28 setembro 2024

Palavra de Belluzzo

“O governo hoje está cercado. O poder é do mercado”, diz Belluzzo
Para o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, essa relação de forças é fundamental para, por exemplo, definir a taxa básica de juros do país
AEPET  

Luiz Gonzaga Belluzzo, de 81 anos, é a mais notória voz entre os economistas brasileiros à esquerda no espectro político, em permanente contraponto com intelectuais do campo dito conservador. Às vésperas de uma nova decisão sobre o tamanho dos juros básicos do país (Selic), que ocorre nesta quarta-feira (18/9), ele torce para que não ocorra um aumento do atual valor da taxa, fixada em 10,50%, mas reconhece que tal perspectiva é uma zebra.

Isso por um motivo: o governo, que quer a redução dos juros, está cercado nessa e em outras veredas da economia. Hoje, quem manda nessa seara é o mercado, que prevê uma elevação do índice. Por que a banda toca desse lado e quais as consequências para o país desse estado das coisas são alguns dos temas que Belluzzo desenvolve a seguir, em entrevista ao Metrópoles. Confira os principais trechos:

O senhor acha que é preciso subir a taxa básica de juros do Brasil na quarta-feira?

Não acho de jeito nenhum. Os juros reais [resultado da Selic de 10,50% menos a inflação de 4,24% no acumulado em 12 meses até agosto] já estão muito altos.

Mas a tendência é de alta. O Relatório Focus, que traz dados da pesquisa semanal feita pelo Banco Central (BC) com economistas do mercado, projeta para este ano uma Selic a 11,25%. Como ela está em 10,50%, teríamos um aumento de 0,75 ponto percentual até o fim de 2024.

Se observarmos o Focus ao longo do tempo, vamos ver que os economistas do mercado não acertam uma previsão. Tudo dá errado. Mas o boletim tem uma enorme importância na reação do Banco Central.

Importância na captação de expectativas para a reação do BC?

Sim. O Banco Central tem de responder a isso, o que transforma a decisão de política monetária [grosso modo, o conjunto de medidas adotadas pelo BC para controlar a inflação e manter a estabilidade da economia] num círculo vicioso.

Como é esse círculo vicioso?

Hoje, o único instrumento usado no combate à inflação é a taxa de juros. Ocorre que a inflação tem outros determinantes. Ela pode, por exemplo, ser resultado de um choque de oferta [nesse caso, a elevação dos juros é considerada pouco eficaz para conter preços]. Foi isso o que aconteceu no começo de 2022, quando estourou a guerra na Ucrânia e a energia e os alimentos subiram. Ademais, existe outra dimensão da inflação que nem sequer é acolhida atualmente, mas foi muito examinada nos anos 1930 a 1950, com textos que observavam o poder de fixação de preços por parte das empresas monopolistas e oligopolistas.

Sobre o poder desses segmentos em influenciar os preços?

Esses estudos mostram que, quando ocorre um choque de preços, a reação desses setores é muito defensiva em relação às suas necessidades. Então, eles sobem os preços e isso se transfere para a inflação. Ou seja, a estrutura da economia é importante para criar uma política antiinflacionária. Mas isso agora está completamente fora de discussão.

Qual a consequência de resumir o combate à inflação, ou melhor, a política monetária ao aumento dos juros?

Ao elevar os juros, o que dizemos aos detentores da riqueza? Dizemos o seguinte: “Fique na sua”, “baixe a bola”, “não invista”. Indicamos que é preciso ter uma avaliação muito favorável sobre a decisão de investir, porque vai ser difícil recuperar esse dinheiro. A taxa de juros é uma forma de avaliação da riqueza em seu movimento. Na prática, o aumento dos juros desestimula o investimento. Se ele acontece, estamos falando que os investidores devem comprar ativos já existentes e pronto.

Os economistas não conservadores, em geral, dizem que o aumento dos juros favorece os rentistas. Isso ocorre?

Favorece, mas em parte. Isso porque, quando os juros sobem, o estoque de riqueza que estava com a taxa anterior também se desvaloriza.

O problema então é o investimento?

E a taxa de investimentos do Brasil é muito baixa. Ela está em torno de 16% [os técnicos apontam que deveria ser de ao menos 20%]. No segundo governo Lula, ela chegou a 21%. Na China é de 35%, mas já foi de 50%.

O senhor acredita que o governo tem de se submeter ou reagir a essa voz do mercado?

Esse é um ponto importante. É claro que tem de reagir. Mas o poder do governo hoje é muito menor do que o poder dos mercados financeiros. E tudo isso é uma questão de poder. Todo mundo em economia acha que está falando uma coisa técnica, científica. É mentira. A economia é política. Tanto que a ciência era chamada de economia política. Uma coisa é inseparável da outra. Mas o fato é que, hoje, o governo está cercado. O mercado tem mais poder.

