Sobram
recursos! Falta governo!
O Brasil tem muito espaço para aumentar sua dívida pública, em especial
pelo lastro que temos com o volume de reservas internacionais acumuladas ao
longo das últimas duas décadas.
Paulo Kliass, no portal Vermelho www.vermelho.org.br
Essa lengalenga da falta de recursos para o governo desenvolver
suas políticas públicas não é nenhuma novidade trazida pelo Paulo Guedes. A
novela é muito mais antiga. Os discursos e os argumentos sempre variaram ao
sabor da conjuntura e da equipe governamental de plantão na Esplanada dos
Ministérios. Mas é importante registrar que o financismo sempre conseguiu
influenciar os responsáveis pelo comando econômico para que não ousassem sair
do cardápio do neoliberalismo e dos ajustes macroeconômicos baseados no mito
intocável da austeridade a qualquer custo.
Os grandes meios de comunicação
completavam o serviço de bom grado. A eles ficava responsabilidade pela criação
de um clima supostamente consensual em torno da necessidade de medidas duras na
política econômica. O argumento era centrado em criar mecanismos de uma suposta
“responsabilidade fiscal” para evitar a volta da inflação e o risco de novas
crises depois do êxito obtido pelo Plano Real, ao estabilizar a nova moeda em
1994.
A história toda foi focada na
obtenção sistemática de saldos expressivos de superávit primário nas contas
governamentais. A armadilha, no entanto, passava desapercebida da maioria da
população. Afinal, quem gostaria de ser “irresponsável” na condução das finanças
públicas em um país que havia passado décadas convivendo com índices de
inflação extremamente elevada e sucessivos fracassos de planos de ajuste
estabilizador? O pulo do gato, portanto, residia no adjetivo aparentemente
inocente: “primário”.
Por meio dessa artimanha, o sistema financeiro via assegurado um
fluxo constante e permanente de recursos drenados das contas do Tesouro
Nacional para seus caixas privados. Sim, pois por meio da aplicação do conceito
de “primário” estavam sendo retiradas do esforço fiscal as contas de natureza
financeira. Dessa forma, eram comprimidas todas as demais rubricas associadas a
saúde, previdência social, educação, assistência social, saneamento, salários
de servidores, dentre tantas outras. Com isso, o saldo obtido na forma de
“superávit primário” era utilizado sem nenhum limite para pagamento de juros do
serviço da dívida pública. Entre 1997 e os dias de hoje, os valores drenados do
orçamento para esse tipo de despesa superam os R$ 6 trilhões. Mas o governo
nunca tinha recursos.
Governo sempre teve recursos.
Nos períodos das chamadas
“vacas gordas”, esse mecanismo sofisticado passava incólume, uma vez que o
governo federal contava com recursos para dar conta de boa parte das
necessidades sociais e das obrigações previstas na Constituição Federal. A
política social ficava com as migalhas e o financismo abocanhava a parte mais
expressiva dos recursos orçamentários. Mas sempre que algum governante
procurava escapar dessa amarra para buscar financiamentos para projetos de maior
envergadura, aí os formadores de opinião lançavam seus torpedos contra o risco
de intervencionismo e de explosão das contas públicas. A expansão dos serviços
“públicos” só era bem aceita por esse pessoal do terno engomadinho se fossem
operados pelo capital privado. E dá-lhe enxurradas de processos de
privatização, de concessão e de liberalização. Os direitos sociais passavam a
ser cada vez transformados em mercadoria. Tudo se compra, tudo se paga. As
regras do antigo acesso público e universal passam a ser substituídas pela
oferta privada e pela demanda de quem tenha recursos para obter o serviço.
Cidadãos de pleno direito são transformados em meros consumidores.
À medida que a crise econômica foi se aproximando, percebeu-se
que o bolo já não dava mais para todo mundo. E assim a narrativa do “não tem
recursos” vai se consolidando em meio ao establishment. Os governos não podem
ser populistas, diziam. Os governos não podem ser demagógicos, ameaçavam. Os
governos devem ser responsáveis, acusavam. Daí para “os governos não podem
gastar mais do que arrecadam” foi um pulo fácil. A analogia oportunista
propalada pelos responsáveis pela economia do momento com as economias dos
indivíduos, das famílias ou das empresas caiu no uso corrente da grande
imprensa. Afinal, se eu não posso gastar mais do que ganho a cada mês, essa
deveria ser a orientação do próprio governo. Aparentemente, nada mais sensato
na condução das finanças públicas. Só que não!
