Brasil, BRICS+ e as rotas que irritam Trump
Entre guerras e crises, o bloco traça novas rotas de desenvolvimento. O
corredor bioceânico, o reposicionamento econômico do Irã e sistemas de
pagamento fora do SWIFT fortalecem o Sul Global e provocam reações agressivas
dos EUA
Javier Vadell/Portal Grabois www.grabois.org.br
Brasil e os BRICS sob ataque: entre as guerras e a necessidade de um novo
paradigma de desenvolvimento – Nos dias 6 e 7 de julho, o Brasil
sediou a 17ª Cúpula do BRICS no Rio de
Janeiro. Como anfitrião da cúpula, o governo de Luiz Inácio Lula da Silva
enfrenta riscos e desafios significativos neste período de caos sistémico.
Alguns são de natureza doméstica e organizacional enquanto outros decorrem do
turbulento contexto internacional, especialmente após a escalada dos conflitos
na Ásia Ocidental. Isso é particularmente relevante após o ataque de Israel ao
Irã, ocorrido em meio a negociações diplomáticas entre os Estados Unidos e o
Irã para resolver uma disputa de décadas sobre o programa nuclear de Teerã. É
importante lembrar qu e na sexta-feira, 23 de maio, delegações de ambos os
países retomaram as conversas iniciais em Roma, Itália.
Como aponta o sinólogo brasileiro Evandro Carvalho, o Brasil enfrentou
um problema de liderança e coordenação em relação à cúpula do BRICS. Esse
momento delicado se tornou mais visível devido à falta de consenso nas reuniões
preparatórias, como observado na reunião de chanceleres. Esses problemas foram
exacerbados por fatores internos e externos à política brasileira. Carvalho
enfatiza que o Brasil careceu de clareza estratégica, preferindo priorizar uma
agenda política mais alinhada aos temas do G20 (realizado no ano passado) e da
Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP30), que ocorrerá
em novembro deste ano em Belém do Pará.
Devido especialmente a eventos externos e a hesitações internas na
antessala de uma nova era, a 17ª Cúpula dos BRICS no Rio de Janeiro teve
momentos diversos e leituras diferentes num contexto preocupante dada a
potencial ameaça de uma Terceira Guerra Mundial, onde guerras localizadas nos
limites das placas tectônicas da geopolítica global se sobrepõem às guerras
híbridas fragmentadas.
Nossa leitura da situação é que a Cúpula dos BRICS de 2025 no Brasil
esteve condicionada pela política externa agressiva de Donald Trump, ao apoiar os ataques israelenses
aos territórios palestinos ocupados e, recentemente, o ataque “preemptivo” ao Irã
— como o próprio Trump reconheceu. Em outros termos, o grande objetivo tático
da administração estadunidense foi enfraquecer o processo embrionário da
globalização com características chinesas baseado no
multilateralismo inclusivo, que tem a formação política BRICS+ como
iniciativa geopolítica primordial e a Iniciativa do Cinturão e a Rota (ICR)
como plataforma infraestrutural. Fragmentar se us componentes (membros) e minar
o novo paradigma que ameaça o hegemonismo dos Estados Unidos da América (EUA)
são objetivos fundamentais da presidência Trump.
O papel do Brasil como país anfitrião na cúpula do BRICS+ de 2025 e seus
dilemas de política externa são moldados por uma dinâmica geopolítica global
altamente perigosa, caracterizada por grande incerteza e forte polarização.
Essa dinâmica se baseia na narrativa da Guerra Fria promovida por Washington e
é absorvida pelas contradições políticas internas, que, por sua vez, alimentam
ainda mais as expressões radicais de novas direitas.
Um novo paradigma inclusivo sob ataque
O Fórum China-CELAC, a Iniciativa Cinturão e Rota (BRI) e
os BRICS estão moldando uma nova globalização em um cenário geopolítico em
transformação, e o Brasil está, em 2025, no epicentro geopolítico regional
dessa nova era:
Primeiro, devido à política externa ativa do Presidente Lula da Silva,
que assumiu uma postura mais autonomista, com foco no Sul Global, nos BRICS, na
Ásia e na República Popular da China (RPC), especialmente após a vitória de
Donald Trump nos EUA.
