11 novembro 2024

Neofascismo atual

Por que devemos falar de fascismo?
Os movimentos fascistas não acabaram com as mortes de Mussolini e Hitler. Pelo contrário, a experiência fascista extrapola a presença física desses dois
Railson Barboza/Le Monde Diplomatique  

O dia 9 de novembro é celebrado como o “Dia Internacional contra o Fascismo e o Antissemitismo”. Para além, é um dia marcado por tributos e recordações, em especial na Alemanha, que rememora a “Noite dos Cristais” (Kristallnacht), massacre antissemita que resultou em destruição e vandalismo nas sinagogas em todo o Reich em 1938, e a queda do Muro de Berlim, fato que possibilitou a reunificação do país, em 1989. 

Com 17 anos de antecedência, em 1921, nessa mesma data, em Roma, uma moção de Michele Bianchi proclamou a constituição do Partido Nacional Fascista. O mais curioso é que Bianchi, assim como Mussolini, era sindicalista e foi membro do Partido Socialista Italiano, mudando seu pensamento a partir do apoio à entrada da Itália na Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Para fins de conhecimento, no recém-formado governo fascista, Bianchi era considerado o “colaborador mais próximo de Benito Mussolini”, ocupando o cargo de secretário-geral, e, posteriormente, foi demitido em 1923 ao assumir o Grande Conselho do Fascismo, sendo, um ano depois, eleito para a Câmara dos Deputados. Todavia, para entendermos como o fenômeno do fascismo, tema deste opúsculo, cresce e incorpora adeptos, mesmo na contemporaneidade calejada por seus sinais, discursos e alvos, é necessário compree nder qual é a substância do fascismo, o seu significado, qual é a sua ameaça e como podemos defini-lo.

O que é fascismo?

Antonio Scurati, importante escritor e professor da Universidade de Milão, apresenta uma perspectiva embasada no pós-guerra de que o fascismo só pode ser compreendido e debatido a partir da consciência de que é um fenômeno propriamente italiano, ou seja, com raízes na península e características próprias daquela região. O motivo de sua proliferação nos últimos anos, segundo o estudioso, deve-se ao não enfrentamento dos próprios italianos com seu passado e à proliferação de elementos “neofascistas” no mundo, que são incorporados por atores políticos extremistas de acordo com suas necessidades e finalidades locais.

Para Salvemini e Roselli, o fascismo é definido como uma política que se utiliza da burocracia para substituir as velhas classes dirigentes. Em si, o fascismo é incapaz de realizar até mesmo seus objetivos e de resolver as contradições da sociedade capitalista, apresentando uma solução vazia de conteúdo para diversos problemas e buscando no discurso antidemocrático a saída para sustentar seus planos de permanência e proliferação. A democracia, desse modo, torna-se a antítese da apologia autoritária defendida pelos líderes fascistas, evitada a qualquer custo na sociedade autocrática. O nacionalismo, acima dos ideais humanitários e democráticos, porta mais que um projeto de poder ou permanência, sendo percebido por seu desejo de normalizar o terror e a violência. Isso está em seu DNA.

Segundo Robert Paris, em seu livro As Origens do Fascismo, o Risorgimento pode ter deixado uma lacuna propícia aos discursos fascistas, no que diz respeito à falta de participação das massas populares e à vulnerabilidade da burguesia enquanto classe, gerando um cenário de atraso no desenvolvimento econômico e retrocesso das estruturas italianas. A partir disso, entendemos o que Giovanni Gentile, filósofo, político e figura expoente do fascismo italiano, observa e define em Origini e dottrina del fascismo: “o fascismo é um segundo Ris orgimento”. Os objetivos das classes subalternas são diluídos e substituídos pelos interesses “nacionais”, num processo de subversão do sentido de “popular”, que passa a ser compreendido como “interesse nacional”. Assim, tanto a classe burguesa — que apoiou a gênese do movimento fascista como meio de sobrevivência e alcance de poder — quanto a classe trabalhadora não ofereceram forte resistência ao “novo Risorgimento”, visto o terreno formado e propício para que os ideais de Mussolini fossem germinados e evoluíssem.

Categoricamente, o fascismo é caracterizado pelo medo ao diferente, pela forma violenta de expressão, pelo populismo e pela exaltação de um líder, pela repressão e pela criação de um contínuo estado de ameaça (seja ele econômico, político ou social). Umberto Eco, filósofo e semiólogo italiano falecido em 2016, apresenta a urgência em apontar a ameaça causada pelo fascismo, que está longe de ser um momento restrito à história italiana. O fenômeno, para Eco, se adapta conforme as circunstâncias, culturas e particularidades específicas, ganhando um novo corpo a cada época. Por isso, na visão do autor, podemos falar em “fascismos”, lamentavelmente, inclusive, em nossa contemporaneidade. 

