Luís Nassif, Jornal GGN
Ontem de manhã fiz uma palestra
no encontro do Instituto Ethos sob o tema “Operação Lava-Jato: como equacionar
a relação entre desenvolvimento econômico e combate à corrupção”. Era para
contar com a participação de um membro do Ministério Público Federal (MPF).
Nenhum dos
convites foi aceito.
O
Ethos lançou uma bela carta sobre o tema (http://migre.me/v2nWL),
com um conjunto de princípios ideais, entre os quais:
·
Apoiamos o avanço da operação no âmbito dos marcos constitucionais, sem foco
partidário, vazamentos seletivos ou qualquer tipo de influência de interesses
alheios às suas metas.
·
Ela tem de ser ampla e irrestrita, devendo prosseguir enquanto houver
irregularidades a apurar, independentemente de quem atingir, esteja essa pessoa
no poder ou não.
·
Hoje, somente 5% dos condenados na Operação Lava-Jato são políticos. Sabemos
que há foro privilegiado, mas é necessário obter, de fato, progressos na
celeridade e na efetivação dos processos que envolvem a classe política.
A operação que o Ethos apoia
seguramente não é a que estamos testemunhando.
Na minha apresentação, procurei
demonstrar que essa operação ideal é improvável na conjuntura política atual.
Meu xadrez é o seguinte:
1. A nova
jurisprudência penal, a ampliação do poder de investigação do Ministério
Público Federal, inclusive com o acesso a dados internacionais, conferiu poder
enorme à corporação.
2. Não existe
superpoder que possa depender exclusivamente dos princípios éticos e valores
morais individuais de seus membros. Com a ausência de um sistema de freios e
contrapesos, a lógica do MPF será cada vez mais de tentar ampliar o espaço, até
bater no muro de um pacto entre os demais poderes.
3. A ocupação
do espaço pelo MPF passou pela parceria com a mídia e pelo apoio da classe
média ascendente, com a qual a corporação é mais identificada. O pacto se deu
em torno do combate ao inimigo comum, o PT. Sem a figura do inimigo e a prática
do direito penal do inimigo, a aliança não se sustenta.
4. O primeiro
uso da força pelo MPF foi na AP 470, que desequilibrou o jogo político do nosso
precário presidencialismo de coalizão, empurrando o governo Lula para os braços
do PMDB, usando a Petrobras como moeda de troca, conforme se conferiu na
delação do ex-senador Delcídio do Amaral.
5. O segundo
movimento foi com a Lava Jato explorando as vulnerabilidades criadas pelo
primeiro movimento, e levando à queda do governo.
Portanto, fez-se uma campanha
moralista, fundada na luta anticorrupção e o resultado final foi o
desmantelamento do sistema partidário e a entrega do comando do país ao grupo
político mais suspeito das últimas décadas, que mais cedo ou mais tarde
utilizará o poder do qual se viu revestido
para para interromper a Lava Jato e
enquadrar o MPF.
Ontem, o CNMP (Conselho Nacional
do Ministério Público) premiou a Lava Jato com destaque do ano. Prova maior de
que a miopia política não acometeu apenas os governos Lula e Dilma e o PT. É
processo generalizado.
Peça 1 – o processo judicial e a busca da verdade
Primeiro, vamos entender como
analisar um procedimento jurídico.
Meu primeiro desafio jornalístico
em temas jurídicos foi uma denúncia que fiz contra o então Consultor Geral da
República Saulo Ramos, devido a um decreto, logo após o Plano Cruzado, que
recriava a indústria de liquidação extrajudicial.
Saulo manobrava conceitos
jurídicos, que eu desconhecia.
No meio do debate, consegui uma
fonte especialíssima, um Ministro do STF (Supremo Tribunal Federal), que me
passou uma lição básica para me livrar do jugo do especialista:
- O processo judicial tem que
levar à justiça. Analise a realidade e veja o resultado da decisão tomada. Se
levar a um resultado injusto, ou a lei é injusta ou a interpretação dela está
errada.
Lembro essa história para nos
debruçarmos sobre os resultados dessa metodologia do MPF de colheita de provas
– explicada em um livro de Deltan Dallagnol muito elogiado - sobre a construção
das provas através do levantamento de indícios. Ele leva à verdade e, através
dela, à justiça? Ou o excesso de poder desequilibrou o jogo a tal ponto que a
lógica do acusador se impõe por si, sem poder ser retificada pelos argumentos
da defesa?