Em segundo lugar, isso é reforçado pelo fato de o Brasil, como
mencionamos, ter sediado a cúpula dos BRICS no Rio de Janeiro.
E, terceiro, porque o Brasil também pretende reafirmar sua liderança nas
negociações sobre mudanças climáticas na COP30.
Em um cenário global caracterizado pela incerteza econômica e em meio
à guerra tarifária desencadeada pelo
governo americano, a América Latina e o Caribe (ALC) estão traçando
seu próprio destino. Nessa região, o Brasil exerce uma liderança implícita, o
que acarreta uma série de desafios.
O retorno de Donald Trump ao poder, com uma agenda comercial global
neoconservadora, negacionista das mudanças climáticas e abertamente
intimidadora, parece ter criado incentivos para que a política externa
brasileira reconsidere suas alianças, com foco em seus pares asiáticos e nos
BRICS.
A relevância da viagem de Lula à Ásia nesse contexto era inegável. Seu
itinerário começou com visitas ao Japão e ao Vietnã. Logo em seguida, o
presidente brasileiro viajou a Moscou para as comemorações dos 80 anos da
derrota do nazismo, onde não apenas participou do evento como também manteve um
encontro bilateral com o presidente Putin e assinou acordos em ciência e
tecnologia. Para concluir sua viagem, Lula visitou a China para a Reunião
Ministerial do Fórum China-CELAC e uma cúpula bilateral com o presidente Xi
Jinping, encontros que culminaram na assinatura de 16 acordos e na declaração
de importantes comunicados.
No entanto, justamente quando a situação parecia um pouco mais estável,
a agressão ao Irã, membro do grupo BRICS+, da Organização de Cooperação de
Xangai (SCO) e componente crucial da plataforma da ICR, serviu como um recado,
no atual caos sistêmico, de que uma situação aparentemente estável pode mudar
muito rapidamente.
Uma guerra aos BRICS e à Iniciativa do
Cinturão e a Rota de maneira simultânea
A cúpula dos países BRICS+ no Rio de Janeiro acabou e podemos falar que
teve um sucesso relativo. O que aparentava ser uma reunião não tão
transcendente resultou em alguns acontecimentos merecem ser destacados,
especialmente na área financeira entre os BRICS e no que respeita à expansão da
cooperação nos setores de comércio, finanças, infraestrutura, economia digital,
inovação, tecnologia, economia verde e do setor aeroespacial com a China,
especificamente como produto do encontro entre o primeiro-Ministro da China, Li
Qiang e o presidente Lula.
Esses assuntos são extremamente delicados e vistos como ameaças diretas
para os interesses dos EUA. Nessa direção, os ataques do governo Trump ao
BRICS+ começaram antes da cúpula iniciar e nada indica que as águas acalmem no
futuro, muito pelo contrário. Para isso, convidamos realizar um exercício retrospectivo
e observar uma linha do tempo com cronologias recentes, desde maio de 2025,
para observar o cenário geopolítico prévio à cúpula que afetou direta e
indiretamente os países do BRICS+.
Em 23 de maio, como mencionamos, delegações do Irã e dos EUA retomaram
as negociações para resolver uma disputa de décadas sobre o programa nuclear de
Teerã. Parecia haver uma luz de esperança que poderia levar à retomada das
relações EUA-Irã e à retirada do Irã de seu isolamento de anos, produto das
sanções do Ocidente geopolítico.
Alguns dias depois, ocorreu um evento que passou despercebido pela
grande mídia e representa uma fabulosa jogada geopolítica entre China e Irã,
que tem suas raízes nos acordos de 25 anos assinados por ambos os países em
2021 e ratificados no ano seguinte. A materialização desse quadro foi a
inauguração do primeiro trem de carga conectando China e Irã. Apesar das
sanções dos EUA buscarem prejudicar o comércio de petróleo de Teerã e isolar
Pequim, a linha ferroviária não só impulsionaria o comércio entre os dois
países, mas também enfraqueceria ainda mais a influência dos EUA na
região.
