25 janeiro 2024

Fakes news e preconceito contra palestinos

Uma avalanche de censuras e notícias falsas: a luta dos israelenses para demonizar os palestinos

O preconceito contra os palestinos não se desenvolve de maneira espontânea. Ele é o resultado de um esforço descomunal para vilificá-los
Murilo Seabra/Le Monde Diplomatique



Os israelenses e a sua rede de aliados não estão massacrando apenas palestinos. Eles estão também massacrando informações. A sua fúria recai sobre todas as vozes que se levantam contra a narrativa dominante—que demoniza os palestinos e insiste que os israelenses estão simplesmente exercendo o seu direito à autodefesa. Dezenas de jornalistas já foram assassinados e presos desde 7 de outubro de 2023, quando a Operação Dilúvio Al-Aqṣā surpreendeu o mundo. Ao mesmo tempo em que informações verdadeiras são suprimidas, informações falsas são amplamente divulgadas e alardeadas—e, agora que os israelenses se preparam para se defender da acusação de genocídio no Tribunal Internacional de Justiça, a falta de escrúpulos atingiu níveis espetaculares.

Recentemente, o New York Times tentou reanimar uma notícia que já havia sido desmentida: a de que os membros da brigada Al-Qassam cometeram “estupros em massa” durante a Operação Dilúvio Al-Aqṣā. A matéria é um exemplo de falta de consideração tanto com a verdade quanto com as vítimas e as suas famílias. “Vale a pena discutir o fato de que depois de tantas alegações [sobre o Hamas] feitas pelos israelenses serem desmentidas—de que dezenas de bebês foram decapitados, de que um bebê foi assado no forno, de que um bebê foi arrancado à faca do útero da mãe—, Israel e os seus apoiadores estão agora voltando a apostar fortemente na alegação de que os militantes [da brigada Al-Qassam] cometeram estupros em massa no dia 7 de outubro”, explicou o premiado jornalista Aaron Maté. “Já denunciamos várias inconsistências presentes nessas matérias, só que elas persistem”, continuou Maté, cujo pai é um conhecido sobrevivente do Holocausto. “E, agora, o New York Times apareceu com uma nova matéria (…). A alegação é que o Hamas usou a violência sexual como uma arma de guerra. (…) Mais uma vez, as pessoas estão ignorando as evidências em contrário e as inconsistências dentro desta própria matéria.”

De fato, a matéria estampa uma falsidade já em seu próprio título: “Gritos sem palavras” é a mais pura fantasia de uma testemunha ocular que, na verdade, não viu absolutamente nada. Infelizmente, a matéria do New York Times está sendo repetida acriticamente pelo mundo afora —pela australiana News, pela brasileira Folha de São Paulo e, claro, pela israelense The Times of Israel. Felizmente, ela foi desmentida pela própria família de Gal Abdush, uma das supostas vítimas. Mas Aaron Maté e Max Blumenthal — também judeu — já estão sob ataque. Não é a primeira vez que o New York Times mobiliza o seu imenso peso na guerra contra a verdade.  

Não são apenas blogs obscuros que mantém as notícias duvidosas sobre o 7 de outubro de 2023 em circulação, mas também poderosos veículos de comunicação e gigantes da internet como a Meta, proprietária do Facebook, do Instagram e do WhatsApp. A mídia corporativa ocidental está amplificando e fortalecendo em uníssono a narrativa israelense e jogando sujo ao insistir que o Hamas atacou os segmentos mais vulneráveis, indefesos e frágeis da população. Mas, como grande parte das notícias são falsas — parte da campanha sionista para justificar o genocídio do povo palestino — os “bebês”, as “crianças” e as “mulheres” precisam ser entendidos como símbolos. As palavras que os denominam possuem uma carga positiva – evocando pureza e inocência – que torna os supostos crimes do Hamas ainda mais horrendos. “É tão macabro que ninguém queria revelar [as atrocidades cometidas pela Al-Qassam] até que tivessem 100% de confirmação”, escreveu a jornalista Margot Haddad. Aparentemente, as notícias foram 100% confirmadas mesmo sendo falsas—e as centenas de mortes causadas pelas próprias foças armadas israelenses no dia 07 de outubro continuam subnoticiadas. 