A prova do pudim consiste em
confrontar essa metodologia com os resultados alcançados. Levou à justiça, ou
foi apenas a instrumentalização do combate ao escândalo, para benefício de um
grupo político e de uma corporação? Levou ao aprimoramento das instituições ou,
pela desorganização da política, à criação de uma realidade pior?
O primeiro passo é entender a
conjuntura que levou à consolidação desse novo modelo de operar a lei.
Peça 2- a punição dos chefes das organizações
criminosas
Me deparei com essa questão pela
primeira vez na cobertura do golpe aplicado no Banco do Comércio e Indústria de
São Paulo, o Comind, ainda nos anos 80. Era voz corrente que dificilmente os
chefes de golpe seriam apanhados porque não deixavam vestígios, assinaturas,
documentos. Simplesmente davam ordens verbais. Havia um nítido desequilíbrio em
favor do crime organizado.
Com a expansão internacional do
crime organizado, com a captura de muitos Estados nacionais pelo crime, houve
mudanças também na jurisprudência sobre o tema, aceitando que um conjunto
robusto
de indícios poderia ser tratado como prova, mesmo que não houvesse as
impressões digitais do chefe no cometimento do crime.
Essa jurisprudência surgiu a
partir, principalmente, da luta contra o tráfico de droga e contra o
terrorismo. Entende-se, daí, seu caráter draconiano.
Os indícios vão da identificação
do comando hierárquico da organização, a provas testemunhais - em geral, de
pouco valor nos processos penais. Passaram a ser aceitos também outros
instrumentos jurídicos, como o da delação premiada, que veio se somar à quebra
de sigilo telefônico, fiscal e bancário.
Flexibilizou-se radicalmente o
processo de obtenção de provas. Aí o pêndulo se inverteu completamente e o
poder acabou centralizado nos acusadores. E, como tal, sujeito às suas
idiossincrasias e preferências políticas e ideológicas.
Para não incorrer em abusos, com
enorme poder recebido, havia a necessidade do chamado intérprete da lei ter
conhecimento e observância de princípios de direitos humanos aceitos
internacionalmente – entre os quais os valores democráticos e a relevância
central do voto.
Mas não apenas isso. Não existe
instituição cuja idoneidade dependa exclusivamente dos valores individuais de
cada membro. O modelo exige os chamados freios e balanços para coibir abusos.
Não é o caso do Brasil. As
corporações se apropriaram dos órgãos de controle, que passaram a responder às
demandas corporativas.
Nos tribunais de primeira
instância, as provas indiciárias se voltam preferencialmente contra os PPPs
(preto, pobre e puta). Servem para enviar “mulas” para os presídios, mas não
alcançam os chefes do tráfico.
Na área política, em muitos
países de democracia precária – como Portugal e Brasil – o modelo agregou o
quarto P, de petista ou popular. E aí, introduziu-se no processo democrático um
enorme fator de desestabilização, no qual as armas conquistadas pelo MP, pela
lógica de poder, são colocadas
a serviço de grupos políticos e ideológicos aos
quais ele se aliou estrategicamente para ampliar seu poder.
Provavelmente a maior ameaça à
democracia, hoje em dia, seja a interferência do Ministério Público e da
Justiça no jogo político. O século do Judiciário – na celebração infeliz do
Ministro Ricardo Lewandowski – de certo modo é similar às UPPs (Unidades de
Policia Pacificadora) nas favelas. A pretexto de coibir o crime, apossam-se de
todo o território e criam um poder paralelo muito mais letal.
Peça 3 – o teste da AP 470, o "mensalão"
O "mensalão" foi o
primeiro grande processo de impacto político a testar as tais provas
indiciárias. A celebérrima frase de Rosa Weber (apud Sérgio Moro) de que
"não tenho provas (contra Dirceu) mas a jurisprudência me autoriza a
condenar", celebrava o “abre-te Sésamo” do Judiciário para abrir a caverna
onde se encontravam as capas de Super Homem, os novos superpoderes que
conquistaram.