O corredor ferroviário China-Irã já está em operação e o primeiro trem
de carga da China chegou ao Irã em apenas 15 dias, significativamente mais
rápido do que os 40 dias necessários pelo transporte marítimo. Este projeto
decorre do acordo econômico de US$ 400 bilhões assinado entre a China e o Irã
em 2021 como parte da ICR, que foi anunciada como a parceria sino-iraniana em
2016 por Xi Jinping.
Por outro lado, devemos considerar outra peça do quebra-cabeça
geopolítico global: o processo de realinhamento econômico do Irã para o leste
como produto das sanções ocidentais. Em 2025, a China foi praticamente a única
compradora de petróleo iraniano, segundo a Goldman Sachs.
Esta iniciativa se junta a outras que ajudariam o Irã a sair do
isolamento internacional a que foi submetido pelos EUA, resultado das sanções
geopolíticas ocidentais. Quais consequências observamos como um processo que
derivou em ações com consequências não intencionais?
Primeiro, e paradoxalmente, as sanções contra o Irã ajudaram a
consolidar ainda mais o bloco euroasiático como uma entidade geopolítica
crucial.
Esse espaço geopolítico foi fortalecido nos últimos anos com a entrada
do Irã como membro pleno da Organização de Cooperação de Xangai (SCO) em 2023 e
como membro pleno do BRICS+ a partir de 1º de janeiro de 2024.
Nessa direção, o professor e analista geopolítico argentino Martín
Martinelli avalia que o futuro triângulo estratégico entre China, Rússia e Irã
consolidará ainda mais esse bloco eurasiano. Desta maneira, presenciamos o
surgimento de uma espécie de corolário regional muito peculiar, uma “Eurásia para
os euroasiáticos” em termos de segurança e, ao mesmo tempo, um centro
geopolítico da nova globalização impulsionada desde a China com grande destaque
para a Rússia.
Brasil 2025: reações dos EUA frente à
cúpula dos BRICS+
Nossa suposição é que o ataque de Israel ao Irã, com apoio explícito dos
EUA, e a subsequente escalada do conflito na Ásia Ocidental constituíram
simultaneamente uma ofensiva contra a ICR e contra os BRICS. Essa oportunidade
foi explorada por Washington em cinco movimentos recentes com o objetivo de
reforçar o processo de periferização das regiões que o governo americano
considera sua zona de influência — a “Otanistão”, parafraseando o jornalista
Pepe Escobar — e a América Latina e o Caribe, e simultaneamente fragmentar a
coesão dos BRICS.
Na Cúpula da OTAN, realizada em junho de 2025, em Haia, os aliados se
comprometeram a investir 5% de seu Produto Interno Bruto (PIB) anualmente em
necessidades básicas de defesa e gastos relacionados à defesa e segurança até
2035. Uma grande vitória para o governo Donald Trump.
Na véspera da Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos
(OEA), um funcionário do Departamento de Estado dos EUA declarou: os países da
América Latina e do Caribe devem escolher “de que lado estarão” em um conflito
envolvendo o Irã.
Três presidentes de países membros plenos do BRICS, Luiz Inácio Lula da
Silva (Brasil), Cyril Ramaphosa (África do Sul) e Narendra Modi (Índia) foram
convidados e participaram da cúpula do G-7 no Canadá, nos dias 16 e 17 de
junho.
Em quarto lugar, depois da cúpula dos BRICS+, Donald Trump anunciou
tarifas unilaterais de 25% aos produtos de Japão e Coreia do Sul.
Finalmente, também depois da cúpula, Trump anunciou, nas redes sociais,
tarifas de 10% aos países que que alinhem aos BRICS e, imediatamente, se
solidarizou com o líder opositor de Lula, Jair Bolsonaro, como se se tratasse
de um perseguido político.