Tudo parece ser cuidadosamente planejado — e de fato é — para despertar o máximo de animosidade contra os palestinos. Mas eles não são apenas alvo de alegações falsas. A campanha de desinformação sionista — que dispõe de fartos recursos — também se empenha em suprimir toda e qualquer informação verdadeira favorável à causa palestina. Por exemplo, apenas três dias depois da Operação Dilúvio Al-Aqṣā, apareceu no The Atlantic um ambicioso artigo de Bruce Hoffman — professor da Universidade de Georgetown — com todos os sinais de ter sido escrito por encomenda. Sem nenhuma justificativa, ele comparou a Carta de Princípios e Políticas Gerais do Hamas ao infame Minha Luta, livro no qual Hitler disse que estava realizando a obra de Deus ao lutar contra o judaísmo. É patente a intenção de utilizar a aura negativa do nazismo para manchar cinicamente a imagem do Hamas. O problema é que a luta do Hamas não é contra os judeus nem contra o judaísmo. A luta do Hamas é contra o colonialismo. O truque de Hoffman consistiu em esconder na manga o verdadeiro programa do Hamas e criar a ilusão de que anticolonialismo e nazismo são dois lados da mesma moeda.  

Contudo, o que deixa os palestinos indignados — tanto os palestinos muçulmanos quanto os palestinos cristãos — não é o fato de que os judeus possuem suas próprias crenças, mas o fato de que os sionistas — que muitos judeus acusam de violar os ensinamentos da fé judaica — não têm nenhum pudor em tomar as suas terras à força e violar os princípios éticos mais elementares, a começar pelo princípio de respeito à verdade. A diferença entre lutar contra o judaísmo e lutar contra o colonialismo é enorme e o Hamas se deu o trabalho de explicá-la. “O Hamas afirma que o seu conflito é com o projeto sionista, não com os judeus em razão da sua religião”. A luta é contra “os sionistas que ocupam a Palestina”. Ela é uma luta contra a colonização. Ou seja, não se trata de um conflito religioso.  

Embora a entidade sionista — o Estado de Israel — seja talvez o mais vergonhoso fóssil vivo da era colonial, não tem o menor sentido achar que o Hamas combate o judaísmo só porque combate o colonialismo. Assim como ser antibolsonarista não é ter preconceito ou ódio contra brasileiros, ser anticolonialista não é ter preconceito ou ódio contra judeus. As duas coisas não estão inextricavelmente ligadas — a menos, claro, que se queira instrumentalizar o sofrimento do povo judeu em favor do sionismo.

Mas o que torna a desonestidade do professor Hoffman ainda mais alarmante é o fato de que além de não querer acabar nem com os judeus nem com o judaísmo, o Hamas não quer acabar nem mesmo com a entidade sionista — ao contrário de muitos rabinos que a veem como antissemita e como um risco para o povo judeu. O Hamas está disposto a aceitar “as fronteiras de 4 de junho de 1967”. Portanto, o que ele quer é irrecusável do ponto de vista moral, indisputável do ponto de vista legal e perfeitamente viável do ponto de vista prático: o reconhecimento do Estado da Palestina—a solução de dois Estados. Mas os sionistas estão tentando convencer o mundo inteiro de que é impossível respeitar os direitos dos palestinos sem exterminar o povo judeu. Assim como os autores do artigo sobre estupros em massa do New York Times, o professor Hoffman anunciou a sua guerra à verdade já no título do seu artigo: “Entendendo a ideologia genocida do Hamas”. 

E o que acontece com quem tempera o debate com um pouco de verdade? As consequências podem ser tão graves quanto as sofridas pelos intelectuais e jornalistas brasileiros que ousaram criticar a ditadura — que, por sinal, recebeu apoio das mesmas forças que apoiam os sionistas. A professora Nurit Peled-Elhanan explicou em uma entrevista que “Tem uma organização chamada Impact que viaja o mundo deslegitimando a educação e a imprensa pró-Palestina. Eles fingem ser acadêmicos (…) e eles ganham muito dinheiro, da UNESCO, do Congresso dos Estados Unidos. O chefe dessa organização me disse que sua missão de vida é me destruir.”

