O APAGÃO DE QUEIROGA
Sem
divulgar dados confiáveis há mais de um mês, ministro leva a cabo o que
Pazuello tentou e não conseguiu: deixar o país às cegas na pandemia
Marta Salomon, revista piauí
Diante
da resistência do presidente Jair Bolsonaro, o governo fez o que pôde para
atrasar a vacinação de crianças. Entre o aval da Anvisa e o anúncio da previsão
de chegada do primeiro lote de doses para brasileiros com idade entre 5 e 11
anos, passaram-se vinte dias. Não se sabe, porém, quantas crianças foram
vítimas da pandemia durante esse período, nem a real dimensão da explosão de
casos de Covid-19 depois das festas de fim de ano. O sistema de informações do
governo federal sobre a pandemia completou, no domingo (9), um mês fora do ar.
O
Painel Coronavírus do Ministério da Saúde, disponível na internet, informa que
a última atualização de dados foi feita às 17h50 do dia 9 de dezembro. No dia
seguinte, a pasta anunciou que um ataque hacker havia afetado os sistemas de
coleta, processamento e divulgação dos números sobre a pandemia. O problema não
foi resolvido até hoje.
Com o
repositório mais importante de dados abertos sobre pandemia no Brasil – o
Opendatasus – fora do ar, pesquisadores ficam impedidos de estimar a dinâmica
de transmissão do vírus e projetar tendências. Consequentemente, gestores
municipais e estaduais têm tido dificuldades ao planejar a abertura ou o
fechamento de leitos em hospitais. Também não podem executar com segurança as
medidas de isolamento. Em suma: fazem um voo cego enquanto o país bate recorde
de novos casos diários de Covid-19. O apagão já
preocupa até técnicos da Organização Mundial da Saúde (OMS), conforme noticiou o Uol.
Sem dados do Brasil, a entidade teme que não seja possível dimensionar o
tamanho da nova onda global de casos.
Criou-se um efeito dominó. Sem sua base, o Ministério da Saúde
interrompeu no começo de dezembro a rotina de enviar à Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz)
o pacote semanal mais completo de dados do país, que serve de base para as
análises da rede de vigilância epidemiológica. O mais recente boletim da
Fiocruz foi divulgado em 13 de dezembro.
O texto já apontava problemas no acesso aos dados, o que estaria gerando uma
“significativa subnotificação” por trás da aparente estabilidade das taxas de
transmissão naquele momento.
Na
última sexta-feira (7), a Fiocruz publicou uma edição extraordinária do
Boletim do Observatório Covid-19 em que classificou como “gravíssima” a falta
de informações sobre a contaminação no Brasil e afirmou que o país vem
orientando políticas públicas com “pouca ou nenhuma” evidência de dados. “O
enfrentamento de uma pandemia sem os dados básicos e fundamentais pode ser
comparado a dirigir um carro em um nevoeiro, com pouca visibilidade e sem saber
o que se pode encontrar adiante”, explicou o boletim, didaticamente.
“Um mês de sistema parado
não existe em lugar nenhum do mundo, ainda mais com orçamento de meio bilhão de
reais por ano”, assegura o médico sanitarista e pesquisador Giliate Cardoso
Coelho Neto, que esteve à frente do Departamento de Informática do Sistema
Único de Saúde (Datasus) em 2016. À piauí,
o ex-diretor listou alguns problemas estruturais que já existiam no sistema, como
falhas na chamada arquitetura de barramento, que serve de anteparo entre a
entrada de dados no sistema e o repositório de informações, e falta de
“redundância” – isto é, a duplicação de estruturas do sistema, que muitas vezes
é adotada como forma de reforçar a segurança das informações. Para Giliate, o
Ministério da Saúde já teve tempo suficiente para consertar eventuais problemas
causados por ataques hackers. Na avaliação do ex-diretor, a pasta está lidando
com a situação com deliberada lentidão. Não trataram o caso em nenhum momento
com a urgência necessária. “Para mim, o que estão fazendo é uma operação
padrão.”
O
início do apagão de dados coincidiu com a resistência do governo a vacinar
crianças, a exigir passaporte de vacinação de pessoas vindas de outros países,
assim como a seguir as demais recomendações da Anvisa para evitar a
disseminação da variante Ômicron. O passaporte de vacinação acabou imposto por
maioria de votos do Supremo Tribunal Federal, em meados de dezembro. A compra
das primeiras doses da Pfizer destinadas às crianças foi anunciada pelo governo
depois que o ministro Marcelo Queiroga aventou, sem sucesso, a ideia de exigir
prescrição médica dos pais que quisessem vacinar seus filhos.
Bolsonaro
se mantém publicamente contrário à vacinação de crianças até agora: “O que que
está por trás disso? Qual o interesse da Anvisa por trás disso aí? Qual o
interesse das pessoas taradas por vacina? É pela sua vida? É pela sua saúde? Se
fosse, estariam preocupados com outras doenças no Brasil, que não estão”, disse
o presidente no último dia 6, em entrevista a uma emissora de rádio. Foi por
causa dessa declaração bizarra que, no domingo (9), o presidente da Anvisa, o
oficial-general da Marinha Antonio Barra Torres, publicou uma nota dura pedindo
que o presidente se retratasse.
Dada a
postura do governo, o apagão de dados começou a parecer conveniente. “É
possível que o governo tenha tirado o sistema do ar para manter a integridade
das informações, mas nada justifica manter fora do ar por tanto tempo depois de
um ataque hacker”, avalia a diretora executiva da ONG Open Knowledge, Fernanda
Campagnucci, que monitora a transparência dos dados públicos desde o início da
pandemia. “Parece barbeiragem, mas não dá para saber se foi incompetência ou se
foi deliberado”, ela diz.
Atransparência dos dados
sobre a pandemia conta uma história de sobressaltos desde 2020. Em 5 de junho
daquele ano, o Ministério da Saúde tirou do ar o Painel Coronavírus. A pasta
era comandada interinamente pelo general Eduardo Pazuello, e o país somava, até
então, 35 mil mortos pela Covid-19. A intenção do governo, com essa mudança,
era divulgar apenas os casos e mortes registrados nas 24 horas anteriores,
ignorando os números acumulados e as informações regionalizadas. O plano vingou
por pouco tempo. A divulgação dos dados foi restabelecida dias depois por
determinação do ministro do STF Alexandre de Moraes, que concedeu liminar em
uma ação movida por partidos da oposição. A atitude do governo bastou, no
entanto, para que Folha de S.Paulo, Estadão,
grupo Infoglobo e Uol se juntassem na
criação de um consórcio jornalístico com o objetivo de garantir a divulgação
transparente dos dados da pandemia. O consórcio passou a tomar como base os
boletins das secretarias estaduais de Saúde.
Agora,
no entanto, mesmo o trabalho dos veículos de imprensa foi impactado pelo apagão
de dados. Isso porque parte dos estados e municípios depende do sistema federal
para registrar casos e mortes por Covid-19. Diante disso e da clara escalada da
pandemia neste começo de ano, pesquisadores sugerem a possibilidade de haver
atualmente uma enorme subnotificação no país. A Universidade de Washington
estimou que, só na última sexta-feira (7), 468 mil brasileiros foram infectados
pelo coronavírus – nove vezes o número de novos casos registrados naquele dia
pelo consórcio de veículos da imprensa.
O
apagão tem sido acompanhado de explicações desencontradas sobre o que realmente
aconteceu na base de dados e, pior, se houve ou não perda de informações. “Está
tudo nebuloso, ainda não sabemos o que realmente aconteceu”, lamentou o
pesquisador da Fiocruz Marcelo Gomes, coordenador do InfoGripe, que suspendeu
no começo de dezembro a divulgação de análises. Na noite da última sexta-feira
(7), Gomes ainda não tinha notícia sobre quando a extração de dados seria
restabelecida. Também não se sabe se os dados, uma vez disponibilizados, vão
corresponder integralmente à realidade – sobretudo aqueles que dizem respeito
às notificações de casos leves de Covid-19.
O
pesquisador destacou que, sem as bases de dados do Ministério da Saúde, a troca
de informações feita por meio da Rede Nacional de Dados em Saúde (RNDS) ficou
comprometida. A RDNS é a plataforma-mãe do sistema do Ministério da Saúde. Ela
permite que, ao registrar a internação de um paciente com síndrome respiratória
aguda grave, por exemplo, determinada unidade de saúde possa descobrir
imediatamente se o paciente havia sido vacinado contra a Covid-19 e com quantas
doses. Com esse tipo de dados e cruzamentos, a RDNS abastecia as análises da
Fiocruz.
Fernanda
Campagnucci, da Open Knowledge Brasil, também levanta dúvida sobre a
integridade dos dados durante o período de instabilidade do sistema de
notificação. “Estamos diante de um retrocesso no padrão de transparência, que
vinha evoluindo.”
Questionado
pela piauí, o Ministério da Saúde
não explicou a extensão dos danos à Rede Nacional de Dados em Saúde (RNDS) nem
deu previsão de quando o Painel Coronavírus e o acesso aos dados abertos do
OpenDatasus serão reabilitados. Por meio de nota, informou apenas que as
plataformas já haviam sido restabelecidas para o lançamento de informações por
parte dos gestores municipais e estaduais e frisou que não houve perda de
dados. “A pasta esclarece, ainda, que a instabilidade nos sistemas do
Ministério da Saúde não interfere na vigilância de casos e óbitos por síndromes
agudas respiratórias, incluindo Covid-19. O Ministério da Saúde segue
realizando o monitoramento da situação epidemiológica no Brasil para as tomadas
de decisões frente ao cenário atual”, conclui a nota, como se a situação fosse
de plena normalidade.
No
entanto, o mais recente boletim
epidemiológico divulgado pelo Ministério, no início do
ano, informa que, devido ao ataque hacker, não haviam sido atualizados os dados
da Síndrome Respiratória Aguda Grave. No mesmo dia do ataque, 10 de dezembro,
uma sexta-feira, a Polícia Federal anunciou a abertura de um inquérito para
apurar o crime cibernético. Na segunda-feira seguinte (13), o Ministério
informou em nota que o sistema passava por “manutenção preventiva”. Queiroga
avisou, porém, que havia ocorrido um segundo ataque hacker e que isso atrasaria
os planos de colocar o sistema no ar no dia 14, conforme havia sido previsto.
Desde então, o acesso a informações do sistema segue bloqueado. O inquérito
corre em sigilo, ainda sem conclusões, de acordo com a PF.
Em vez
de garantir acesso aos dados completos, o Ministério da Saúde tem divulgado,
enquanto isso, boletins com assumidas falhas na notificação de casos e mortes
pelos estados. Esses documentos chamam a atenção para o percentual de pessoas
recuperadas da Covid-19, indicador que sempre agradou a Bolsonaro. Mas
mesmo esse percentual vem registrando ligeira queda desde o Natal: de um
patamar de 96,9% de recuperados (dentre todos os brasileiros com a doença), o
número caiu para 96% no último dia 9.
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Veja: São 9 crimes graves que esperam
andamento no Judiciário https://youtu.be/sJ2lSvc193E
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