O que havia – e isso era do conhecimento
de qualquer analista político - era o pagamento de despesas de campanha dos
pequenos partidos que passaram a fazer parte da base aliada. A acusação
defendeu a tese de que havia uma mesada intermitente para garantir a aprovação
de leis de interesse do governo.
Mais
do que isso, procedeu a enormes malabarismos para casar data de pagamento com
aprovação de leis, , inclusive para parlamentares petistas, forçando relações
de causalidade inexistentes, da maneira como descrevo no “Xadrez do não temos prova,
mas temos convicção” (http://migre.me/v2mmk).
Quem acompanhava o jogo político sabia que era uma narrativa falsa. Mas passou.
A maneira como costuraram essa
narrativa era da modalidade de “enfiar argumentos na tese a marteladas”.
1. A história do suposto
desvio da Visanet, quando se sabia que o grande financiador de Marcos Valério
era o banqueiro Daniel Dantas. A razão era simples. Para caracterizar
corrupção, o dinheiro teria que ser proveniente de ente público. Tratava-se o
dinheiro de Dantas como privado; e o da Visanet como público (embora não
fosse), devido à participação do Banco do Brasil no capital da empresa. Sem a Visanet,
portanto, a tese da PGR não se sustentaria. Não só trataram a Visanet como
empresa pública, não sendo, como denunciaram um desvio que jamais houve,
ignorando laudos de auditorias e da própria Polícia Federal.
2. A história da ida de
políticos do PTB a Portugal com Marcos Valério negociar com a Portugal Telecom
a venda da Telemig. Atribuíam ao PT. Eu tinha informações seguríssimas -
inclusive após conversas com executivos da Portugal Telecom -, que a ida foi
bancada por Daniel Dantas, que ainda mantinha o controle da Telemig e para quem
Valério trabalhava.
3. A
inclusão de José Genoíno no inquérito. O alvo era José Dirceu, então
Ministro-Chefe da Casa Civil, já que o inquérito nasceu das denúncias de
Roberto Jefferson. Mas como pegar Dirceu sem envolver o presidente do PT, José
Genoíno? Havia a necessidade desse elo na corrente (http://migre.me/v2smK).
A primeira e a segunda questão
beneficiaram diretamente Daniel Dantas.
Como foi possível que um erro
desse tamanho passasse pelo filtro da Procuradoria Geral da República, com a AP
470 sendo analisada por diversos procuradores, depois pelo relator, Ministro
Joaquim Barbosa e, finalmente, pelo pleno do STF?
Mas passou.
Havia indícios de corrupção na
decisão de Antônio Fernando de poupar Daniel Dantas (logo depois aposentou-se e
seu escritório ganhou enorme contrato da Brasil Telecom, controlada por
Dantas). Mas seria impossível, mesmo para alguém do alto do cargo de PGR, impor
uma tese dessas a todo uma equipe, se não houvesse outros ingredientes no jogo.
O endosso às teses de Antônio
Fernando foi fruto da grande celebração do MPF, ante a possibilidade de usar
pela primeira vez os superpoderes e balançar a República, a possibilidade de
impor a narrativa que quisesse, desde que escudada em campanhas massacrantes de
mídia. Foi um porre geral. E a mítica da narrativa exigia que se concentrasse
no PT todas as acusações de corrupção, transformado na fonte de toda a
corrupção. É por ali que se consolidaria a aliança com a mídia e a
identificação com os anseios da classe média.
A parceria do MPF com a mídia
esvaziou a CPMI de Cachoeira – que estava prestes a convocar Roberto Civita, da
Abril. No mesmo período, o processo sobre o “mensalão do PSDB” foi interrompido
da maneira mais canhestra possível. O Ministro Ayres Britto deveria relatá-lo
em uma sessão do STF. Houve o intervalo, ele saiu para o café, voltou e passou
por cima da pauta. Simples, assim, sem nenhuma cobrança da parte acusadora --
justamente o Ministério Público Federal.
Uma das regras básicas do
presidencialismo de coalizão é que, quanto mais fraco o governo, maiores as
concessões à fisiologia. Ocorreu com o governo FHC, após a maxidesvalorização
de 1999; e com o governo Lula, devido à AP 470.
