Ainda Estou Aqui hasteia a bandeira da democracia no Oscar
Para além de suas qualidades técnicas e artísticas, filme de Walter Salles, baseado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, reforça e amplia a convicção da jornada pela memória, verdade e justiça
Editorial do 'Vermelho'
A presença de Ainda Estou Aqui no Oscar 2025 tem elevado significado cultural e político não só para o Brasil – mas também para o mundo. Nesta quinta-feira (23), o longa-metragem dirigido por Walter Salles recebeu três indicações da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas: melhor atriz (Fernanda Torres), melhor filme internacional e melhor filme. A nomeação à principal categoria da premiação é particularmente histórica. Pela primeira vez em 97 edições do Oscar, uma produção do Brasil (e da América do Sul) disputa a estatueta de melhor filme.
Já Fernanda Torres, recém-premiada como atriz em drama no Globo de Ouro, pode se tornar a primeira latino-americana a receber o Oscar de melhor atriz. A própria indicação como uma das cinco melhores atuações femininas de 2024 já é um contundente reconhecimento à sua entrega ao papel de Eunice Paiva, viúva do ex-deputado Rubens Paiva (Selton Mello), um dos mais conhecidos desaparecidos políticos do regime militar (1964-1985). Fernanda encarna a fibra de uma mulher que – assim como muitas mães, avós, esposas, irmãs e filhas de vítimas da ditadura – escreveu páginas importantes da histórica luta por justiça, memória e verdade.
Para retratar o drama da família Paiva, Ainda Estou Aqui se baseia no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, filho de Eunice e Rubens, além de autor de Feliz Ano Velho (1979). Das páginas para a tela, a história ganhou o mundo. Foi vista por mais de 3,6 milhões de brasileiros desde sua estreia nos cinemas do País, em novembro passado. Fora do Brasil, já arrecadou mais de e R$ 5,8 milhões em bilheteria, tendo lotado salas em países como Estados Unidos, Portugal e França. Italianos, espanhóis e ingleses serão os próximos a terem a oportunidade de conhecer sua potente mensagem.
É um êxito do cinema brasileiro – de sua força e de suas virtudes, de sua história e de sua resistência, de seus artistas e seus profissionais. Interpretações como as de Fernanda Torres, Selton Mello e Fernanda Montenegro demonstram também a qualidade singular de atrizes e atores do País, sob a sensível direção de Walter Salles, que leva ao público, de forma realista, um drama com conteúdo humanista e senso de justiça.
O prestígio de Salles é outro trunfo do filme. Seu Central do Brasil, indicado em 1999 ao Oscar de melhor filme estrangeiro e melhor atriz (Fernanda Montenegro), é uma das obras mais premiadas do cinema nacional. Diários de Motocicleta (2004), sobre uma viagem do jovem Ernesto “Che” Guevara pela América do Sul, venceu o Bafta de melhor filme estrangeiro e conquistou o Oscar de melhor canção original.
Agora, com Ainda Estou Aqui, o diretor ajuda a demonstrar que o cinema brasileiro voltou à cena sob o governo de reconstrução do presidente Lula, depois do refluxo obscurantista da extrema direita bolsonarista. Apesar dos danos causados às artes em geral e ao cinema em particular, o ex-presidente Jair Bolsonaro não conseguiu promover totalmente o desmonte.
A bem-sucedida política de Estado para o audiovisual erguida durante o ciclo progressista liderado por Lula (2003-2010) e Dilma Rousseff (2011-2016) sobreviveu. Notadamente no período em que o cineasta e produtor Manoel Rangel foi diretor-presidente da Ancine (Agência Nacional do Cinema), de 2006 a 2017, essa política deixou legados como o Fundo Setorial do Audiovisual (Lei Nº 11.437/2006), a Lei da TV Paga (Lei 12.485/2011) e o programa Cinema Perto de Você (Lei 12.599/2012).
Ainda Estou Aqui é, ainda, um marco político. Suas indicações ao Oscar ocorrem três dias após a passagem dos 54 anos do sequestro de Rubens Paiva, em sua residência, no dia 20 de janeiro de 1971, por homens armados do 1º Exército, no Rio de Janeiro. O ex-deputado foi posteriormente executado no Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi).
Os responsáveis por sua morte jamais foram punidos. Da mesma maneira, a Procuradoria-Geral da República (PGR) segue sem responder ao ofício que recebeu do Supremo Tribunal Federal (STF), cobrando que o órgão se manifeste sobre a perseguição a Rubens Paiva. Nesta quinta-feira, porém, a família teve uma vitória: a certidão de óbito do ex-deputado foi mais uma vez retificada, para incluir a informação de que ele teve morte “não natural, violenta, causada pelo Estado brasileiro no contexto da perseguição sistemática à população identificada como dissidente política do regime ditatorial instaurado em 1964”.
Para além de suas qualidades técnicas e artísticas, o filme de Walter Salles reforça e amplia a convicção da jornada pela memória, verdade e justiça. Impulsiona a luta de familiares pelo direito humanitário de sepultar os restos mortais de seus entes queridos, assim como das organizações sociais e dos partidos políticos na busca do paradeiro dos desaparecidos, da abertura dos arquivos da ditadura e da punição aos que cometeram torturas, assassinatos, ocultação de cadáveres e outros crimes hediondos.
Ainda Estou Aqui cativa o público por trazer à reflexão a defesa da democracia num momento em que o País luta contra os efeitos dos ataques bolsonaristas à legalidade constitucional. Também remete à lembrança de que o ex-presidente é um ativo cultuador da tortura e de torturares, fazendo, recorrentemente, apelos pela volta dos métodos daquele regime tirano. No governo Bolsonaro, artistas e outros expoentes da cultura foram duramente atacados. O ex-presidente e outros brutamontes do bolsonarismo enxovalharam a cultura nacional.
O sucesso internacional do filme também confronta a onda neofascista, sobretudo na Europa e nas Américas, hasteando a bandeira da democracia no Oscar. Seu conteúdo interage com as preocupações diante da ascensão da extrema direita em âmbito mundial, cujo exemplo mais proeminente são as medidas e promessas do novo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, de viés racista, xenofóbico, misógino, homofóbico e belicista. Não é à toa que Trump, com sua negação cultural, já ameaçou intervir na poderosa Hollywood, ao nomear “embaixadores especiais” para serem seus “olhos e ouvidos” na indústria cinematográfica.
Seja qual for o resultado da cerimônia do Oscar, em 2 de março, em Los Angeles, Ainda Estou Aqui é uma obra de arte vitoriosa, que representa os partidários da paz, da civilização, da democracia. Espectadores de todo o mundo acompanharão a entrega das estatuetas para torcer por mais prêmios ao filme. É a prova de que a cultura mantém seu papel de expressão da consciência e dos sentimentos do povo, como um rosto do país no mundo e parte dinâmica da economia nacional, integrante de um projeto nacional de desenvolvimento.
Leia: Fernanda Torres do nosso cinema https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/01/fernanda-do-nosso-cinema.html
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