Essa relação pode mudar?

Depende de um processo social. Se o governo tiver suficiente apoio na opinião pública e nos movimentos sociais, conseguirá reverter essa situação. Mas agora não observamos isso. Ninguém se movimenta nos escalões da sociedade. O que vemos, por exemplo, é o enfraquecimento dos sindicatos não só no Brasil como no mundo, menos na França, talvez.

O vento sopra para outro lado.

A economia depende muito da formação de consensos, definidos pelo estado do debate público em dado momento. Volto a dizer: vamos parar com essa história de que a economia é uma ciência exata. Não é. Ela trata da ação de homens em determinada esfera da vida. Por isso, a linguagem e a fala são cruciais. Nessas relações que mencionei entre o Focus e o Banco Central os conceitos são muito importantes. Então, o BC reage a uma estrutura de significados que já está constituída ali.

Mas o senhor acredita na possibilidade de a Selic não subir na quarta-feira?

Olha, podemos ser salvos pela decisão do Fed [Federal Reserve, o banco central dos Estados Unidos]. Ele vai definir se corta a taxa de juros dos Estados Unidos na quarta. A vantagem é que a decisão lá acontece mais cedo. Fico aqui torcendo muito, mas a banda toca do lado. É uma questão de formação de expectativas. Mas a inflação em torno de 4%, numa economia como a do Brasil não é nenhum escândalo. 

Mas o centro da meta de inflação é de 3%.

Sim, mas o regime de metas [criado em 1999] é questionável. Ele envolve uma redução na formação de preços numa economia capitalista. Muito já foi escrito sobre esse assunto adotando uma perspectiva diferente, mas isso está tão entranhado no debate que ninguém é capaz de olhar de fora. O fato é que estamos perseguindo uma coisa que prejudica o desempenho econômico. Os juros altos não permitem que a economia deslanche por causa da redução do investimento privado. Note que não digo que não se deva combater a inflação. Estou dizendo que essa forma de combate tem uma contrapartida que é o baixo desempenho da economia.

Qual é a alternativa?

Não é preciso abandonar o uso da política monetária. Mas depois da Segunda Guerra, por exemplo, ela estava fundamentada no controle do crédito. Isso ocorreu de forma moderada nos Estados Unidos e mais ampla na Europa. Nesses lugares, os bancos centrais usavam pouco a taxa de juros. Quando necessário, reduziram o crédito dos setores que estavam ameaçando crescer demais e, com isso, poderiam provocar aumentos de preços. Mas só passamos de um paradigma a outro, seja ele qual for, dependendo de algum evento ou processo que conduza as decisões a uma nova direção.

De qualquer forma, a meta da inflação é definida pelo Conselho Monetário Nacional (CMN).

Quando eu estava no governo federal, durante o Plano Cruzado [Belluzzo foi secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, no governo Sarney], presidia as reuniões do CMN. Na ocasião, ele reunia empresários, trabalhadores. Todos discutíamos as questões da economia em torno de uma mesa imensa. Foram enxugando o CMN, estreitando o âmbito da decisão do órgão de tal forma que ele ficou concentrado em três pessoas (os ministros da Fazenda e do Planejamento, além do presidente do BC). Isso concede a esse trio um poder excessivo, sem que outras partes interessadas participem das discussões.

O senhor conhece bem o economista Gabriel Galípolo, que deve ser confirmado como o próximo presidente do BC. Como acha que ele vai se comportar no cargo?

Conheci o Gabriel quando ele tinha uns 20 anos e estava terminando o mestrado. Fomos apresentados por um amigo em comum, o José Marcio Rego. O que posso dizer é que Galípolo é muito aberto a discussões. É muito aberto ao diálogo, gosta de conversar com as pessoas. Tem uma personalidade muito adequada para ser presidente do BC à essa altura.

Por que “à essa altura”?

Isso tem a ver com o que já disse. Se ele chegar lá e afirmar “vou baixar a taxa de juros para facilitar o investimento privado” a reação do mercado vem com tudo. E quem está no governo sabe que exerce uma função pública. Assim, tem de ter um comportamento compatível com o ambiente em que está. O governo não é a academia, onde temos mais liberdade. Mas o Gabriel é muito aparelhado para trabalhar nisso. Ele não tem compromisso com dogmas. Ouve e ao mesmo tempo tem grande capacidade de convencimento. Mas não vamos nos esquecer de que, no cerne do problema, está o que já falei: tudo está limitado a uma questão de poder do mercado em relação às instituições do Estado.

Com o mercado do lado mais forte.

