Hoje é dia de Maria
Cícero Belmar*
Sempre
que ouço as expressões “mulher, negra e periférica”, penso de imediato que se
tratam de um clichê; ou de palavras que eventualmente viram moda e se adaptam
aos discursos da hora. Mas, eu juro, essa é a precisa descrição de minha amiga,
residente no bairro de Santo Amaro, noroeste do Recife, que criou os dois
filhos praticamente sozinha. O companheiro foi embora quando as crianças eram
pequenas e ela enfrentou uma realidade difícil. Precisou dos programas sociais
do governo, que contribuíam com pouco, mas eram melhores do que nada.
Trabalhou de manicure e
vendedora. É claro que contou, também, com a ajuda de algumas poucas pessoas; a
barra pesava demais e cada um sabe de si. Foi assim, tirando leite de pedras,
que superou dias, meses e anos, ganhando um salário mínimo por mês para
garantir o básico dentro de casa. Nas ocasiões em que teve emprego com carteira
assinada, enfrentava drama de consciência, todas as manhãs, quando precisava
sair de casa para o trabalho: corria o risco de deixar os filhos pequenos
expostos às tentações das ruas, quando eles largavam da escola e enquanto ela
estava ausente, cumprindo oito horas de jornada.
Não é exclusividade de minha
amiga. A grande maioria das mães pobres e moradoras de comunidades criam filhos
sozinhas. E na hora de ir trabalhar, é sempre a mesma coisa. Como não têm
escolha, enfrentam o mesmo dilema: ou saem de casa para o serviço ou não têm
dinheiro para comprar comida. No Brasil, são milhares de mulheres nessa mesma
situação, excluídas e oprimidas, mas que merecem uma vida plena e digna. Essa
realidade, inclusive, foi transformada numa das mais belas músicas do
cancioneiro brasileiro, criada há mais de 40 anos. Maria, Maria fez parte do
disco Clube da Esquina, em 1978.
O curioso é que a primeira
gravação não tinha letra, só lá, lá, laiá, lá, lá. Essa só veio depois quando o
Grupo Corpo, de teatro, encenou o espetáculo cujo título foi Maria, Maria. Com
roteiro de Fernando Brandt, falava de uma personagem chamada Maria, mulher
preta, mãe solo, batalhadora. Era um musical com várias canções de Milton
Nascimento e coreografia de Oscar Araiz. Foi um sucesso. No espetáculo, Maria,
Maria ganhou letra, que era cantada pelos atores em cena. É essa versão que
hoje conhecemos e que foi imortalizada por Elis Regina, quando gravou o disco
Saudades do Brasil, em 1980.
Resgato
essas histórias para negritar este 25 de julho. É o Dia da Mulher Negra,
Latino-Americana e Caribenha. Se o 8 de março é o Dia Internacional, a
efeméride de hoje exige uma reflexão mais focada nas marias negras, periféricas
e desassistidas. Se você conhece uma dessas mulheres, não tem dúvidas: a
narrativa de todas se assemelha com a saga das heroínas e guerreiras. Parecem
de ferro e coração de melão. No Brasil, o 25 de julho é comemorado desde 2014,
quando a data foi adotada no mandato de Dilma. Nós também prestamos homenagem
para a líder quilombola Tereza de Benguela. Na época da escravidão, ela liderou
o Quilombo de Quariterê, localizado no atual estado do Mato Grosso, quando o
marido morreu. A sua liderança fez história e ela se tornou símbolo de luta
para as mulheres negras brasileiras.
Por tudo isso hoje é um dia de
luta, reflexão e resistência. De se reverenciar Tereza, “uma certa magia”; de
refletirmos sobre todas as Maria, Maria, essa “força que nos alerta”; de darmos
salve a Regilane, minha amiga, e a todas assim como ela, que merecem “viver e
amar como outra qualquer do planeta” Brasil. Os versos da música são precisos,
sensíveis, belos e duros: “Uma gente que ri quando deve chorar”. Na leitura
desse poema de Milton e Brandt, essas mulheres são tão fortes que parecem dotadas
de um misticismo. “É preciso ter força, ter raça, ter gana, sempre”. Mulheres
que, apesar das dificuldades para sobreviver e criar suas famílias, apenas
aguentam firme. “Quem traz no corpo esta marca, possui a estranha mania de ter
fé na vida”.
*Jornalista e escritor,
membro da Academia Pernambucana de Letras
Leia também: O ódio às mulheres desmascarado https://bit.ly/3NAdNch
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