uma pulga que se instala em nossa orelha e nos perturba o tempo todo. Não temos o direito de curtirmos um momento de lazer sem sofrermos agressão, sem sermos importunadas. O que aconteceu é gravíssimo.
Formulamos e aprovamos a Lei 19.061/2023 - sancionada e regulamentada pela vice prefeita Isabella de Roldão - que visa criar uma rede de proteção contra violência de gênero, o Protocolo Violeta. A norma estabelece que restaurantes, bares, motéis e diversos espaços de lazer noturno capacitem seus e suas funcionárias para que possam tomar as devidas providências caso problemas como esses ocorram. Há uma série de demandas: proteger a vítima, identificar o agressor e testemunhas, guardar as imagens das câmeras de segurança por até 180 dias para provar a agressão, acionar a red e de proteção, entre outras. Há um agravante maior no caso de identidade de gênero. Recife, mais uma vez, saiu na frente sendo a primeira cidade do Brasil a formular a legislação que precisa ser cumprida. O Guaiamum Gigante, o restaurante em que ocorreu a violência, apesar de ter dito em sua nota oficial que seguiu o Protocolo, passou por cima de muitas das suas recomendações.Ao liberar o agressor como uma forma de “se livrar do problema”, o Guaiamum evitou, na prática, a prisão em flagrante, dificultando o processo judicial. Quando deixou para os amigos e clientes acolherem a vítima, errou grosseiramente. A identificação do homem ficou a cargo de uma grande mobilização nas redes sociais que também ajudou a descobrir outras violências que ele já havia cometido.
Outra camada que merece ser amplamente discutida é a transfobia imensa desse caso. Ao se sentir “autorizado” em dar um murro, o agressor traduz que corpos de mulheres trans podem ser machucados a qualquer hora, por qualquer motivo. Essa chaga de sermos o país que mais mata pessoas trans no mundo precisa urgentemente mudar.
Já que estamos em época de renovar as esperanças, fica aqui o meu clamor por dias melhores para todas as mulheres. Se estamos coletivamente unidos para reconstruir o Brasil, precisamos também nos irmanar para acabarmos com os mais diversos tipos de violência contra nós. Só podemos falar plenamente de democracia, de direito à cidade se diminuirmos os índices de feminicídio, de estupros, de acessos de raivas injustificáveis.
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