Notas sobre a pintura de paisagem em Pernambuco
Raul Córdula*
Na arte da pintura a paisagem tem a ver com a propriedade, assim como o retrato tem a ver com a identidade, o nu com a intimidade e a natureza morta com o cotidiano. É assim que funcionam estes gêneros básicos da pintura no sistema tradicional da arte. Quando me refiro à propriedade quero dizer a propriedade privada, a terra, o perfil da cidade, o castelo, o edifício. Nosso exemplo mais próximo é o grupo de pintores trazidos por Maurício de Nassau para registrar Pernambuco e outras localidades nordestinas para a Companhia das Índias Ocidentais. Hoje se faria o que eles fizeram através de fotografia, cinema ou imagem digitalizada de satélites artificiais, mas estas tecnologias, embora muito utilizadas pelo artista contemporâneo, não abordam a relação com a paisagem da mesma forma que a pintura.
A pintura de paisagem, portanto, é uma das tradições mais fortes da arte em Pernambuco desde o século XVI. As paisagens pintadas e desenhadas por Frans Post e os detalhes paisagísticos das cenas e figuras e naturezas mortas pintadas por Eckhout são os primeiros exemplos de uma pintura genuinamente brasileira, embora feita por estrangeiros, onde as características humanas, arquitetônicas e paisagísticas, assim como as cores exacerbadas aparecem como são até hoje. A luz é a mesma e alguns panoramas, como os canaviais pintados por Eckhout, são pintados hoje do mesmo jeito, por artistas como Marcelo Peregrino e Guita Charifker, por exemplo.
Depois de Pernambuco no período holandês vamos encontrar pintura de paisagem no Rio de Janeiro, pelos franceses Nicolas e Félix Taunay, pai e filho, que vieram para o Brasil integrando a Missão Francesa quase dois séculos depois dos holandeses. Nicolas permaneceu no Brasil de 1815 a 1821 chegando a integrar a Escola de Artes, futura Academia Imperial. Félix, pai do Visconde de Taunay, autor do importante romance Inocência, dirigiu aquela Escola entre 1854 e 1851, e chegou a ser preceptor do futuro imperador Dom Pedro II. Ainda no século XIX outros europeus pintaram o Rio de Janeiro. Entre os mais importantes estão três italianos: Nicola Fracchinetti, que deixou a terra natal por problemas políticos e no Rio participou das exposições gerais da Escola de Belas Artes, Giovanni Batistta Castagneto, maior pintor de marinhas brasileiro do século XIX (contam que, sendo ele fumante de charutos, pintava também nas tampas das caixas, madeira de cedro de ótima qualidade, e entonava seus grises misturando a tinta branca na cinza do charuto), Gustavo Dall’Ara, contratado como ilustrador de jornal, que fixou a paisagem urbana carioca do início do século XX; e o alemão Johann Grimm, que ingressou na Academia Imperial. Dos brasileiros oriundos da Academia Imperial de Belas artes é fundamental citar Antônio Parreiras, nascido em Niterói e aluno de Grimm, João Batista da Costa, Lucílio de Albuquerque – nascido no Piauí, e Timóteo da Costa.
A missão Francesa também foi responsável pela criação da Escola de Belas Artes da Bahia, e de lá saiu um dos grandes paisagistas brasileiros, Priciliano Silva, que em 1941 foi premiado com medalha de ouro do Salão Nacional de Belas Artes.
Modernamente o italiano Eliseu Visconti o romeno Emeric Marcier, e os cariocas Bustamante Sá e Silvio Pinto, mantiveram viva a pintura de paisagem em torno do Rio de Janeiro. Digno de citação também é o notável pintor paraibano Ivan Freitas, que emigrou para lá na década de 50.
Em São Paulo a paisagem começou a ter identidade própria com Domingos Toledo Piza, mas ganhou importância histórica com a modernidade, à partir de Anita Malfatti e Tarsila do Amaral, e se desenvolveu ainda mais com o Grupo Santa Helena. De São Paulo veio o marinheiro Pancetti, que pintou magistralmente as praias de Salvador, Francisco Rebollo, que chegou a pintar o Recife visto do Alto da Sé de Olinda, Alfredo Volpi, Aldo Bonadei, Roberto Burle Marx que além de ter sido um dos maiores arquitetos-paisagistas do mundo foi também pintor de paisagens, Yoshiya Takaoka e Luis Gregório, para citar os mais evidentes.
No Paraná temos no norueguês Alfredo Andersen, considerado “o pai da pintura paranaense” como precursor, acompanhado de Guido Viaro, Teodoro de Bona e Miguel Bakun.
Minas Gerais nos deu Alberto da Veiga Guignard, nascido em Nova Friburgo, RJ, Frank Charifker, Imina de Paula e Carlos Bracher. O Mato Grosso, que segundo Aline Figueiredo “Arte aqui é Mato”, tem seu naipe de grandes paisagistas oriundos de um olhar caboclo: Humberto Espíndola, que integra a paisagem mato-grossense com sua bovinocultura, Nilson Pimenta, Dalva de Barros, e João Sebastião que localiza suas lendas selvagens seus ritos pagãos nas paisagens da Chapada dos Guimarães.
