Irmã
das ficções
Cícero
Belmar*
Seria inverdade dizer
que ela é uma estrela. Mas é exatamente o que vejo. A sua luz é forte,
brilhante, furando o espaço celeste. E aparece sempre na trajetória da
madrugada para o amanhecer. Fico encantado com a personalidade do astro: começa
a brilhar quando os outros já não são mais vistos no universo.
Para uma criatura com tendências esotérico-astrológico-místicas
como eu, que tem um pezinho na linguagem oculta das coisas, é impossível olhar
para aquela estrela e não lhe fazer reverências. Não pensar na energia cósmica.
Não viajar na ideia de iluminação. Não ficar imaginando histórias.
Olho por alguns minutos, em silêncio, e fantasio que ela quer me
comunicar algo por telepatia: um caminho a seguir? Fico quieto, assistindo
àquele brilho, pela janela do quarto, até sentir vontade de voltar para a cama
e dormir mais um pouquinho.
A estrela matutina tem aparecido aí pelas quatro e meia da
manhã, ultimamente, bem à leste da esfera do céu. Vem acontecendo com
frequência há pouco mais de um mês. Acordo cedinho, sempre, para vê-la. No
primeiro dia, a localizei por acaso, olhando para o céu. Tomei um susto, pois
ela brilha com um desespero que chama a atenção.
O mais curioso é que, bem abaixo dela, segue outra estrela. Como
se fossem ligadas por uma conjunção invisível. Estrela menor e menos brilhante.
As duas ficam alinhadas, como descrevessem uma linha reta perfeita entre uma e
outra. A maior é íntima de poetas e reis magos. Estrela Dalva.
Ela se movimenta super rápido e a sua luminosidade profetiza o
fim da escuridão da madrugada. À medida que a estrela da manhã vai se erguendo,
com sua companheira pendurada no seu rastro, o vermelho-amarelado do sol acende
o mundo. Em questão de minutos, o dia.
Andei pesquisando e já sei: o que vejo não é uma estrela, mas
sim o planeta Vênus. Um dos mais próximos do Sol. Por isso mesmo, planeta muito
quente, cuja temperatura pulsante provoca a ilusão de ótica de ser uma tocha
brilhante. A outra estrela, a menorzinha, seria outro planeta.
Quero descobrir porque a Dalva se movimenta com tanta rapidez na
abóbada celeste. “Talvez meu amigo Nino, que entende de tarô, leitura de mãos e
astrologia, possa me explicar”. É para assuntos esotéricos que servem as
amizades remanescentes da década de 1980. Liguei.
“Claro que já a vi. Vênus é um planeta rápido, em
movimento energético. Carrega em si uma luz benéfica que tonifica tudo, que faz
tudo acontecer. E está de passagem por Aquário. Nessa conjunção, é muito
favorável aos desejos. Mas, também é preciso ter muito cuidado com o que se
deseja. Olhando para a estrela, neste momento astrológico, o que a gente
desejar, tem grandes chances de se concretizar”.
Na conversa, Nino também me diz que a estrela aparece, de tempos
em tempos, no leste; depois, no oeste; às vezes no final da madrugada com
início da manhã; em outras, no fim da tarde e início da noite. Então, lembro de
já ter visto “a estrela da tarde”. É a mesma, em momento diferente. Eu é quem
não estava associando o nome ao lumiar.
Nino me garante que a estrela concretiza desejos. Faço que
acredito. Uma criatura que gosta de doces mistérios inventados, pode discordar?
Mesmo assim, resolvo não pedir nada à estrela.
Realizar os desejos humanos, para mim, equivaleria a desfazer o
mistério da estrela. Prefiro que ela siga na vastidão do céu, arrastando as
ficções. Fala sério: a vida sem mistérios perde muito no quesito encantamento.
[Ilustração: Van Gogh]
* *Cícero Belmar é escritor e jornalista. Autor de contos, romances, biografias, peças de teatro e livros para crianças e jovens. Membro da Academia Pernambucana de Letras.
O sentido dos fatos em poucas palavras https://bit.ly/3n47CDe
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