21 agosto 2024

Uma crônica de Cícero Belmar

Como é doce o meu pirulito!
Cícero Belmar  

No dia em que esqueci o smartphone em casa, quase virei filósofo. Fiquei me sentindo um diferentão do resto da humanidade. Todo mundo com o seu aparelhinho nas mãos e só eu prestando atenção ao dia.

Quando você se dá conta de que está sem o celular, é um desespero: bate as mãos no bolso, vasculha a bolsa, e de imediato, vem a pergunta: perdi ou me roubaram? É um desassossego imaginar que os arquivos podem ter ido para o beleléu. A sua vida está presa naquele aparelho.

Dei graças a Deus ao lembrar que o deixei em casa. Pensei em voltar do meio do caminho, mas o dia estava correndo e havia tarefas urgentes. O meu primeiro compromisso foi passar no escritório da empresa do plano de saúde para resolver questões de minha fatura.

Foi justamente na minha primeira parada do dia onde quase virei filósofo. Cheguei, fui o quarto da fila. O cliente da ficha 01 estava em atendimento, havia outros dois na minha frente. Peguei o papelzinho 04, sentei na sala de espera. Os outros dois, de celular na mão, faziam viagens pessoais.

Quem chegou depois de mim, repetiu o gesto dos anteriores: sacou o celular, mergulhou nas redes sociais. No silêncio da sala, só me restavam duas coisas: fazer nada e observá-los clicando nos seus celulares, enquanto esperavam o atendimento. Fiz as duas coisas.

É como existisse uma máquina xerox de comportamento. As pessoas ficam quietas e silenciosas, repetindo os mesmos gestos, como estivessem num transe coletivo. Não fossem os celulares, todos estariam irritados com a demora.

Sabe quando a mãe entrega um pirulito para o filhinho ou para a filhinha se acalmarem, enquanto esperam ela resolver os problemas? Celular é pirulito para adulto se entreter. Doce pirulito tecnológico.

Enquanto mexem nos seus aparelhos, as pessoas se desligam. Elas se vão embora numa viagem virtual, e poucas pessoas dão conta do que se passa ao redor. É como se o cavalo ficasse amarrado e o dono saísse para uma voltinha. As pessoas se movimentam em outra dimensão.

Além de observar as pessoas, eu, na minha maluquice, também fiquei vendo que o tempo escoava. Ele é inexorável. O tempo que passa é a nossa vida. Os aparelhinhos revolucionários comem o tempo, para o bem e para o mal. O fato é que, sem os smarts, o tempo parece mais viscoso.

Talvez seja filosofia demais para o dia a dia, mas, foi ali, sem o meu pirulito com sabor de tempo, que eu percebi que o dia parece transcorrer mais devagar quando não estamos no mundo virtual.

O tempo, assim que passa, é tempo morto. Ou melhor, ele acaba. É verdade, porém, que continua acontecendo no presente. Ele acaba e reinicia automaticamente. Mas, o que passou, passou.

À medida que as pessoas iam sendo chamadas para o atendimento, o tempo de espera dessas pessoas acabavam, já que o objetivo da espera era ser atendido. Sem nenhuma preocupação filosófica, as pessoas guardavam seus celulares e iam vitoriosas para os guichês.

Também chegou a hora de eu ser atendido. No final, que se danasse a terceira dimensão e a filosofia: fui em casa e resgatei o meu celular, igual a menino viciado em doce.

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