11 dezembro 2023

Israel x Palestina e a história contemporânea

Palestina, Israel e o futuro dos estudos pós-coloniais
Enquanto seguimos impactados pelas imagens de um massacre em repetição em Gaza e pelo luto diante das mortes de palestinos e israelenses, qualquer explicação estará sempre aquém da brutalidade do que testemunhamos
Rodrigo Charafeddine Bulamah/Le Monde Diplomatique

Entre artistas e ativistas convidados a falar sobre a situação atual dos palestinos, um dos relatos que mais chamou minha atenção foi o do escritor e jornalista Ta-Nehisi Coates. Em uma entrevista ao canal de notícias Democracy Now, o autor fala de sua viagem à Cisjordânia, concluindo que “tudo ali era muito familiar”. Coates remete a algo recorrente em contextos de segregação e racismo. Exatamente por isso, ele recupera a história da escravidão e do colonialismo nas Américas e no Caribe. Sua fala destoa da maioria das análises que vimos acompanhando desde os ataques brutais do braço armado do Hamas no dia 7 de outubro. De jornalistas a acadêmicos, há muitos que questionam o emprego de termos como apartheid, colonialismo e genocídio para descrever o passado e o pre sente das relações entre o Estado de Israel e os palestinos.

Prezar pelo rigor conceitual é algo do qual não devemos abrir mão, sobretudo quando a ciência passa a ser alvo de ataques que buscam invalidá-la como um sistema legítimo de produção de conhecimento. Porém, há algo particular no modo como a história da Palestina e de Israel tem sido abordada e que parece nos fazer emudecer mesmo quando o que vemos é extremamente familiar e se encaixa de modo preciso no aparato conceitual moderno para descrever situações de segregação, racismo ambiental e violência extrema. Isso passa, acredito, pela própria história do debate sobre colonialismo nas ciências humanas. A questão que quero responder aqui é: qual a razão da Palestina ter ficado tão apartada dos estudos coloniais e pós-coloniais?

Enquanto seguimos impactados pelas imagens de um massacre em repetição em Gaza e pelo luto diante das mortes de palestinos e israelenses, qualquer explicação estará sempre aquém da brutalidade do que testemunhamos. Porém, é preciso assumir nossa responsabilidade ética e intelectual e ter coragem para buscar palavras mesmo quando a linguagem parece nos escapar. Só assim, é possível produzir um tipo de identificação e empatia que, no lugar de desumanizar o outro, traduz sua experiência e a transforma em uma experiência compartilhada. Enfrentar essa questão pode nos ajudar não só a conce ber outros futuros para Palestina e Israel, mas também nos mostrar outras saídas possíveis para a crise ecológica atual.

A GÊNESE FRAGMENTADA DO DEBATE PÓS-COLONIAL

Em 1978, foi publicada nos Estados Unidos a primeira edição de Orientalismo, livro que causaria uma revolução no curso das ciências sociais, da filosofia e dos estudos literários. Nele, seu autor, Edward Said, se inspira em intelectuais como Michel FoucaultFrantz Fanon e Antonio Gramsci para pensar a forma como o Ocidente projeta uma imagem narcisista de si a partir de visões distorcidas do “Oriente”. Operando a partir de binarismos, o Oriente seria o lugar do feminino, do primitivo, do infantil, do irracional, em suma, da “diferença&rdqu o;. Um dos argumentos de Said é que essa projeção compõe uma “geografia imaginativa” e inspira formas de governo e controle que pautam as atuações de impérios no Oriente Médio e em outras partes do globo. Não por acaso, o autor abre o livro com uma descrição da guerra civil que, à época, devastava o Líbano (1975-1990).

Um ano mais tarde, em 1979, Edward Said publicou outro livro. Enquanto Orientalismo adquiriu o estatuto de obra fundadora dos estudos pós-coloniais, A questão da Palestina se tornou uma espécie de obra menor, sendo relegada aos estudos de área, conhecida sobretudo por quem se interessa pela história e pela política do Oriente Médio. Se olharmos com cuidado para os argumentos desenvolvidos nesse segundo livro, porém, veremos que A questão da Palestina é um esforço em demonstrar o modo como o orientalismo é a lógica que sustenta a desumanização e o racismo anti-árabe, afetando de modo particular os palestinos. É ali que Said elabora a proposta radical de pensar o sionismo a partir do ponto de vista de suas vítimas.

