Falamos
de carambolas
Rubem Braga
Falamos sobre sorvetes, eu disse que tinha tomado
um ótimo, de carambola.
– Não sei que graça você acha em carambola.
Falamos sobre carambola, discutimos sobre
carambola; passamos a romã e finalmente a jambo; sim, há o jambo moreno e o
jambo cor-de-rosa, este é muito sem gosto; aliás, a mais bonita de todas as
mangas, a manga-rosa, não tem nem de longe o gosto de uma espada, de uma
carlotinha.
Lembrei a história contada por um amigo. Mais de
uma vez insistira com certa moça para que fosse ao seu apartamento. Ela não
queria ir. Ele um dia telefonou: “Vem almoçar comigo, mando matar uma galinha,
fazer molho pardo…” achou que a recusa da moça era menos dura. E insistiu mais:
— Vem… tem manga carlotinha…
– Manga carlotinha? Mentira!
E a moça foi. Refugaria talvez promessa de
casamento, se irritaria com o presente de jóia, mas como resistir a um homem
que tem galinha ao molho pardo com angu e manga carlotinha, e faz um convite
tão familiar?
Ela não achou muita graça na história. Aliás não
simpatizava com aquele amigo meu.
Ficamos um instante em silêncio. Comecei a mexer o
gelo dentro do copo com o dedo.
É um hábito brasileiro, mas até que não é meu uso;
inclusive, para falar a verdade, acho pouco limpo; entretanto eu mexia com o
indicador o gelo que boiava no uísque, e como seria insuportável não fazer a
pergunta, ergui os olhos e fiz: — Mas, afinal, o que foi que o médico disse?
E ela encolheu os ombros. Repetiu algumas palavras
do médico, principalmente uma: Sindroma… teve uma dúvida: — É síndroma ou
sindroma?
Eu disse francamente que não sabia; apenas tinha a
impressão de que a palavra era feminina; mas também podia ser masculina; era
paroxítona ou átona, mas também podia ser proparoxítona ou esdrúxula; e, ainda
por cima, tanto se podia dizer sindroma como síndrome, e até mesmo sindromo.
Em todo o caso — juntei — não era bem uma doença;
era um conjunto de sintomas… eu falava assim não para mostrar sabença, mas para
mostrar incerteza, e ignorância da verdade verdadeira — ou até uma certa
indiferença por essas coisas de palavras.
Confessei-lhe que há muitas palavras que evito
dizer porque nunca estou muito seguro da maneira de pronunciar. Por outro lado
há palavras que a gente só conhece porque são usadas em palavras cruzadas. Até
existe uma cidade assim, uma cidade de que ninguém se lembraria jamais se não
tivesse apenas duas letras e não fosse terra de Abraão ou cidade da Caldéia:
UR. Se os charadistas do mundo inteiro formassem uma pátria a capital teria de
ser UR. Eu falava essas bobagens com volubilidade. Ela disse: — Todo mundo,
quando tem uma doença como essa minha, procura se enganar. Eu, não.
Chamei-a de pessimista, aliás ela sempre fora
pessimista.
– Não é pessimismo não. É…
Senti que ela ia dizer o nome da doença, e que tudo
estaria perdido se ela pronunciasse aquele nome; seria intolerável.
– Você sabe muito bem o que é.
Chamei o garçom, pedi mais um uísque e mais um
Alexander’s.
– Sabe quem eu vi hoje?
Era ela que mudava de conversa; senti um alívio. E
falamos, e falamos… Eu admirava mais uma vez sua cabeça, os olhos claros, a
testa, sua graça tocante.
Era insuportável pensar que alguém assim pudesse
estar condenada. Dentro de mim eu sabia, mas não acreditava. Tive a impressão
de que sua cabeça estremecia como uma flor. Um anjo se movera junto de nós, na
penumbra do bar, era o anjo da morte; e a flor estremecera.
– Acho que o bale russo precisa se renovar…
Ela achava que não era justo falar em virtuosidades
acrobáticas; o que havia era uma renúncia a todo expressionismo e a toda
pantomima, a beleza do bale puro… E no meio da discussão me chamou de literato;
mas juntou logo um sorriso tão amigo. Eu disse o que talvez já tivessse dito
uma vez: — Foi uma pena você não ter estudado bale.
Pensava no seu corpo de pernas longas, na linha
dura das ancas, nos seios pequenos, e a revia por um instante, toda casta, nua.
Ela me censurou por beber tão depressa, e de repente: — E esse seu bigode agora
está horrível.
– Por que você não toma conta de mim, não dirige
meus uísques e meus bigodes?
Ela riu, e deu uma risada tão alegre como
antigamente.
Como as pessoas costumam dizer, uma risada de
cristal. Clara, alegre, tilintante como o cristal. O cristal, que se parte tão
fácil.
[Ilustração: Henri Matisse]
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