Redes sociais: o poder massivo da mobilização do ódio
A informação, acima de tudo, deve deixar de ser chuva torrencial diária a enxarcar diariamente a todos nós como fenômeno natural
Radamés Rogério/Le Monde Diplomatique
O ano era 2014 e a dona de casa Fabiane de Jesus, de 33 anos, mãe de dois filhos, morreu vítima de linchamento. Dezenas de moradores de Guarujá, litoral do estado de São Paulo, a agrediram violentamente até a morte motivados por um boato, que circulava em um perfil do Facebook, de que ela era praticante de “magia negra” e havia sequestrado crianças para realizar seus rituais.
À época, o advogado descreveu que ela estava andando na rua quando começou a ser agredida. Algumas pessoas teriam visto, na página Guarujá Alerta, hospedada no Facebook, o retrato falado de uma mulher que estaria sequestrando crianças em Guarujá e pensaram que se tratava de Fabiane. “Ela foi espancada porque acharam que ela era uma pessoa de uma foto. Amarraram ela, arrastaram ela, levaram até o Morrinhos 4 e espancaram ela violentamente. Deixaram ela no mangue.”
O ano é 2024, e nesses primeiros dias de agosto, o Reino Unido lida com protestos de grandes proporções. O motivo? Um jovem inglês de 17 anos assassinou à faca três crianças em uma aula de dança. A barbaridade do crime, entretanto, não é o elemento central por trás de tamanha, violenta e organizada onda de mobilização, mas o disparo massivo e muito orquestrado de notícias falsas que circularam na internet dizendo que o ataque tinha sido cometido por um muçulmano em busca de asilo que havia chegado no Reino Unido de barco.
De 2014 a 2024, o que se percebe é que as fake news são um poderoso instrumento de mobilização de massa, que possuem uma grande capacidade de direcionar sentimentos, de gerar um comunitarismo instantâneo, mas, ao mesmo tempo, altamente enraizado. Mas fake news não andam sozinhas e tão pouco têm condições de se espalhar sem um suporte que o permita. As redes sociais são o verdadeiro instrumento, não as notícias falsas.
Se, em 2014, as redes sociais já possuíam tamanho potencial destrutivo, imaginemos em um Brasil contemporâneo, em que se consome rede social por 46 horas por mês, segundo Levantamento da Comscore. Além disso, um percentual de 90% admite já ter acreditado em conteúdo falso, conforme pesquisa do Instituto Locomotiva, e, pela primeira vez, a rede social foi mais citada que a TV como fonte de notícia no Brasil, segundo relatório Reuters Digital News Report 2020.
Por ter como estratégia político-ideológica que tem como respostas simplificadas todos os problemas da humanidade, sem necessidade real de nenhum projeto de sociedade, a extrema-direita tem nas mensagens instantâneas, nos pequenos vídeos e textos, no algoritmo e nas fake news o instrumento para se fazer vencedora.
Considerado figura estratégica relativo ao avanço eleitoral do partido de extrema-direita alemão, a Alternativa para a Alemanha (AfD), Erik Ahrens, ativista e assessor de comunicação de Maximilian Krah realiza a seguinte avaliação do lugar da rede social no jogo político: “mais da metade dos jovens entre 14 e 19 anos na Alemanha consomem TikTok em média 90 minutos por dia. Ou seja, temos em seus cérebros uma janela diária de 90 minutos na qual as mensagens podem ser enviadas. Produzimos então três vídeos com três mensagens diferentes que atingiram três segmentos de público diferentes. O bom é que não precisei conceber isso com antecedência. O algoritmo fez isso por mim. Só preciso fazer upload do conteúdo e os vídeos encontrarão seu público por conta própria. Quando olho minhas contas no TikTok, me s into como alguém que descobriu o rádio em 1923”, conforme reportagem publicada por Saül Gutmann no jornal El Diário da Espanha.
Em um clássico e atualíssimo livro publicado nos anos 1960, Marshall McLuhan, muito antes das redes sociais, apontava para aquilo que a extrema direita compreende muitíssimo bem: o conteúdo do meio importa menos do que o próprio meio na influência sobre o nosso modo de pensar e de agir. Focamos no conteúdo e cegamos aos efeitos profundos dos suportes, das ferramentas, como destaca Nicholar Carr em A geração superficial.
Assim, do Guarujá à Cardiff, das eleições do Parlamento Europeu aos atentados à democracia no Brasil, em 8 de janeiro de 2022, a rede social é o “novo rádio” e urge promover, minimamente, políticas públicas voltadas para a regulação das redes sociais e a educação para o letramento informacional. Quanto a esta última, trata-se de medida pouco debatida na mídia de massa, no campo político, na esfera pública, e diz respeito a um processo que integra as ações de localizar, selecionar, acessar, organizar, usar informação e gerar conhecimento, visando à tomada de decisão e à resolução de problemas. Ou seja, a informação, acima de tudo, deve deixar de ser chuva torrencial diária a enxarcar diariamente a todos nós como fenômeno natural.
Ocorrendo, necessariamente, desde a educação infantil e perpassando todo o processo formativo, com suas devidas etapas, até o ensino superior, o objetivo primordial é a transformação da informação em conhecimento, em vista da tomada de decisão com responsabilidade e princípios éticos, sendo essa a forma mais eficaz de lidar com as redes sociais e as fake news, porque a luta contra o poder do algoritmo e das corporações que o controlam é tão necessária quanto inglória.
Radamés Rogério é Sociólogo, doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará, professor da Universidade Estadual do Piauí, organizador da obra A importância do ensino de Ciências Humanas: Sociologia, Filosofia, História e Geografia (Editora Café com Sociologia).
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