Crise financeira: até o FMI teme o pior
Subitamente
— e contra todos os prognósticos — o xerife da ordem econômica capitalista
condenou o novo favor do governo inglês aos super-ricos. Turbulências sugerem:
um novo repique da crise global aberta em 2008 pode estar próximo
Yanis Varoufakis, no The Atlantic |
Tradução: Vitor Costa, Outras
palavras
Em 30 de setembro, o Fundo Monetário Internacional assustou os mercados
e surpreendeu os comentaristas ao repreender o governo conservador do Reino
Unido por irresponsabilidade fiscal. O choque foi evidente. A crítica do FMI ao
governo de uma grande economia ocidental é como um zelador repreendendo o
proprietário por colocar em risco o valor avaliado do prédio. Essa sensação de
inversão da ordem usual das coisas foi ainda mais nítida porque, não
esqueçamos, foram os conservadores britânicos, sob a rígida liderança de
Margaret Thatcher, que ditaram a regra sobre a probidade fiscal como alicerce
do neoliberalismo. O FMI passou mais de quatro décadas impondo essa ortodoxia a
governos em todo o mundo.
Como numa tentativa de amplificar a agitação que certamente causaria, o
comunicado do FMI chegou a censurar o governo britânico por introduzir grandes
cortes de impostos (agora parcialmente cancelados após a intervenção do Fundo),
porque eles iriam principalmente “beneficiar os que ganham mais” e
“provavelmente aumentar a desigualdade”. Os conservadores leais à sitiada nova
primeira-ministra da Grã-Bretanha, Liz Truss, os republicanos mais vigorosos
dos EUA, analistas econômicos internacionais e até mesmo alguns de meus
camaradas de esquerda ficaram brevemente unidos por uma perplexidade comum:
desde quando o FMI se opõe a mais desigualdade? Seria difícil identificar um
único “programa de ajuste estrutural” do FMI que não aumentou a desigualdade.
Se duvidar, pergunte à Argentina, Coreia do Sul, Irlanda ou Grécia (onde fui
ministro das Finanças e tive que negociar com o FMI) sobre as restrições
associadas a seus empréstimos. Os burocratas intransigentes do Fundo teriam
passado por um momento como o da “estrada de Damasco”?
Leia
também: Por mais que EUA e União Europeia se esforcem, as estatísticas de
comércio internacional mostram que é impossível fazer a roda da história girar
para trás https://bit.ly/3DvXnAC
Três teorias surgiram sobre os motivos do FMI para se opor aos cortes de
impostos do Reino Unido para os ricos. Uma delas é que o conselho do Fundo
temia que a instituição tivesse dificuldade para arrecadar dinheiro suficiente,
se Londres viesse a solicitar um resgate. Outra teoria, expressa pelo
ex-secretário do Tesouro dos EUA, Larry Summers, é que o FMI agora entendia que
deveria mostrar imparcialidade em suas negociações com países ricos e pobres.
“Quando há uma situação de crise ou políticas manifestamente irresponsáveis, é
meio natural que o FMI faça algum tipo de registro”, disse Summers ao Financial
Times, acrescentando: “Não acho que o FMI deva distinguir entre acionistas
ricos e seus acionistas de mercados emergentes”.
Uma terceira teoria seguiu a lógica da conversão paulina, sugerindo que
a declaração do FMI condenando as doações do governo Truss para os ultrarricos
poderia marcar uma mudança radical na instituição sediada em Washington. De
acordo com essa visão, o FMI estava percebendo que para salvar a ordem liberal
internacional dos vários populistas autoritários ascendentes no mundo – como
Donald Trump, Giorgia Meloni, Marine Le Pen, Viktor Orbán, Narendra Modi e Jair
Bolsonaro – era preciso mudar sua missão para uma direção mais
social-democrata.
Apesar de hipóteses interessantes, nenhuma dessas explicações se encaixa
com a realidade à qual o FMI respondeu com a surpreendente declaração da semana
passada. A noção de que Londres requererá um resgate grande demais para o FMI é
absurda. A Grã-Bretanha é um país rico, que toma emprestado exclusivamente em uma
moeda impressa pelo Banco da Inglaterra. Se o pior acontecesse, o Banco da
Inglaterra poderia aumentar as taxas de juros para até 6% para estabilizar a
libra esterlina e os mercados monetários. Uma taxa de juros nesse nível
certamente demoliria o modelo econômico do Reino Unido dos últimos 40 anos, mas
seria preferível a um resgate do FMI.