Porque ele tem os instrumentos para desestabilizar o Estado e a economia com a rejeição de uma medida qualquer. Tudo isso tem a ver com o movimento das forças sociais em determinada direção. Ele vem se formando desde os “30 anos gloriosos” [como é chamado o período de forte crescimento econômico nos países desenvolvidos]. Isso vai transformando as concepções e as visões das pessoas, concentrando tudo nos interesses pessoais. Ninguém mais olha para o conjunto da obra. Não estou me submetendo a nenhum determinismo. Estou falando como as coisas se movimentam.

O senhor está se referindo ao consenso que já mencionou?

Sim, mas temos de notar que vários problemas surgiram nos últimos anos, como aumento da desigualdade e a crise climática. Esses, aliás, são fatores que podem provocar uma rediscussão desse tema.

Como o senhor avalia a condução da economia pelo atual governo?

Já comparei o Fernando Haddad a um jogador de um time que está querendo atacar, enquanto o outro está na retranca. Ele está lidando com aumento da receita, assegurando que vai ter um resultado primário satisfatório. Tudo isso tem a ver exatamente com aquilo que falei. Há uma limitação, um bloqueio. Mas, por conta das políticas de transição e de medidas que o governo tomou na área social, tivemos o benefício de um crescimento mais rápido.

O senhor não acha que estamos vivendo muito no curto prazo?

Nós estamos observando as consequências de curto prazo. Eu diria que o governo tem de dar o recado ao mercado que já está dando e fazer com que os ministérios encarregados do longo prazo atuem. Existem projetos como o PAC [o Novo Programa de Aceleração do Desenvolvimento], com um funding [financiamento] importante, que vai reativar o crescimento.

E como o senhor vê o avanço dos gastos públicos por parte do governo federal?

Existe um grande cerco em relação ao gasto público. Todos os editoriais de todos os jornais dizem a mesma coisa: corta, corta. Mas, na semana passada, o Mario Draghi [ex-primeiro-ministro da Itália e ex-presidente do Banco Central Europeu] apresentou uma proposta radical de investimentos de 800 bilhões de euros para bancar a recuperação da economia europeia. E isso é urgente. Na Alemanha, por exemplo, vemos a Volkswagen ameaçando fechar fábricas no país pela primeira vez na sua história. O fato é que as pessoas precisam entender como é o circuito monetário no capitalismo.

Como é?

O gasto de um é a receita de outro. Ou seja, um gasto transforma-se em receita que, na sequência, vira gasto e novamente receita. Isso quer dizer que a renda não está dada numa caixinha. Para que ela apareça, é preciso que o circuito gire. E ele rola por meio do gasto privado ou público. Se eu entrar em acordo com as pessoas que moram no meu bairro e todos pararmos de gastar por um mês, o que acontece? Fecha tudo.

Mas as críticas apontam para despesas excessivas, a caminho da lógica de que o “gasto é vida”, como chegou a dizer a ex-presidente Dilma Rousseff.

Vejo que essa questão tem sido encaminhada para inspirar uma dúvida insidiosa. Para muitos, gasto significa extravagância. Um homem que é extravagante logo se torna pobre. Como, então, uma nação pode tornar-se rica, fazendo o que empobrece um indivíduo? Esse pensamento desnorteia o público. No entanto, um comportamento que pode fazer um único indivíduo pobre pode fazer uma nação rica. Quando um indivíduo gasta, ele não afeta só a si mesmo, mas a outros. A despesa é uma transação bilateral. Se eu gastar minha renda para comprar algo que você pode fazer para mim, eu não aumentei minha própria renda, mas aumentei a sua.

Qual é o limite dessas despesas?

Há apenas um limite para que o rendimento de uma nação possa ser aumentado desta forma: o limite fixado pela capacidade física de produzir. Abster-se de gastos em um momento de depressão, não só falha, do ponto de vista nacional, como significa desperdício de homens e máquinas disponíveis, para não falar na miséria humana. A nação é uma coleção de indivíduos. Se por algum motivo os indivíduos não estão dispostos, cada um em sua capacidade privada, a gastar o suficiente para empregar os recursos com os quais a nação é dotada, então é o governo, o representante coletivo de todos os indivíduos, deve preencher essa lacuna.

Mas teremos um superávit primário [receita maior que despesas, antes do pagamento dos juros]?

Acho que teremos superávit primário e isso é importante porque vai acalmar a tigrada.

Como o senhor avalia as oportunidades de desenvolvimento do Brasil?

O Brasil sempre manteve relações com o resto do mundo muito interessantes. É verdade que, neste momento, todo mundo está chutando o balde para se defender. Os Estados Unidos estão tentando conter o impulso chinês. Mas a China está num momento diferente, em que tenta ampliar espaços de relacionamento. Com isso, o Brasil pode exercer sua vocação mais internacionalista. Os chineses já investem aqui em energia. Podemos ter outros projetos nos quais eles tenham interesse em participar

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