As três vidas de Tereza
Homenageada
com o “Prêmio Orgulho de Pernambuco”, pintora diz que sempre foi uma
transgressora e que pagou muito caro para ser livre
Isabelle Barros, no Diário de Pernambuco
Tereza Costa Rêgo abre as portas
de sua casa, no coração do Sítio Histórico de Olinda, e mostra sua coleção de
vassouras. “Sou uma feiticeira”, diz. A jovialidade quase sobrenatural que
apresenta aos 87 anos depõe a favor de suas palavras. Mas, quando se trata da
pintura, sua paixão e ofício, é possível dizer que a arte apresentada por ela
ao mundo está mais próxima da alquimia. A cor que a define - o vermelho - pode
ser vista tanto nos quadros da sua casa quanto em sua reserva técnica,
localizada na mesma Rua do Amparo, onde ela vive há mais de 30 anos.
Quanto mais entramos no casarão
da Rua do Amparo, que ela chama de lar desde a sua volta ao Brasil, no início
dos anos 1980, mais nos aproximamos do que ela chama de “útero”: o seu ateliê.
Generosa, a artista franqueia a mim e à fotógrafa que me acompanha o acesso à
sala, um privilégio concedido a poucos. Com tintas, quadros e uma rede
recém-colocada, ela define este como o lugar onde se sente mais à vontade. “Me
sinto eu mesma aqui”. Antes de chegar lá, é preciso passar pelo jardim, feito
em um terreno comprido e estreito, típico da Cidade Alta. “[O paisagista] Burle
Marx vinha aqui vez ou outra e me deu muitas dicas para fazer meu jardim. Já
trabalhei com paisagismo e ele olhava as minhas escolhas, dizia se estava bom”.
A temporada mais recente em
Olinda simboliza uma das três grandes transformações vividas pela pintora.
“Vivi três vidas em uma”, lembra Tereza. A artista nasceu em 1929 e parecia
destinada a reproduzir o destino de uma moça de família tradicional recifense:
bem educada, bem casada e cuidada pelos cinco irmãos mais velhos. No entanto,
essa não era a vida que Terezinha - seu nome de batismo - desejava para si.
A arte sempre fez parte de sua
vida, mas nem sempre como fonte de seu sustento. Quando era jovem, Tereza fez
Escola de Belas Artes e conheceu amigos de toda uma vida. Reynaldo Fonseca,
Aloisio Magalhães, Gilvan Samico, Francisco Brennand foram alguns de seus
colegas. Com o tempo, veio um casamento bem longe do ideal, embora dinheiro não
faltasse. Quando conheceu o dirigente comunista Diógenes Arruda, houve o fim do
primeiro ciclo de sua vida. Apaixonou-se por ele e separou-se do então marido.
“Sempre fui uma transgressora nata. Paguei muito caro para ser livre”.
Com o golpe militar, Tereza
precisou sair do Brasil. Viajou o mundo como Joanna, seu codinome pelo Partido
Comunista, sempre ao lado de Diógenes. Pintava quadros, mas dificilmente
poderia ficar com eles, dada a sua situação nômade por conta do exílio. “Dei
minhas telas de presente a pessoas em vários lugares do mundo”. Entre as dores,
estava a de ficar longe das duas filhas e de Pernambuco, de onde sentia saudade
de coisas simples, como comer pitanga. Após passar 18 anos como Joanna, soube,
com Diógenes, da Lei da Anistia. Os dois voltaram, mas ele faleceu na chegada,
ainda no aeroporto, em 1979. Da dor, Joanna se tornou Tereza. “Sempre tinha
sido consequência dos outros: filha, irmã, esposa. A partir daquele momento,
decidi ser eu. Antes, eu era uma pintora bissexta. Mas, na minha vida atual, eu
pinto, pinto, pinto e vivo das minhas mãos”.
Foi a partir dessa necessidade de
reconstruir a própria vida que Tereza decidiu se fixar em Olinda, onde passou a
abraçar a pintura com força - sua produção cresceu e sua reputação como pintora
relevante também. Desde os anos 1980, ela produz com ímpeto telas que deram
origem a exposições como Imaginário do bordel - o parto do porto (2003). Na
mostra, a artista materializou em imagens as histórias de bordel ouvidas
enquanto fingia que dormia no colo de seus irmãos. O trabalho que a comove nos
últimos tempos é As mulheres de Tejucupapo, o maior quadro de sua vida, com 15
metros de largura, finalizado recentemente e que levou quatro anos para ficar
pronto. O olhar épico, afinado com o de grandes pintores, como o de Brueghel,
Portinari e Goya, traz quatro planos diferentes e revela uma maturidade
artística inquestionável.
Embora tenha sido atingida por
tragédias pessoais, Tereza é a imagem da resiliência. Resistir pela arte é o
caminho que ela decidiu tomar desde que perdeu seu amor, Diógenes Arruda, e
encontrou a si própria por meio da pintura. É com risadas e com um copo de
vinho na mão que ela deseja ser lembrada. A casa da Rua do Amparo também é
parte importante do “estar no mundo” da artista. Foi nela, por exemplo, que a
pintora se apaixonou pelo Homem da Meia-Noite, outra figura emblemática de
Olinda. “Você não sabe como o exílio é terrível, mas de todas as coisas ruins
que me aconteceram, me acostumei a ver ao menos algum lado bom”. E, na hora da
despedida, a artista ainda encontra tempo para uma última gentileza e me dá um
galho de arruda. “Estou dando a você algo que não se dá”.
Leia
mais sobre temas da atualidade:
http://migre.me/kMGFD
Nenhum comentário:
Postar um comentário