Não se pode mudar as regras no meio do processo civilizacional
Reflexões sobre a regulamentação das ferramentas de inteligência artificial e a proteção dos direitos autorais
Victor Drummond/Le Monde Diplomatique
O que está em jogo em termos de direitos autorais na mudança legislativa do PL 2338/23 é muito mais do que meramente uma disputa de interesses, é a possibilidade de mudar regras estabelecidas há mais de 500 anos e a tentativa de imposição de uma nova rota que atravessa o processo civilizacional. Tudo isso por dinheiro – muito dinheiro.
O Projeto de Lei em questão, que tramita agora no Senado, propõe formas de regulamentar o uso das novas ferramentas tecnológicas de inteligência artificial (IA). O centro da questão é conciliar as possibilidades de mercado e desenvolvimento econômico com a defesa e a manutenção dos direitos pessoais e autorais.
Atribui-se a invenção da imprensa a Gutenberg, em 1450, no centro da Europa. Como consequência, os empresários da tipografia, como Manuzio, Gutenberg, Fernandes e Plantin, logo passaram a investir na nova indústria com o objetivo de lucro. Ao longo de três séculos, discutiu-se se os autores deveriam ser contemplados, já que a criação tinha origem em suas mentes e olhares sobre o mundo. Surgiram, nesse contexto, as relevantes leis iniciais que inauguraram o sistema objetivo do copyright inglês, em 1710, e o sistema de direito de autor francês, em 1791.
A partir daí, os sistemas foram se fortalecendo ao levar em conta dois fundamentos básicos: todas as formas de uso das obras geram um recebimento ao autor e o seu nome está sempre vinculado à sua criação. Hoje, é mais do que compreendido que um autor deve ser reconhecido como o criador de uma obra, com a hipótese de ele não exercer esse direito por desejo próprio, o que a transforma, portanto, numa faculdade, uma opção.
O recebimento dos valores devidos nem sempre é o mais equilibrado e justo, visto que a indústria cultural não se destaca pelas melhores práticas. Por outro lado, sempre houve a compreensão de que a condição do autor é irrefreável, um elemento que promove o estímulo aos demais autores, mas que também é um respeito a quem tem acesso às obras. O sujeito se confunde com a sua obra muitas vezes, e, não raro, o autor atrai mais interesse do público do que a obra em si.
Estamos falando, portanto, de um pacto centenário que decorre não somente da atribuição das leis, mas também da compreensão de que, ao duvidarmos de tudo, não somente concluímos que somos sujeitos de nós mesmos, mas também somos autores. Esse pacto, que surge mesmo sem que se diga, também com o cogito ergo sum (penso, logo existo) cartesiano, faz com que todos sejamos autores, criadores, potência criativa e potência transformadora. Acordamos criadores. Todo ser humano é um criador em potencial, e é bom que se realize minimamente nas artes e por meio de valores culturais, pois a vida passa a fazer mais (ou algum) sentido a partir daí.
Não é, pois, um sistema jurídico que permite a criação, ele reconhece que a criação é elemento fundamental da existência humana e faz com que o mundo seja melhor. O mais curioso é que o pacto – que se estabeleceu pela compreensão do que é o sujeito na modernidade – veio de longe.
Quando o poeta romano Martialis utilizou a expressão plagiarius em suas epigramas para se referir a quem fazia uso de uma obra alheia, criou uma linda metáfora. Foi uma importante criação, pois o plagiarius, na verdade, era o homem que retirava a liberdade de alguém e o vendia como escravizado. Martialis, ao atribuir poeticamente a tomada da liberdade pelo ato de se fazer passar por um autor, definiu o que acabaria sendo, muito tempo depois e inclusive após Descartes, um fundamento civilizatório não somente ocidental, mas mundial.
A verdade é que o pacto poderia ter sido diferente. A sociedade poderia ter decidido que a criação é definitivamente de todos, que a subjetividade não seria suficiente para atribuir uma autoria e que haveria um estímulo ou compensação na forma de trabalho remunerado sem a consideração da autoria. Mas não foi o que ocorreu. E essa decisão foi já tomada pela sociedade, em um avanço civilizatório, e até mesmo – arrisco-me a dizer – todo o sistema psíquico de compreensão da autoria formou a concepção de um sistema lógico, inclusive de recompensas no âmbito cerebral, além do aspecto social.
Ora, alterar e imaginar que a autoria deixe de ser relevante é fazer com que o pacto tenha que ser refeito. Mas, para se falar em refazimento do pacto, há que se falar em refazimento para a humanidade, o que não parece adequado nem possível. Este é o nó do problema. E é o que pretendem as empresas que vêm buscando a inserção de todo o conteúdo protegido sem a necessidade de atribuição da devida autoria e do pagamento pelo uso das obras.
A questão é que a modificação do sistema sem um novo pacto social é anticivilizatória e o que se vê, infelizmente, é muito mais profundo do que uma discussão jurídica, mas algo da ordem do dever ser na qualidade do humano. Como consequência, a liberdade de todos os criadores será tomada por meio das empresas que buscam atender aos interesses dos seus acionistas e nada além disso.
Como vemos, não é meramente uma questão de direitos autorais, mas de (re)pensamento sobre a própria criação em si e o seu valor. Não são os artistas que estão na berlinda, mas o ser humano potencialmente criativo, ou seja, todos nós, que poderemos perder a condição de autores para alimentar lucros exorbitantes para as empresas que comercializam ferramentas de inteligência artificial generativa e não se importam com os direitos autorais e muito menos com a origem – e sobretudo com o futuro – da criação.
Victor Drummond é presidente executivo da Interartis Brasil, advogado especializado em propriedade intelectual, doutor em direito e professor universitário.
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