03 dezembro 2023

Nosso belo idioma

Mestres da Língua: seriedade e leveza no estudo da gramática

Evanildo Bechara reúne textos de seus 75 anos de dedicação à língua portuguesa
Thaís Nicoleti/Folha de S. Paulo


"Somos nós, é o Brasil quem deve fazer a lei sobre a sua língua, o seu gosto, a sua arte e a sua literatura. Essa autonomia, que não exclui a lição dos mestres antigos e modernos, é não só um direito, mas sim um dever." Talvez à exceção do trecho grifado pelo próprio autor, o pensamento bem poderia integrar as discussões que hoje se travam em torno de existir (ou não) uma "língua brasileira". Quem escreveu as linhas acima foi o escritor cearense José de Alencar (1829-1877), que, já no século 19, advogava a independência do português brasileiro, embora não enxergasse na variante brasileira outra língua, tese hoje defendida por alguns estudiosos.

O fragmento acima integra uma carta do autor de "Senhora" e "O Guarani" endereçada aos editores da revista "Lusa" em 20 de novembro de 1874. A informação consta do artigo "José de Alencar e a língua do Brasil", do professor Evanildo Bechara, originalmente publicado na revista do Instituto de Letras da UFF no ano de 1978 e agora reeditado pela Nova Fronteira no volume propriamente intitulado "Mestres da Língua".

O mesmo Alencar, em sua época criticado pelo uso de estrangeirismos, respondia a Joaquim Nabuco (1875) com estas palavras: "Notou o crítico a palavra grog, de origem inglesa, por mim aportuguesada em grogue. Podia notar outras como tílburi, piquenique, lanche; ou crochete e champanhe, do francês. Desde que termos estrangeiros são introduzidos em um país pela necessidade e tornam-se indispensáveis nas relações civis, a língua, que os recebe em seu vocabulário, reage por uma lei natural sobre a composição etimológica para imprimir-lhe o seu próprio caráter morfológico". E ainda trazia exemplos de termos do português usados em outras línguas: "As línguas estrangeiras também por sua vez corrompem, ou antes, sujeitam ao seu molde os nossos vocábulos brasilei ros. Assim os franceses mudaram goiaba em goiave [‘goyave’], caju em acajou, mandioca em manioc; e o mesmo acontece com os outros povos acerca de várias palavras americanas".

O leitor interessado no tema da variação linguística, naturalmente ligado ao do ingresso dos estrangeirismos no idioma, gostará de vê-lo discutido já na segunda metade do século 19 por um dos autores que viriam a integrar o cânone da literatura brasileira. A propósito, a compilação de textos do professor Bechara é uma justa homenagem aos mestres, cujas reflexões por certo são úteis aos estudiosos, mas também podem ser lidas com curiosidade pelos não iniciados nas intricadas questões do idioma – vejam-se as "Contribuições Linguísticas de Filinto Elísio", o padre português do século 18 que inventava palavras. O leitor ficará sabendo, por exemplo, que é da lavra dele o termo "tremeluzir".

É ele próprio quem conta que, ao traduzir um texto latino, deu com a sugestão do dicionário "resplandecer com luz trêmula" para descrever o sentido de uma só palavra: "– Não fiquei homem não, mas mudo e quedo me pus a imaginar a sós comigo: Pois hei de substituir c’um verso quase inteiro o sentido duma só palavra!...". Adepto da síntese, deu tratos à bola: "Venha um verbo composto de tremer e de luzir e acudiram dous logo rebolindo pela imaginativa abaixo: tremeluziu e lucitremeu". Já sabemos qual dos dois vingou. Há vários outros casos divertidos, que o leitor gostará de descobrir por si só nas páginas do livro.

Bechara nos conta, em outro artigo, que uma professora o procurou para obter explicação sobre uma expressão que, usada por Machado de Assis, aparentemente nunca foi acolhida por dicionários. Ela estava intrigada com o emprego de "zás que darás" (no capítulo 21 de "Dom Casmurro"). O leitor ficará sabendo que "zás que darás" é um vocábulo expressivo, iniciado pelo termo onomatopaico "zás" (que imita o som de uma pancada) e seguido de um termo rimado. Assim, "que darás" não teria significado próprio e, à maneira de "zás-trás" ou "zás-catrás", ambos registrados, extrairia da rima o seu valor expressivo.

Engana-se quem imagine que as "lições dos mestres" reverberam visões antiquadas ou obsoletas do fenômeno linguístico. Entre os homenageados na coletânea, figuram Eugenio Coseriu, Celso Cunha, Celso Luft, Mario Barreto e muitos outros, que contribuíram com relevantes reflexões sobre a língua. Lá também está Said Ali, que, tendo sido mestre do próprio Bechara, foi um dos primeiros estudiosos a levantar questões ainda hoje discutidas pela linguística, como a colocação pronominal no português do Brasil.

Aliás, essa questão foi também uma das preocupações dos escritores modernistas brasileiros. Na coletânea de Bechara, vemos a discussão entre Mario de Andrade e Manuel Bandeira, cuja correspondência é comentada no artigo "Manuel Bandeira e a língua portuguesa". Ficamos sabendo que Bandeira era um exímio colocador de pronomes à portuguesa e que Mario de Andrade era um adepto do pronome átono em início de frase sem nenhum tipo de restrição – quem tenha lido "Amar: Verbo Intransitivo" sabe que ele empregou, de fato, essa colocação pronominal. O tema permanece em discussão até hoje, tendo sido objeto de recente proposta de sistematização pelos professores Carlos Alberto Faraco e Francisco Eduardo Vieira ("Gramática do Português Brasileiro Escrito", Ed. Parábola).

Sobre o linguista romeno, dirá Bechara: "Divergindo de muitos linguistas que consideravam a função normativa da gramática escolar indigna de suas considerações, Eugenio Coseriu se filia àquele grupo de excelentes linguistas preocupados com destacar o papel de injunção social da norma padrão, com a confecção de bons compêndios gramaticais". Nessas palavras parece repousar o espírito da obra de Bechara, que, sem descurar do ensino da norma padrão, é um convite a todos os que desejem ampliar seu horizonte de conhecimento da língua – afinal, portuguesa – em todas as suas manifestações e variações.

Elogios inconsequentes são poeira contagiosa https://bit.ly/4144pWP

Nenhum comentário: