Poder corporativo: a distopia chegou
Em Honduras, transnacionais ensaiam, em experiência-piloto, seu projeto máximo: criar enclaves onde o Estado nacional não atua e elas controlam tudo: das leis à “Justiça” e presídios; a moeda; impostos; a concessão de cidadania e a diplomacia
Jayhathi Gosh , no Bangkok Post | Tradução: Antonio Martins/OutrasPalavras
Imagine um cenário em que uma empresa privada efetivamente cria e controla seu território dentro de um país soberano. Essa empresa introduz sua própria moeda, promulga leis e estabelece tribunais, prisões, forças policiais e até mesmo serviços de inteligência. Ela formula suas próprias regulamentações fiscais, trabalhistas e ambientais (ou a ausência delas), independentemente de sua compatibilidade com as leis nacionais.
Agora, imagine que essa empresa adota o bitcoin como sua moeda e anuncia planos para privatizar serviços públicos. Ela substitui o sistema judicial existente por um “centro de arbitragem” e introduz um modelo de cidadania baseado em taxas, que exige a assinatura de um “contrato social” projetado para incentivar bom comportamento. A certa altura, o governo democraticamente eleito do país intervém para interromper esse absurdo e afirmar que as leis nacionais se aplicam igualmente a essa jurisdição. Mas, em vez de cumprir, a empresa processa o governo em bilhões de dólares, pedindo compensação por lucros que deixará de auferir no futuro…
Este cenário, aparentemente retirado de um romance distópico, é precisamente o que está acontecendo hoje em Honduras. O governo hondurenho enfrenta sete disputas internacionais de resolução de litígios entre investidores e Estados (Investor-State Dispute Settlemente, ou ISDS, em inglês). Foram apresentadas por várias empresas privadas. Uma corporação dos EUA sediada no paraíso fiscal de Delaware, a Honduras Próspera, está processando o país por impressionantes US$ 10,7 bilhões, o que representa dois terços do orçamento projetado pelo governo para 2023.
A história começa com o golpe de 2009, que destituiu o presidente democraticamente eleito de Honduras, Manuel Zelaya. Após o golpe, o novo governo rapidamente promulgou uma lei para estabelecer Regiões de Desenvolvimento Especial com as características descritas acima. Em 2012, a Suprema Corte revogou a lei, devido à sua flagrante violação da soberania hondurenha. Em resposta, o Congresso destituiu vários juízes e os substituiu por outros mais dóceis. Isso preparou o terreno para a introdução da lei das Zonas de Emprego e Desenvolvimento Econômico (ZEDE) em 2013.
Atualmente, existem três ZEDEs em Honduras: Próspera, Orquídea e Ciudad Morazán. Essas entidades operam como cidades-Estados independentes, inspiradas nas fantasias libertárias de investidores bilionários como Peter Thiel e Marc Andreessen – que há muito sonham com paraísos fiscais baseados em criptomoedas, que desafiam as normas democráticas básicas.
Esses desenvolvimentos desencadearam indignação pública generalizada tanto em Honduras quanto ao redor do mundo. Após a vitória do partido de esquerda Libre, liderado pela presidente Xiomara Castro, nas eleições de 2021, o novo governo rapidamente cumpriu sua promessa de campanha de revogar a lei das ZEDEs, uma medida amplamente apoiada pelo público hondurenho.
Mas a Próspera resistiu, alegando que seu acordo com o governo anterior garantia um período de estabilidade legal de 50 anos, reconhecia a supremacia dos direitos e privilégios do investidor e incluía “salvaguardas”, em nome do suposto direito internacional de investimentos.
Os governos, especialmente em países de baixa e média renda, são compreensivelmente cautelosos em relação aos mecanismos ISDS, que permitem a investidores estrangeiros buscar compensação por mudanças de política que afetam seus negócios. Originalmente, o ISDS destinava-se a evitar a expropriação de ativos privados por meio da nacionalização. No entanto, a definição de expropriação foi expandida a tal ponto que agora pode incluir qualquer ação governamental que os investidores julguem capaz de afetar negativamente seus lucros.
Quando surgem disputas, elas são resolvidas por tribunais internacionais de arbitragem, como o Centro Internacional para a Resolução de Disputas sobre Investimentos do Banco Mundial (ICSID), o Tribunal de Arbitragem Internacional de Londres e o Centro Internacional de Arbitragem de Singapura. No entanto, esses tribunais favorecem esmagadoramente os investidores.
Os Estados Unidos desempenharam um papel fundamental (e lamentável) no estabelecimento desse sistema. Em 2020, o então candidato presidencial Joe Biden criticou veementemente o ISDS, escrevendo: “Não acredito que as corporações devam ter tribunais especiais que não estejam disponíveis para outras organizações”.
Desde então, Biden cumpriu sua promessa de excluir cláusulas ISDS de futuros acordos comerciais. No entanto, elas ainda se aplicam a tratados existentes, como o que está afetando atualmente Honduras.
Em maio, mais de 33 membros do Congresso norte-americano enviaram carta à Representante de Comércio dos EUA, Katherine Tai, e ao Secretário de Estado, Antony Blinken, instando-os a apoiar Honduras no caso ISDS. No entanto, o governo Biden continua permitindo que esse processo obsceno se desenrole nos tribunais dos EUA, mesmo contradizendo a posição declarada do presidente.
O caso ISDS de Honduras representa um teste crucial para o governo Biden. Permitir que tais duplos padrões extremos prevaleçam, especialmente em um assunto tão claro quanto este, destroçaria irreparavelmente qualquer pretensão que ainda reste dos EUA à liderança global.
Imagem: David Plunkert
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