06 maio 2022

Crônica da sexta-feira: Cícero Belmar

Irmã das ficções

Cícero Belmar*

 

Seria inverdade dizer que ela é uma estrela. Mas é exatamente o que vejo. A sua luz é forte, brilhante, furando o espaço celeste. E aparece sempre na trajetória da madrugada para o amanhecer. Fico encantado com a personalidade do astro: começa a brilhar quando os outros já não são mais vistos no universo.

Para uma criatura com tendências esotérico-astrológico-místicas como eu, que tem um pezinho na linguagem oculta das coisas, é impossível olhar para aquela estrela e não lhe fazer reverências. Não pensar na energia cósmica. Não viajar na ideia de iluminação. Não ficar imaginando histórias.

Olho por alguns minutos, em silêncio, e fantasio que ela quer me comunicar algo por telepatia: um caminho a seguir? Fico quieto, assistindo àquele brilho, pela janela do quarto, até sentir vontade de voltar para a cama e dormir mais um pouquinho.

A estrela matutina tem aparecido aí pelas quatro e meia da manhã, ultimamente, bem à leste da esfera do céu. Vem acontecendo com frequência há pouco mais de um mês. Acordo cedinho, sempre, para vê-la. No primeiro dia, a localizei por acaso, olhando para o céu. Tomei um susto, pois ela brilha com um desespero que chama a atenção.

O mais curioso é que, bem abaixo dela, segue outra estrela. Como se fossem ligadas por uma conjunção invisível. Estrela menor e menos brilhante. As duas ficam alinhadas, como descrevessem uma linha reta perfeita entre uma e outra. A maior é íntima de poetas e reis magos. Estrela Dalva.

Ela se movimenta super rápido e a sua luminosidade profetiza o fim da escuridão da madrugada. À medida que a estrela da manhã vai se erguendo, com sua companheira pendurada no seu rastro, o vermelho-amarelado do sol acende o mundo. Em questão de minutos, o dia.

Andei pesquisando e já sei: o que vejo não é uma estrela, mas sim o planeta Vênus. Um dos mais próximos do Sol. Por isso mesmo, planeta muito quente, cuja temperatura pulsante provoca a ilusão de ótica de ser uma tocha brilhante. A outra estrela, a menorzinha, seria outro planeta.

Quero descobrir porque a Dalva se movimenta com tanta rapidez na abóbada celeste. “Talvez meu amigo Nino, que entende de tarô, leitura de mãos e astrologia, possa me explicar”. É para assuntos esotéricos que servem as amizades remanescentes da década de 1980. Liguei.

 “Claro que já a vi. Vênus é um planeta rápido, em movimento energético. Carrega em si uma luz benéfica que tonifica tudo, que faz tudo acontecer. E está de passagem por Aquário. Nessa conjunção, é muito favorável aos desejos. Mas, também é preciso ter muito cuidado com o que se deseja. Olhando para a estrela, neste momento astrológico, o que a gente desejar, tem grandes chances de se concretizar”.

Na conversa, Nino também me diz que a estrela aparece, de tempos em tempos, no leste; depois, no oeste; às vezes no final da madrugada com início da manhã; em outras, no fim da tarde e início da noite. Então, lembro de já ter visto “a estrela da tarde”. É a mesma, em momento diferente. Eu é quem não estava associando o nome ao lumiar.

Nino me garante que a estrela concretiza desejos. Faço que acredito. Uma criatura que gosta de doces mistérios inventados, pode discordar? Mesmo assim, resolvo não pedir nada à estrela.

Realizar os desejos humanos, para mim, equivaleria a desfazer o mistério da estrela. Prefiro que ela siga na vastidão do céu, arrastando as ficções. Fala sério: a vida sem mistérios perde muito no quesito encantamento.

[Ilustração: Van Gogh]

*Cícero Belmar  é escritor e jornalista. Autor de contos, romances, biografias, peças de teatro e livros para crianças e jovens. Membro da Academia Pernambucana de Letras. 

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O sentido dos fatos em poucas palavras https://bit.ly/3n47CDe     

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