Palavra de poeta: Carlos Drummond de Andrade
STALINGRADO
Carlos Drummond de Andrade
Depois de Madri e de Londres, ainda há grandes
cidades!
O mundo não acabou, pois que entre as ruínas
outros homens surgem, a face negra de pó e de
pólvora,
e o hálito selvagem da liberdade
dilata os seus peitos, Stalingrado,
seus peitos que estalam e caem,
enquanto outros, vingadores, se elevam.
A poesia fugiu dos livros, agora está nos jornais.
Os telegramas de Moscou repetem Homero.
Mas Homero é velho. Os telegramas cantam um mundo
novo
que nós, na escuridão, ignorávamos.
Fomos encontrá-lo em ti, cidade destruída,
na paz de tuas ruas mortas mas não conformadas,
no teu arquejo de vida mais forte que o estouro das
bombas,
na tua fria vontade de resistir.
Saber que resistes.
Que enquanto dormimos, comemos e trabalhamos,
resistes.
Que quando abrimos o jornal pela manhã teu nome (em
ouro oculto) estará firme no alto da página.
Terá custado milhares de homens, tanques e aviões,
mas valeu a pena.
Saber que vigias, Stalingrado,
sobre nossas cabeças, nossas prevenções e nossos
confusos pensamentos distantes
dá um enorme alento à alma desesperada
e ao coração que duvida.
Stalingrado, miserável monte de escombros,
entretanto resplandecente!
As belas cidades do mundo contemplam-te em pasmo e
silêncio.
Débeis em face do teu pavoroso poder,
mesquinhas no seu esplendor de mármores salvos e
rios não profanados,
as pobres e prudentes cidades, outrora gloriosas,
entregues sem luta,
aprendem contigo o gesto de fogo.
Também elas podem esperar.
Stalingrado, quantas esperanças!
Que flores, que cristais e músicas o teu nome nos
derrama!
Que felicidade brota de tuas casas!
De umas apenas resta a escada cheia de corpos;
de outras o cano de gás, a torneira, uma bacia de
criança.
Não há mais livros para ler nem teatros funcionando
nem trabalho nas fábricas,
todos morreram, estropiaram-se, os últimos defendem
pedaços negros de parede,
mas a vida em ti é prodigiosa e pulula como insetos
ao sol,
ó minha louca Stalingrado!
A tamanha distância procuro, indago, cheiro
destroços sangrentos,
apalpo as formas desmanteladas de teu corpo,
caminho solitariamente em tuas ruas onde há mãos
soltas e relógios partidos,
sinto-te como uma criatura humana, e que és tu,
Stalingrado, senão isto?
Uma criatura que não quer morrer e combate,
contra o céu, a água, o metal, a criatura combate,
contra milhões de braços e engenhos mecânicos a
criatura combate,
contra o frio, a fome, a noite, contra a morte a
criatura combate,
e vence.
As cidades podem vencer, Stalingrado!
Penso na vitória das cidades, que por enquanto é
apenas uma fumaça subindo do Volga.
Penso no colar de cidades, que se amarão e se
defenderão contra tudo.
Em teu chão calcinado onde apodrecem cadáveres,
a grande Cidade de amanhã erguerá a sua Ordem.
.
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