Separadas apenas por um ano, cabe nos perguntarmos quais foram as razões que levaram essas duas obras a serem tomadas como tão distantes uma da outra. Como discute a antropóloga Ann Stoler, para alguns autores, a separação entre Orientalismo e A questão da Palestina faria parte de uma postura ambígua cultivada pelo próprio Said, ora encarnando a figura de um intelectual novaiorquino cosmopolita, ora se assumindo como um militante exilado da causa palestina. Me parece que a resposta não passa por aí, afinal, transparece em suas entrevistas e ensaios posteriores o quão inseparáveis são sua contribuição ao estudo das representações produzidas por impérios e suas análises sobre governo em espaços coloniais e imperiais. De fato, para Said, a política sempre foi um ponto crucial de sua análise, particularmente a relação entre poder e conhecimento. É dessa postura que deriva sua máxima de “falar a verdade ao poder”.

COLONIALISMO COMO GUERRA ECOLÓGICA

Órgãos supranacionaisassociações acadêmicas, Estados nacionais, universidades e associações de direitos humanos pelo globo têm chamado a atenção para o que se conforma flagrantemente como expulsão, limpeza étnica e, possivelmente, como o primeiro genocídio do século XXI. Da nossa parte, é urgente refletir sobre o que tornou possível algo dessa escala. Seguindo a proposta de Said, é preciso compreender a causa palestina dentro de uma economia política do conhecimento. Só a partir daí entenderemos a razão da Palestina aparecer de modo esparso nos estudos coloniais e pós-coloniais e as consequências mais amplas desse silenciamento.

A evidência disso pode ser exemplificada quando, somente a partir do dia 7 de outubro, veio à tona, para muitos de nós, o cerco que Israel impõe à Faixa de Gaza desde 2007. Não por acaso, soou como surpresa para alguns aprender que Israel controla a entrada de água, alimentos, energia elétrica e combustíveis a uma população de 2,2 milhões de pessoas e que, consequentemente, pôde cortar esses fluxos vitais sem qualquer dificuldade. Soma-se a isso ainda a intensificação dos ataques promovidos por colonos e militares israelenses na Cisjordânia, onde mais de duas centenas de palestinos foram mortos e outras várias centenas foram expulsas de suas terras e casas. Já se passaram dois meses desde o início da guerra e o número de mortes em Gaza ultrapassa a marca dos 16 mil, das quais mais de 7 mil são crianças. Essa cifra supera o número de palestinos mortos quando da criação do Estado de Israel que, somada aos 750 mil desterrados, ganhou o nome de al Nakba – a catástrofe.

Pessoas que viveram sob um regime colonial, como o nigeriano Chinua Achebe e o martinicano Aimé Césaire, definiram o colonialismo como um cotidiano de humilhações. É isso que chama a atenção de Coates em seu relato e é também o que podemos acompanhar no filme O presente, dirigido por Farah Nabulsi. O curta metragem, de 2020, retrata um pai e uma filha em busca de um presente de casamento na Cisjordânia, passando por formas de vigilância e controle além de uma infinidade de outras humilhações. O que Coates nos convida a fazer é superar essa espécie de “afasia colonial” que nega a possibilidade de entendermos o que realmente se passa na Palestina e em Israel sob o pretexto de uma suposta “complexidade”. Para isso, é preciso chamar as coisas pelo nome.

De fato, reduzir os eventos em Gaza a uma resposta aos ataques do Hamas é insuficiente para explicar a naturalidade com que autoridades israelenses despojaram os palestinos de sua humanidade, chamando-os de “animais” e clamando por uma segunda Nakba. Assistimos consternados à retórica fanática que produz inimigos religiosos do primeiro-ministro, às cenas de ataque a escolas, hospitais e campos de refugiados e ao uso de armas químicas em populações civis na Palestina e em países vizinhos, como as bombas de fósforo branco. Além de causar queimaduras severas na pele, o f&oac ute;sforo branco é um agente de elevada toxicidade, contaminando plantações e ambientes por um longo período, comprometendo por gerações ecossistemas inteiros e suas formas de vida humana e não humana.

Essa guerra ecológica tem sido uma das marcas não só da atuação das Forças de Defesa de Israel na região, mas também de toda uma política racista e excludente de preservação da natureza. Desde 1967, por exemplo, estima-se que 800 mil pés de oliveiras foram destruídos ilegalmente em territórios palestinos, impactando diretamente uma das espécies mais importantes em termos simbólicos e materiais para os povos nativos. Outra forma de controle vital por meio da ecologia foi a proibição da colheita de zatar, em 1977, restrição que se estendeu também à gundélia (conhecida como akkoub), em 2005. Essa s duas plantas de uso histórico na culinária palestina se tornaram “valores naturais protegidos” sob um pretexto de preservação da natureza cujo resultado é a criminalização dos palestinos e de sua ecologia. Soma-se ainda o plantio de florestas de pinus com o objetivo de impedir o uso tradicional das terras para o pastoreio de cabras, expulsando, com isso, os beduínos.

