Cadeiradas, algoritmos e um jornalismo que precisa aprender a lidar com extremistas
De Bolsonaro para cá, a normalização do absurdo tem ganhado tons dramáticos pela aceitação dos seus discursos, especialmente nas redes.
Álisson Coelho/Jornal GGN
É daquelas ironias próprias do roteirista nonsense que conduz a narrativa Brasil.
O candidato-apresentador, que sempre faturou com a violência, sepultou a sua lamentável participação em uma eleição tornando-se ele próprio protagonista de um episódio violento. Uma cadeira que entra para a história de São Paulo. O roteirista, por certo, é adepto da coesão textual, trazendo de volta esse objeto em uma eleição à prefeitura da maior cidade do país.
A última vez em que uma cadeira foi protagonista durante a disputa pelo posto de prefeito da capital paulista foi quando Fernando Henrique Cardoso sentou-se na cadeira do prefeito da cidade para posar para a imprensa às vésperas da eleição de 1985 – e que depois foi desinfetada por Jânio Quadros, ganhador do pleito. Agora, outra cadeira foi usada por José Luiz Datena para fins menos ortodoxos. Uma cadeirada. Datena deu uma cadeirada no candidato-coach, Pablo Marçal.
Nem precisa pedir para colocar na tela. Eu vi, você viu, não importa de onde esteja me lendo.
Circulou em todas as telas, dos televisores aos smartphones. Na hipótese remota de que alguém ainda não soubesse quem é o trambiqueiro que aparece entre os líderes na corrida para a prefeitura de uma das maiores cidades do mundo, São Paulo, esse desconhecimento acabou. Pablo Marçal, um especialista em vender cursos para gente que procura dinheiro fácil na internet, é um nome nacionalmente ainda mais conhecido desde a noite do último domingo (15).
O gesto violento do apresentador, que sempre colocou a violência dentro da casa dos brasileiros, é apenas um capítulo tosco desse drama pastelão de orçamento superfaturado que se tornou a política brasileira.
Extremismos normalizados
Ainda nas eleições presidenciais de 2018, diversos pesquisadores apontaram o absurdo do fato de a imprensa brasileira não chamar Jair Bolsonaro de candidato de extrema-direita. Isso já era comum em veículos internacionais. Por aqui, a Secretaria de Redação da Folha chegou a distribuir um comunicado interno naquela eleição orientando seus repórteres a não identificar um extremista como, veja bem, um candidato extremista.
A normalização do absurdo nunca foi exatamente uma novidade. A votação do impeachment de Dilma Rousseff já havia sido um desses momentos completamente catárticos para os lunáticos que elegemos para o congresso. A história mostra outros.
De Bolsonaro para cá, a normalização do absurdo tem ganhado tons dramáticos pela grande aceitação dos seus discursos, especialmente nas redes. O que eram câmaras de ecos em redes de cidadãos indignados com as poucas conquistas de minorias nas últimas décadas, se transformou na ideologia dominante para um percentual ainda não totalmente calculado da população. As estimativas circulam entre 12% e 25%.
A tentativa de golpe de Estado em 8 de janeiro de 2023 foi apenas um ensaio para o que ainda podemos ter de enfrentar. Desde então, o jornalismo passou a se preocupar mais com dar nomes aos bois, no caso, aos extremistas. Ainda assim é pouco. Já não basta nomeá-los, é preciso entender como tratá-los em entrevistas, debates, e outros espaços de grande visibilidade.
Diferentes sociólogos têm apontado como tarefa histórica da esquerda desse tempo fazer aquilo que ela sempre refutou: defender as instituições da democracia burguesa. Como a esquerda bem sabe, manter tudo o que está aí, com as suas enormes contradições, não gera lá muito engajamento. Não gerava em tempos analógicos, gera ainda menos em uma sociedade em franco processo de plataformização de suas práticas.
Entre cortes e reacts
Na sociedade dos cortes, a radicalização gera os melhores reacts. A última atualização do sistema de recomendação do Instagram mostra bem essa realidade. Se antes a plataforma premiava com maior atenção o usuário que conseguia bons números de curtidas e, principalmente, comentários, agora a lógica é completamente voltada ao compartilhamento. Ou seja, para qualquer criador de conteúdo, o trabalho agora é produzir vídeos com alta capacidade de compartilhamento.
Para grupos extremistas esse é um funcionamento ainda mais interessante. Seus cortes irônicos, frases de efeito e provocações circulam com facilidade até mesmo entre aqueles que os abominam. Uma bola que não é de neve, é de lodo mesmo. Marçal usa esse sistema com maestria. Em um tempo em que todos sonham em ser rentistas, ele cresceu ensinando “técnicas” para que uma população imersa em uma realidade de trabalho precarizado visse nele uma resposta para mudar de vida.
Ao ódio às minorias, messianismo e ressentimento contra políticas que reduzem a desigualdade, característicos do bolsonarismo, Pablo acrescenta o culto ao empreendedor e o empreendedorismo de palco, que também já faziam sucesso por aqui. Uma combinação que já preocupa, até mesmo, vejam só, o clã Bolsonaro e os políticos que lutam pelo seu espólio.
Nas entrevistas que deu, raras foram as vezes em que Marçal de fato se viu em apuros. Isso se deve ao fato de que ele não opera em um nível racional. O coach não se importa em ser pego em contradição. Também não está preocupado em parecer razoável. Pelo contrário. A aposta é no absurdo. Depois de uma década entrevistando a família Bolsonaro, o jornalismo ainda não estava pronto para isso.
Os debates em TV aberta têm sido um picadeiro ainda mais divertido para Marçal. Ele já insinuou que um candidato era usuário de cocaína, que outro seria um estuprador e em entrevista disse que uma candidata teria responsabilidade em um suicídio ocorrido na família. Ofensas graves, premiadas com mais audiência nas redes e convites para entrevistas e debates.
Marçal transformou as eleições de São Paulo em um teatro de absurdos e já é benchmarking para candidatos por todo o país. A lógica é simples: provocar ao extremo os adversários e gravar as reações para uso em rede. Não existem propostas, negociações políticas ou tentativa racional de ganhar o eleitor. Apenas visibilidade.
Como tolerar os intolerantes já era um enorme desafio nos tempos atuais. Quando se trata de um intolerante que ignora completamente qualquer civilidade, racionalidade ou códigos básicos da política, isso se torna ainda mais complexo. Entender como operar nesses casos é o desafio histórico do jornalismo hoje. A depender dos rumos da democracia, pode ser o último.
Álisson Coelho, pesquisador associado do objETHOS
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