O resultado dessa primeira
intervenção do MPF no jogo político foi o seguinte:
1. O abandono da estratégia de
Lula de montar uma base com os pequenos partidos e o fechamento do acordo com o
PMDB.
2. Com o risco concreto de
impeachment, uma dependência cada vez maior do PMDB.
3. Uma arquitetura política que
só se sustentaria com economia em crescimento.
O sucesso da economia nos anos
seguintes inibiu por algum tempo sua atuação. E a razia promovida pela AP 470
nas lideranças petistas históricas, deixou o partido sem nenhuma capacidade de
formulação estratégica.
A última trégua, antes do embate
final, foi desperdiçada por Lula, embalado pelos feitos que o deixaram na
posição de internacionalmente mais celebrado presidente brasileiro da história.
Dormiu em berço esplêndido.
Acordou quando a serpente já dera o bote final.
Peça 4 – os desdobramentos da Lava Jato
É evidente que há problemas
estruturais nesse presidencialismo de coalizão e circunstâncias políticas
que
levaram os partidos aliados e o próprio PT a se lambuzarem. É evidente também
que se desperdiçou o momento de enorme popularidade de Lula para se proceder a
uma reforma política radical. Não adianta: apenas os problemas que afetam o dia
a dia merecem prioridade.
No entanto, em vez de um trabalho
isento contra a corrupção, o que se viu da parte do MPF foi uma ação seletiva,
com nítido propósito partidário, de consolidação do poder corporação, e uma
perseguição implacável a Lula, ao mesmo tempo que se blindavam as principais
lideranças da oposição.
Nesse período, a publicidade
opressiva alimentada pelo MPF, ajudou a fomentar movimentos de manada
instituindo um clima de vale-tudo no país, exacerbando o que de pior existe no
imaginário popular: violência, preconceito, caça às bruxas, queda da autoestima
nacional.
Os resultados estão aí:
1.
Insegurança jurídica, com a entrada em um período de exceção, na qual nenhuma
pessoa que se oponha à Lava Jato ou ao novo governo pode se considerar
juridicamente segura.
2.
Insegurança jurídica nos negócios, à medida que qualquer procurador
idiossincrático poderá invocar como suspeitos até financiamentos do BNDES.
Perdeu-se o referencial, a divisória entre operações legais e as criminosas.
3.
Insegurança política para qualquer governador, já que as tais provas
indiciárias podem tentar casar qualquer ato de governo com contribuições de
campanha.
4.
Insegurança física, com o país rachado em dois e a montagem de um sistema de
repressão, e um liberou geral para as Polícias Militares. Em São Paulo há
notícias da P2 (o serviço secreto da PM) monitorando jovens secundaristas que
participaram da ocupação das escolas estaduais no ano passado. A tentativa da
PFDC (Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão) de monitorar a PM foi
rechaçada pelo Ministério Público de São Paulo e pelo Ministro da Justiça sem
um posicionamento sequer do PGR em defesa da sua Procuradoria.
5.
Insegurança política, com enorme leque de possibilidades, fruto dos arreglos
políticos e dos interesses dos grupos que se apoderaram do poder, nenhum dos
quais contemplando eleições diretas. E o país entregue a uma camarilha de
políticos suspeitos, com o fim da bazófia do Procurador Geral da República
(PGR) de avançar sobre as lideranças políticas que assumiram o poder, deixando-as
à vontade para o exercício do arbítrio e dos negócios.
6.
Insegurança social, com a perspectiva de retrocessos em todas as áreas,
especialmente saúde e educação, pela imposição dos tais tetos nominais de
despesa, tudo feito ao largo do voto popular.
7. Queima
de ativos nacionais, com a venda de empresas e reservas petrolíferas na bacia
das almas.
8.
Desmontagem de setores inteiros da economia
9.
Consolidação da ideia de parcialidade do MPF, com as manobras sucessivas para
invalidar o depoimento de Léo Pinheiro e livrar Aécio Neves e José Serra.
O MPF importou a tese da
supremacia das provas indiciárias e está aplicando. E vai exportar um caso que
será analisado por todos os centros especializados no estudo do crime
organizado: as vulnerabilidades da tese e o risco que trouxe para a
estabilidade democrática em países de democracia não consolidada, como é o caso
do Brasil.
Leia mais sobre temas da
atualidade: http://migre.me/kMGFD
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