Em meio à atual turbulência global, a 17ª Cúpula do BRICS foi realizada
no Rio de Janeiro com resultados mais interessantes do que o esperado. Embora
ausentes os presidentes Vladimir Putin e Xi Jinping, a Rússia enviou uma
comitiva numerosa e houve um compromisso claro para aprimorar novos mecanismos de pagamentos
internacionais dentro do BRICS como instrumentos que podem
desafiar o quase monopólio do sistema SWIFT. Além disso, como destaca Paulo
Nogueira Batista Jr, a presidência brasileira estimulou avanços significativos
na área financeira como orientações do Novo Banco de Desenvolvimento, sob a
presidência de Dilma Roussef, e no Arranjo Contingente de Reservas para o
aprofundamento de iniciativas financeiras novas que facilitem o uso das moedas
nacionais nas transações entre os países BRICS.
Não obstante, embora o presidente Lula reitere que os BRICS precisam
criar uma moeda alternativa, faltou uma menção na declaração de líderes para
promover a criação de uma moeda de reservas pela resistência da Índia.
O governo Lula se empenhou em realizar uma organização adequada da
cúpula. No entanto, coordenar agendas sensíveis relacionadas a questões de
segurança internacional pode se tornar um problema intratável. Isso levou as
forças políticas que unem os países emergentes e o Sul Global a se concentrarem
e replicarem uma agenda política mais alinhada com: a) os temas do G20, como
são as preocupações com as mudanças climáticas; e b) os tradicionais apelos por
reformas no Conselho de Segurança das Nações Unidas e ajustes no sistema de
governança global para maior participação dos países emergentes e do Sul
Global.
Nesse contexto, a realização de uma cúpula do BRICS+ “nas Américas” e os
avanços que envolvem projetos de infraestrutura de grande porte, ameaças ao domínio
do dólar e ao monopólio de instrumentos financeiros por parte de Ocidente foi
percebida, como previsto, como um ato de hostilidade por parte do governo
Trump, em meio ao fortalecimento do “neo-monroísmo” imperialista na região e à
crescente rivalidade entre os Estados Unidos e a China.
Cabe destacar o memorando de entendimento entre o primeiro-ministro chinês Li Qiang e o presidente Lula que prevê um investimento em infraestrutura sem precedentes no Brasil, um corredor ferroviário que promete unir os oceanos Atlântico e Pacífico, como observamos no mapa abaixo. No âmbito da cúpula dos BRICS+, Brasil e a China assinaram um acordo para iniciar estudos conjuntos de um projeto que pretende integrar as ferrovias de Integração Oeste-Leste (Fiol), Centro-Oeste (Fico) e a Ferrovia Norte-Sul (FNS) ao recém-inaugurado Porto de Chancay, no Peru.
O projeto de corredor ferroviário Peru-Brasil com capital chinês está inserido num contexto de guerra mundial que adquire, na contemporaneidade, diversas e múltiplas formas de se expressar no caos sistémico: guerra híbrida e fragmentada, guerras localizadas nos limites das placas tectónicas geopolíticas, guerra comercial e guerra tecnológica. À medida que a situação na Ásia Ocidental se torna mais complexa e a incerteza geopolítica se aguça, a narrativa de Guerra Fria dos Estados Unidos em relação aos países do Sul Global se intensifica, acompanhada de intimidação e ameaças, tanto explícitas quanto veladas.
O Brasil enfrenta um dilema inevitável. Diante dos resultados da cúpula,
embora modestos, e da fragmentação interna do governo Lula — entre setores mais
alinhados com os BRICS e aqueles menos interessados, que, na verdade, tendem à
reaproximação com o Norte Global —, a liderança de coordenação do Brasil no que
resta do ano na presidência dos BRICS+, será seriamente desafiada.
Vinte países formam parte dos BRICS+ atualmente e mais de quarenta
querem formar parte do agrupamento. Evidentemente, trata-se de um polo de
atração para os países do Sul Global. Os ventos da geopolítica mundial e a
lógica das disputas regionais parecem ser o que determinará a direção, a
maneira e os critérios do crescimento do BRICS+ que chegou para ficar para
moldar a multipolaridade contemporânea.
Javier Vadell é professor do departamento de Relações
Internacionais da Pontifícia Universidade Católica – PUC de Minas Gerais.
*Texto é uma versão atualizada do artigo De cara a la cumbre de Río:
Brasil y el BRICS bajo ataque originalmente publicado no site Tektonikos.
Foto: Alex Ferro/BRICS Brasil
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Por que Trump teme o sistema monetário do
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