Assim como no Mato Grosso, há pintura de paisagem na Paraíba, com a obra de José Lyra, Olívio Pinto e Amelinha Teorga, no Ceará com Raimundo Cela, Barrica e atualmente com José Guedes, no Rio Grande do Norte com Dorian Gray e Tomé, em Sergipe com José de Dome, Jener Augusto e Adauto, nas Alagoas com Fernando Lopes, No Maranhão com Zaque Pedro, Telésforo de Morais e Torres Filho.
A cidade dupla de Recife e Olinda, porém, tornou-se, desde a presença dos holandeses, berço de grandes paisagistas como Jerônimo Teles Júnior, Murilo La Greca, Eliezer Xavier, Mário Nunes e mesmo Francisco Brennand. Mas foi José Cláudio quem, reintroduziu aqui, nas décadas de 60 e 70, o gosto e a prática pela pintura de paisagem. José Cláudio reinventou a paisagem modernamente, criando uma tendência nova com o olhar voltado para esta luz que ilumina Olinda, nossos panoramas e nossos quintais carregados de cores e texturas. As paisagens pintadas por José Cláudio são verdadeiras lições de composição cromática. Nelas estão denunciados todos os seus processos pictóricos, em quadros que não têm começo nem fim, são puros registros da sensibilidade e da gestualidade do artista. Pode-se dizer que ele criou uma maneira própria de traduzir a paisagem para o olhar do homem contemporâneo.
Nos anos 50 foi criado no Recife o Ateliê Coletivo por um grupo de artistas composto por José Cláudio, Abelardo da Hora, Gilvan Samico, Adão Pinheiro, Wellington Virgolino, Ionaldo Cavalcanti, Clarisse Lins, Armando Lacerda, Wilton de Souza, Marius Lauritzen Bern, Ivan Carneiro, Ladjane Bandeira, Bernardo Dimenstein, Guita Charifker e Genilson Soares, entre outras grandes personalidades da arte pernambucana. O Ateliê Coletivo do Recife não se destacou pela pintura de paisagem, sua orientação era o desenho e a pintura da figura numa perspectiva moderna, mas essencialmente figurativa.
Nos anos 80, porém, outro grupo formou o Ateliê Coletivo de Olinda, que contou também com a participação de José Cláudio, Gilvan Samico e Guita Charifker, integrantes do Ateliê Coletivo do Recife, mas desta vez liderado por Giuseppe Baccaro, homem intelectualmente muito preparado, dono de uma das melhores coleções de arte do Brasil, que se radicou em Olinda nos anos 60 desenvolvendo aqui amplo trabalho social. Ele mesmo é um paisagista original, tanto pela sua pintura onde a cor denuncia sua origem italiana nos tons terrosos que superam a luminosidade local, quanto pelo sentido crítico que sobressalta quando registra paisagens ameaçadas pelo desenvolvimento urbano, paisagens que desapareceram com o tempo e o “progresso”, como as que fizera na área do Porto de Suape.
Integram também o Ateliê Coletivo de Olinda Luciano Pinheiro, Eduardo Araújo, José de Barros e Gil Vicente, que assumiram a ideia lançada por José Cláudio de ressuscitar a paisagem colocando-a no patamar de marco de nossa arte. Passaram a trabalhar como os impressionistas, ao ar livre, pintando Olinda, seus arredores e outras localidades para onde se deslocam geralmente em grupo, à exceção de Eduardo Araújo, este importante pintor que ultimamente ultrapassou os limites nacionais indo pintar no sul da Itália, em Ostuni, província de Drindisi, os olivais carregados de expressão mediterrânea que apresentamos nesta mostra.
É importante destacar a atuação de Gilvan Samico como pintor de paisagens. Pela obra xilogravada, reconhecida mundialmente, sua importância transcende a qualquer comentário ou citação. Sua pintura, também inserida no contexto do imaginário relacionado com a gravura, também uma obra de fôlego calcada na mais ibérica tradição poética e mítica. Mas as paisagens de Samico são exercícios de pintura pura, dispersas de estilo, libertas de normas e sentidos estéticos predeterminados pela sua própria obra. Este grande mestre humildemente se presta a plasmar o que vê, para encantar os olhares mais exigentes.