A carreira do historiador Theodore Katz subitamente chegou ao fim depois que ele trouxe à tona os crimes cometidos pelos soldados israelenses contra os palestinos na famosa vila de Tantura. “Tantura era uma vila rica e tinha casas lindas. Os seus moradores viviam como europeus, sabe? (…) Um dos soldados estuprou uma menina de 16 anos. Foram eventos horrendos”, explicou o ex-soldado israelense Yosef Diamont com um largo sorriso no rosto. Mas os sionistas decidiram que o verdadeiro crime não foi o massacre. O verdadeiro crime foi tê-lo tirado do esquecimento — e assim resolveram perseguir e difamar Katz. E venceram.  

O professor Marc Lamont Hill — que tinha sido contratado como comentarista pela CNN — também sentiu na pele a força do lobby israelense: depois de uma fala na Organização das Nações Unidas (ONU) defendendo os palestinos, ele foi acusado de antissemitismo e a CNN o demitiu. A jornalista Katie Halper passou por uma experiência semelhante. “Obviamente, a censura em torno da questão da Palestina é bastante comum, mas preciso admitir que fiquei surpresa por terem feito isso comigo”, contou depois de ter sido demitida do The Hill. O que Halper tinha feito? Ela propôs gravar um segmento sobre a entidade sionista para discutir o que todo mundo já sabe ou deveria saber: que os palestinos vivem sob um regime de apartheid.

O especialista na questão palestina Norman Finkelstein também perdeu o emprego de forma parecida. Depois de ter demonstrado a falta de seriedade acadêmica de Alan Dershowitz — sionista apaixonado, plagiador incorrigível e professor da Universidade de Harvard —, ele foi forçado a abandonar a sua universidade. A corda arrebentou do lado mais fraco — como frequentemente acontece no ocidente. Infelizmente, o fato é que a suposta liberdade de expressão protege professores inescrupulosos como Dershowitz (que espalham informações falsas sem nenhum peso na consciência), mas não personalidades sérias e comprometidas como Finkelstein (que são penalizadas por não abrirem mão do rigor intelectual em nome do projeto sionista israelense).

Avi ShlaimIlan PappéClaudine GayZahraa Al-AkhrassJinan ChehadeAdania ShibliLiz MagillRashida TlaibSarah JamaFatima MohammedSidra TariqYara JamalZareena GrewalHatem BazianPaul HadwehMoath AmarnihBassem YoussefZaki MasoudAnwar El-GhaziMichael EisenDavid VelascoMaha DakhilEmily WilderSophie HamiltonRyna WorkmanAlexandria DunnAntoinette LattoufJackson FrankMiguel SanchezMick NapierMichael EisenTony GreensteinJeremy Corbyn e Breno Altman também passaram por situações análogas. Também entraram na mira do lobby sionista — que tentou até mesmo tirar do Netflix o filme Fahra, que conta a história real de uma sobrevivente dos massacres realizados por soldados israelenses na Palestina em 1948.  

O livro We will not be silenced: the academic repression of Israel’s critics (em português, Não seremos silenciados: a repressão acadêmica aos críticos de Israel) compila uma série de testemunhos de pesquisadores que foram punidos por falarem a verdade nos Estados Unidos, o país da “liberdade de expressão”. Nesse clima de terror intelectual, não surpreende que especialistas no Oriente Médio estejam se autocensurando. O número de pessoas atacadas — não apenas criticadas, mas silenciadas à força — é assombroso.  É apenas quem limita as suas fontes de informação à mídia corporativa que acredita haver liberdade de expressão no mundo ocidental.

[Foto: Mulher e crianças palestinas com a bandeira na Faixa da Gaza (Michelle Julianne Ratto]

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