A virada na crise 2008/9.
A crise de 2008/9 serviu para
dar uma chacoalhada nas formulações no interior dos principais organismos
multilaterais, tais como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e Banco Mundial
(BM). Também os responsáveis pela condução da política econômica nos principais
países desenvolvidos foram obrigados a dar um verdadeiro cavalo de pau no
receituário neoliberal adotado até então. Para salvar as respectivas economias
e os grandes conglomerados financeiros e empresariais do mundo globalizado, foi
revista a ideia de que o Estado não deve gastar mais do que arrecada e que o
setor público não deve intervir no domínio da economia.
Mas os poderosos interesses do financismo tupiniquim conseguiram
a façanha de blindar nossas elites a esse respeito. Por aqui, continuamos
rezando pela cartilha do austericídio burro, cego e assassino. Na verdade, ao
contrário do que ocorria no restante do mundo capitalista desenvolvido, o
Brasil seguia firme e forte com políticas de restrição de gastos públicos na
área social, ao mesmo tempo em que se aprofundava o processo de privatização
das finanças públicas. O argumento era repetido “ad nauseam”: o governo não tem
recursos.
Os economistas
desenvolvimentistas, que sempre denunciamos essa orientação equivocada,
apresentávamos os números oficiais do próprio governo para mostrar a falácia. A
Conta Única do Tesouro Nacional junto ao Banco Central sempre exibia resultados
mais do que positivos. São recursos à disposição do governo federal para
realizar os gastos necessários. Basta ter vontade política para tanto. Em 2011,
por exemplo, esse saldo ultrapassou a marca simbólica do meio trilhão de reais:
R$ 500 bilhões. Em 2015 o valor do saldo credor superou a marca do R$ 1
trilhão. Mas o mantra seguia, como sempre, de que o governo não tinha recursos.
Infelizmente foi necessário que
o mundo e nosso país estivessem envolvidos pela crise generalizada da pandemia
para que a realidade dos fatos e dos números fosse finalmente aceita.
Percebeu-se que os recursos existem e que o governo pode gastar. Aliás, não só
pode, como deve! Pouco a pouco até mesmo os “especialistas” que escrevem suas
verdades incontestes nos jornalões passam a mudar de opinião. Obviamente,
poucos apresentam a honestidade intelectual e profissionalmente de reconhecer
os equívocos propalados por eles mesmo até anteontem.
Com Bolsonaro & Guedes é impossível.
Alguns economistas e
formuladores começam mesmo a avançar ainda mais em suas novas interpretações a
sobre a dinâmica atual. Assim, podemos ler artigos propondo que os novos gastos
– tão urgentes e necessários para minorar os efeitos sociais e econômicas da
crise do coronavid 19 – possam ser realizados por meio do aumento do
endividamento e também por meio de emissão monetária.
Assim, dois dos principais
tabus do conservadorismo financista caem por terra simultaneamente. Percebe-se,
finalmente, que a crença equivocada em um suposto índice criminoso de
endividamento público não passa de mera construção retórica. O Brasil tem muito
espaço para aumentar sua dívida pública, em especial pelo lastro que temos com
o volume de reservas internacionais acumuladas ao longo das últimas duas
décadas. Porém, mais do que isso, percebe-se que o governo pode lançar recursos
na sociedade e na economia sem ter de lançar novos títulos públicos.
A exemplo do que vem sendo
feito em outras nações, o momento é propício para promover emissão de moeda
pura e simples. Sem nem precisar entrar no debate proporcionado pelas novas
correntes da Teoria Monetária Moderna, essa possibilidade deve-se ao simples
fato de que estamos em meio a uma depressão profunda e os riscos de que a
emissão de moeda possa provocar inflação são próximos a zero. Assim, está mais
do que demonstrado que o governo não precisa (e nem deve!) torrar as reservas
internacionais para esse fim, como a equipe de Paulo Guedes vem fazendo
malandramente.
Enfim,
os recursos existem e estão à disposição para serem utilizados no combate à
crise a na preparação de um país que esteja em melhores condições de recuperar
a rota do desenvolvimento depois que a pandemia for superada. Na verdade, o que
falta é um governo que seja capaz de nos conduzir por um bom caminho. Enquanto
Bolsonaro e Guedes estiverem no comando, continuaremos nessa trilha perigosa às
margens do precipício.
Fique
sabendo https://bit.ly/2Yt4W6l
Leia
mais https://bit.ly/2Jl5xwF
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