Em Gaza, particularmente, plantações têm sido destruídas em sucessivos ataques nos últimos anos, o que contribui para o aumento da fome e da crise nessa região já cerceada. Ademais, fala-se atualmente em inundar o subsolo da região com água do mar, comprometendo a fertilidade do solo e o já escasso acesso dos palestinos à água potável. Nesse sentido, além de um politicídio, que mutila e impede a formação de um corpo político que possa efetivamente representá-los, os palestinos são vítimas de um ecocídio que atenta sistematicamente contra sua vida e seus modos de habitar a Terra.

NAKBA COMO EVENTO E ESTRUTURA

É essa dimensão colonial que Edward Said evoca, em A questão da Palestina, ao evidenciar uma conexão entre o orientalismo e a maneira como o sionismo se constituiu historicamente. Isso que o autor chama de uma “atitude cultural arraigada” na relação com os palestinos deriva de preconceitos ocidentais contra os árabes em geral e o Islã em particular. “Essa atitude”, continua o autor, “da qual o sionismo, por sua vez, extraiu a visão que tem dos palestinos, desumanizou-nos, reduziu-nos à condição pouco tolerada de incômodo” (p. LII-LIII). De fato, são décadas de uma gramática colonial que naturaliza múltiplas formas de violência contra os palestinos e seus territórios ao mesmo tempo em que impede a sua nomeação.

Em resposta a esse emudecimento, como propõe o advogado Rabea Eghbariah, “[o] que é específico à Nakba é que ela se estendeu até a virada do século XXI e se tornou um sofisticado sistema de dominação que fragmentou e reorganizou os palestinos em diferentes categorias legais, cada uma sujeita a um tipo específico de violência”. Se, de acordo com alguns comentaristas, termos como apartheid e genocídio não se aplicam ao caso palestino, talvez seja o momento, como propõe Eghbariah, de pensar a Nakba não só como evento, mas como estrutura. Afinal, “Gaza nos lembrou que a Nakba é agora”. “Se políticos israelenses estão admitindo a Nakba com o objetivo de perpetuá-la”, conclui Eghbaria h, “chegou a hora do mundo também reconhecer as experiências dos palestinos. A Nabka deve se tornar um conceito global para que ela possa chegar ao fim.”

É nesse ponto que podemos entender a ressalva de Said faz ao dizer que “Israel, assim como seus defensores, tentou obliterar os palestinos com palavras e ações, porque o Estado judeu constrói-se de muitas maneiras (mas não todas) sobre a negação da Palestina e dos palestinos” (p. LV). Resta explorar o que são essas outras maneiras de conceber um Estado israelense. De fato, outros projetos políticos estavam em jogo na primeira metade do século XX, alguns dos quais pareciam muito mais promissores e plurais e não passavam necessariamente pela supressão das vozes e da vida de palestinos e palestinas.

PARA ALÉM DA PARTIÇÃO

Em Silwan – um dos distritos de Jerusalém Oriental onde, atualmente, os palestinos mais sofrem com o assédio e a violência de colonos israelenses – está uma antiga casa adornada com uma bandeira de Israel e que pertencia outrora à família Meyouhas. Judeus palestinos de origem sefardita, sua residência data de 1878, momento em que se mudaram da periferia da Cidade Antiga para Silwan. Com quase 150 anos, a casa dos Meyouhas materializa a presença histórica de judeus na Palestina e é, com efeito, utilizada como ponto turístico para legitimar o processo de expulsão dos palestinos e a “retomada” dos judeus na região. Curiosamente, Yosef Meyouhas, ainda criança quando seus pais chegaram a Silwan, advogava por um outro futuro para Israel e a Palestina. Yousef foi uma das primeiras pessoas a documentar e traduzir textos e relatos orais do árabe para o hebraico, cr iando uma conexão entre os árabes indígenas e os judeus recém-chegados.

Como para outros judeus nativos do início do século XX, sua proposta era de um mundo no qual palestinos de diversas origens pudessem conviver com novos imigrantes, dando continuidade ao espaço plural e de troca que unia judeus, muçulmanos, cristãos e pessoas de outras religiões. Para tanto, o papel dos judeus palestinos não se resumia ao de mediador entre mundos supostamente opostos, mas o de uma recusa em enxergar separações binárias entre judeus e árabes, colonos e nativos. A língua árabe tinha, para figuras como Yosef, um papel fundamental, pois era a língua comum e respeitá-la implicava necessariamente em respeitar também a terra, a história e a cultura locais. Foi esse mundo que se despedaçou com a imposição da partição como lógica principal do projeto sionista, transformando a Palestina em um espaço exclusivam ente judaico, conquistando a terra e impondo o hebraico com língua principal. Como argumentam Yuval Evri e Hagar Kotef, é isso que transformou os judeus nativos em colonos de um projeto colonial de ocupação.