O Ateliê Coletivo de Olinda realizou várias exposições no seu espaço/sede, cedido por Baccaro, e com isto desenvolveu na geração seguinte, seus filhos e agregados, o gosto pela paisagem, dando vez ao surgimento de pintores como Marcelo Peregrino, filho de Samico e seu mais verdadeiro discípulo, um artista que nasceu vendo a luz olindense e avistando daqui o Recife, como na pintura desta mostra onde a cidade vizinha é vista do mole de pedras da Praia dos Milagres; Cláudio Manuel, filho de José Cláudio, diferente do pai usa pinceladas curtas e traços de pincel, provocando efeitos esquematizados, ou mesmo mosaicados, nos quadros de marinhas e coqueiros; Matheus Baccaro, filho de Giuseppe, exímio pintor realista que se especializou em panoramas rurais como os “plantís” de cana, nesta mostra, apresenta paisagens imaginárias e sombrias de lugares decadentes; Álvaro Caldas, Antônio Mendes e Sandro Maciel, pintores espontâneos que praticaram sempre com os “filhos”, hoje amadureceram suas próprias características e estilos,
Além dos integrantes do Ateliê Coletivo de Olinda estão presentes nesta mostra pintores que experimentam com a paisagem outros caminhos distintos da realidade objetiva que a janela do olhar propõe. Quando trabalha isoladamente Luciano Pinheiro não utiliza o modelo realista, pintando paisagens abstratas onde as texturas e cores da natureza se misturam em belas composições. Como Luciano, a textura profunda e a multiplicidade de verdes e terras da massa de folhagem da vegetação daqui conduzem a pintura de Plínio Palhano a um expressionismo abstrato de origem paisagística. O mesmo ocorre nos guaches de Humberto Magno, reordenamentos do campo visual que engloba a paisagem. Podemos ver ainda nas pinturas de Álvaro caldas esta vontade geométrica de recompor o que já está composto numa reinterpretação do que é visto.
O caso de Petrônio Cunha é diferente, este delicado artista criador de murais e de vinhetas gráficas ao mesmo tempo, conhecedor de espaços de grandezas opostas, que usa a tecnologia da matéria e cor industrial e urbana e reinterpreta seu mundo cercado de estímulos visuais, o mundo de quem vive em Olinda, traduz para a atualidade a permanente imagem local. Na mesma ideia de reinterpretação da paisagem inserem-se os quadros de Rodrigo Braga, integrante da geração de artistas contemporâneos do Recife, com representações de céu, mar e terra que invocam uma poética comum na modernidade, mas que traduzem também a pulsão pictórica do artista da cidade vizinha, banhada de mar e rios.
Num outro registro encontramos duas artistas que colocam suas poéticas em posições opostas, porém coincidentes quanto a sutilíssima forma com que se expressam. Maria Carmem, experiente artista que despontou nos anos 60, pinta um imaginário despojado e íntimo, um mundo próprio onde a recorrência da paisagem é um mergulho inconsciente na infância e no sonho. Bete Gouveia, artista contemporânea, armada de linguagens metafóricas, apresenta uma obra monocromática, onírica também na sua concepção, mas impactante como imagem.
Ainda neste delicado e sutil território da poética visual está a pintura de José Barbosa, este pioneiro da pintura em Olinda. José Barbosa pinta um paraíso tropical, assim como faz Guita nas suas aquarelas atuais, ou nos desenhos a bico de pena dos anos 60, e com isto aprofunda-se num imaginário próprio de Olinda. Não se sabe muito bem, no caso dos dois artistas, o que é paisagem e o que é figura. Alguns críticos defendem, e eu concordo, que na pintura, de um certo ponto de vista, tudo é paisagem, sendo assim as interferências figurativas ou a presença de fortes elementos da arquitetura na paisagem se dilui, se funde com o tema.
Na mesma vertente realista que norteia estes artistas estão os quadros de Júlio Holanda e Conceição Cahú. Ambos praticam uma pintura limpa e de boa fatura voltada para o registro do panorama visualizado, são exemplo de correção e boa técnica. Conceição é uma profícua desenhista, mas é também pintora, e nos apresenta pintura em tela e aquarela. Júlio e Conceição formam ao lado de George Barbosa, que há muito vem registrando o Recife com especial esquema cromático, Sandro Maciel e Antônio Mendes, todos comprometidos com a questão documental da pintura.
Duas outras pintoras trabalham com a ideia da monumentalidade: Tânia Carneiro Leão e Ana Veloso. Tânia, em sua série de mapas, vê como quem vê de um avião, distanciando-se da paisagem objetiva e as transformando em mapas pintados. Ilumina estes mapas com ilustrações, textos, símbolos, brasões. Seu trabalho é curioso, existe num território que está entre a poesia – muitas delas escritas com tinta na tela, e a pintura, o que menos interessa nesses quadros é o elemento cartográfico. Ana Veloso é uma pintora de muito fôlego e muitas fases pictóricas, a maioria delas de paisagens temáticas, como os parques de diversões, o porto do Recife, os interiores de antigos engenhos de cana de açúcar. Os quadros que ela apresenta nesta mostra são grandes torres transmissoras de energia elétrica, gigantes tecnológicos que nos assombram quando viajamos pelas estradas, e os vemos cortando o céu agressivamente.
[Ilustração: obra de José Cláudio]
*Artista plástico, curador e crítico de arte
Decifrando labirintos https://bit.ly/3Ye45TD
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