O falso sentimento de grandeza

Um dos interesses do fascismo é criar um gosto pelo monumental, pelo mitológico e pelo fantasioso, com o intuito não apenas de subverter, mas também de iludir os sentidos. Essa falsa consciência não pode ser separada de uma degradação da historicidade e da temporalidade, sendo evidente na pretensão (tanto do nazismo quanto do fascismo, por exemplo) de retomar referências históricas que remetam à grandeza: “Reich de Mil Anos” ou “Terceira Roma”. Valoriza-se, portanto, o espaço em detrimento da temporalidade. A busca por uma “identidade perdida”, criando antagonistas e contradições que justifiquem a liberação desordenada dos impulsos, tem por finalidade a construção de uma lógica que justifique o discurso do “fim da história”. A tara fascista pelo trágico e pelo apocalíptico perd ura ao longo dos anos, tornando-se motor de muitos discursos espalhados pelo mundo. Por quê? Justamente pela prisão que o medo constrói. São em momentos de aparentes mudanças e crises que o fantasma do fascismo volta a assombrar.

Qual a face atual do fascismo?

Há muitos anos, media-se a força de uma ideologia não somente pelo número de seus adeptos, mas pelo impacto causado por suas manifestações públicas de apoio. Passeatas, manifestações nas ruas, protestos — todos esses instrumentos eram utilizados no intuito de mostrar apoio ou insatisfação com coisas ou pessoas, com regimes ou líderes. O primeiro grande impacto público do fascismo em terras italianas, sem dúvida, foi a “Marcha sobre Roma”, em 1922, sob a batuta de Benito Mussolini, manifestação fascista com características de golpe de Estado. Essa demonstração pública de apoio fez com que as estruturas democráticas daquele país ficassem vulneráveis aos ataques políticos que viriam a suceder.

É importante lembrar que os movimentos fascistas não acabaram com as mortes de Mussolini e Hitler. Pelo contrário, a experiência fascista extrapola a presença física desses dois. Outros países europeus vivenciaram o fascismo sob a regência de líderes autoritários, naquele contexto, como Salazar em Portugal e Franco na Espanha, pois esse múnus ditatorial engloba relações de poder em uma escala macro, além de interesses sociais e econômicos que abrangem mais do que o Estado e o governo. As ditaduras fascistas demonstraram aversão à pluralidade de pensamento e à democracia, pois o “oposto” é considerado uma ameaça desde a sua manifestação inicial. Por conta disso, há uma necessidade vital no fascismo em seguir padrões e controlar, sem medida, tudo o que envolva um risco para sua permanência no poder.

O modus operandi continua o mesmo nos dias atuais: perseguição, violência e intolerância. O filósofo Theodor Adorno, em seu livro Aspects of the New Right–Wing Extremism, nos alertou, na década de 1960, sobre o retorno do fascismo e que não devemos “subestimar esses movimentos por causa de seu baixo nível intelectual”. Com a democratização e a expansão das mídias sociais, esses movimentos extrapolam as limitações geográficas e se organizam em novos blocos: não são apenas organismos partidários, mas digitais. A produção de conteúdo nas redes digitais, financiada por reacionários e bilionários espalhados pelo mundo, tornou-se matéria imprescind&i acute;vel na arena de disputa da hegemonia.

A estratégia de expansão do fascismo atual (ou neofascismo, se preferir) está alicerçada em quatro colunas: 1) atuação nas redes digitais; 2) rompimento do debate baseado em fatos; 3) nova roupagem para valores reacionários; 4) desinformação e expansão de fake news. A internet se tornou um veículo primordial e necessário para os extremistas na disputa por espaço e hegemonia política e, por conta dos bons resultados nos últimos anos, no que diz respeito às eleições ao redor do mundo, o fluxo de desinformação é contínuo, sem parar. Os alvos são sempre os mesmos: a política é descredibilizada; a democracia é posta em risco; a misoginia e o racismo são adotados como princípios norteadores.

Para completar, assim como fizera Mussolini na Itália ao tentar se aproximar da religião católica com as concordatas envolvendo o Vaticano, com o intuito de maquiar sua violência e autoritarismo sob o véu da piedade, atualmente são os fundamentalistas religiosos (com menção honrosa à nossa bancada evangélica) que se prestam ao papel de “serviçais” dos neofascistas.

O dia 9 de novembro é reservado para lembrarmos as atrocidades do passado, para não repetirmos no presente os mesmos erros e comprometermos o futuro de todos. Seria importante que tomássemos cuidado com os movimentos de certos atores políticos por aí…

Railson Barboza é bacharel em Filosofia (PUC-Rio), doutorando e mestre em Política Social (UFF).

[Foto: Manifestação antifascista, antirracista e pela saida do presidente Bolsonaro, ocupa Esplanada dos Ministérios em 2020. Créditos: Leopoldo Silva/Agência Senado]

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