Tendo crescido em uma família drusa da diáspora libanesa, sempre ouvi histórias dos meus avós e tias sobre um tempo de convívio entre diferentes grupos étnico-religiosos na região. Datas religiosas eram celebradas conjuntamente e outros momentos de troca e ajuda mútua compunham o cotidiano. Essas cenas eram expressão daquilo que o historiador Ussama Makdisi chamou de uma “tradição anti-sectária”. São exatamente esses espaços de um passado de troca, diálogo e aliança que devem ser recuperados quando pensamos em outras possibilidades de futuro para Palestina e Israel e para a região como um todo. Tais espa&cce dil;os, é fato, também se realizam em locais e momentos específicos do passado e do presente da Palestina e de Israel. Espaços de convívio muito mais do que separação, partição e fragmentação – nos quais os palestinos são, de fato, ouvidos e sua história, respeitada. Recuperar essas histórias e esses futuros interrompidos é uma das tarefas quando pensamos em uma alterativa verdadeiramente democrática e secular. Isso passa, contudo, pelo reconhecimento de uma história colonial e pela nomeação de violências pregressas e de um presente de humilhações e abusos, encarando de frente temas como reparação e restituiç&ati lde;o.

O FUTURO ECOLÓGICO DOS ESTUDOS PÓS-COLONIAIS

O futuro dos estudos coloniais e pós-coloniais passa por superar essa cisão fundacional, recolocando Palestina e Israel no mapa das reflexões sobre expropriação, genocídio, deslocamentos forçados, racismo ambiental e diáspora. Compreender a gênese histórica de Israel como um “choque de nacionalismos”, escolhendo a dedo citações de Said, só subscreve um excepcionalismo e ignora a reflexão do autor sobre as alianças imperiais que tornaram aceitáveis a sistemática violação da vida, da terra e dos direitos de populações indígenas no Oriente Médio. O próprio debate pós-colonial e m Israel tem se pautado pela ofuscação dessa história e, uma vez mais, pela supressão dos palestinos.

Para superar esse enquadramento, é preciso incluir também intelectuais árabes e palestinos nas conversas e debates. Discussões que se tornaram possíveis em Israel a partir da abertura de novos arquivos em 1978 e do subsequente surgimento de acadêmicos corajosos como os “Novos Historiadores”, como mostra a historiadora Arlene Clemesha, são temas clássicos na reflexão de intelectuais palestinos e árabes. Só assim podemos superar o paradigma da supressão e da partição quando pensamos em um futuro radicalmente distinto para Israel e a Palestina. Destacar a força e apoiar as manifestações locais contra o governo atual de Israel é nosso dever, mas fazer isso sem retomar a história é s ilenciar sobre um conjunto de violências, como o próprio caráter estrutural da Nakba.

No entanto, o futuro dos estudos pós-coloniais só pode ser imaginado quando também incluirmos a dimensão ecológica em nossas reflexões e atuações. Uma das consequências disso que Malcom Ferdinand chamou de “dupla fratura da modernidade”, que separa, de um lado, a história da escravidão e do colonialismo e, de outro, o pensamento ambientalista, pode ser vislumbrada na quase total ausência de discussão sobre as consequências ambientais da guerra em Gaza. Para além de um desastre ecológico local facilmente visível, os impactos de toneladas de bombas ainda precisam ser mensurados. São quantidades imensas de CO2 jogadas na atmosfera e que comprometem o futuro dos palestinos e de toda a Terra. Nesse ponto, o esforço de reco locar a Palestina e Israel no conjunto de reflexões pós-coloniais nos permite também encarar de frente a relação entre crise ecológica e colonialismo, aliando luta ambiental a processos de descolonização e luta antirracista.

Rodrigo Charafeddine Bulamah é antropólogo e professor do Departamento de Antropologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Trabalha com temas relacionados à história e ecologia em contextos pós-coloniais, particularmente no Caribe.

Foto: Livros soterrados por um prédio desabado na Faixa de Gaza (AgenciaAndes/Wikimedia Commons)

Al Nakba: a criação de Israel e a catástrofe Palestina https://bit.ly/3R7SgwC

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