E tenho experiência em primeira mão que contradiz a teoria de que o FMI
só agora, pela primeira vez, decidiu confrontar um país do G7 cujas políticas
considera ameaçar a estabilidade financeira global. Em minhas negociações como
ministro das Finanças da Grécia com o Fundo, em 2015, os principais
funcionários foram abertamente contundentes sobre a rejeição do governo alemão
de um plano de reestruturação total da dívida pública da Grécia; acusaram
Berlim de minar a estabilidade financeira da Europa e, por extensão, do mundo.
Um ano depois, em uma conversa telefônica entre altos funcionários do
FMI publicada pelo WikiLeaks, seu chefe europeu disse a um colega que o Fundo
deveria confrontar a chanceler alemã Angela Merkel e dizer: “A senhora está
diante de um dilema. Precisa pensar no que é mais caro: seguir em frente sem o
FMI, ou escolher o alívio da dívida que achamos que a Grécia precisa para nos
manter a bordo.” Nessa segunda teoria, o FMI agora deveria começar a agir em
relação aos governos ocidentais da mesma forma que faz com os países em
desenvolvimento.
Isso nos leva à terceira, e mais interessante, das três explicações:
para salvar a ordem liberal global do populismo de direita, o FMI está se
tornando social-democrata, até mesmo “woke”: como alguns conservadores
britânicos têm acusado. A verdade, temo, é menos heroica. O que aconteceu na
semana passada é simplesmente que o FMI entrou em pânico. Assim como outras pessoas
inteligentes do governo dos EUA e do Federal Reserve, seus
funcionários temiam que o Reino Unido estivesse prestes a fazer com os Estados
Unidos e o resto do G7 o que a Grécia havia feito com a zona do euro em 2010:
desencadear uma crise financeira num incontrolável efeito dominó.
Leia
também: Especulação movimenta 36 vezes mais que a riqueza oriunda da produção
real no mundo https://bit.ly/3C7gIad
Nos dias que antecederam a declaração de “mini-orçamento” do governo
Truss, o mercado de US$ 24 trilhões de bônus do Tesouro dos EUA, cuja saúde
decide se o capitalismo global respira ou engasga, já havia entrado no que um
analista financeiro chamou de “vórtice de volatilidade”, algo não visto desde
o crash de 2008 ou os primeiros dias da pandemia. O rendimento
do título de referência de dez anos do governo dos EUA aumentou acentuadamente
de 3,2% para mais de 4%. Pior ainda, um grande número de investidores evitou um
leilão de novas dívidas dos EUA. Nada assusta mais as autoridades do que o
espectro de uma greve de compradores nos mercados de títulos dos EUA.
Para acalmar os nervos dos investidores, as autoridades defenderam-se
com mensagens tranquilizadoras. Neel Kashkari, presidente do Federal Reserve de
Minneapolis, resumiu o estado de espírito assim: “Estamos todos unidos em nosso
trabalho para reduzir a inflação para 2% e estamos comprometidos em fazer o que
precisamos para que isso aconteça.” Este foi o momento em que o governo do
Reino Unido decidiu anunciar a política fiscal mais expansionista da
Grã-Bretanha desde 1972.
As autoridades norte-americanas não foram as únicas a se preocupar. Dias
antes desse “evento fiscal” do governo de Londres, o Conselho Europeu de Risco
Sistêmico – um órgão estabelecido pela União Europeia após a crise de 2008-2009
– emitiu seu primeiro aviso geral, confirmando que os mercados financeiros da
Europa haviam caído no vórtice de volatilidade que se originou nos Estados
Unidos. Os fornecedores de eletricidade da Europa faliriam devido a
compromissos com pedidos futuros a preços exorbitantes, a poderosa indústria
manufatureira da Alemanha fecharia por causa da escassez de gás natural e a
dívida pública e privada subiria rapidamente.
Um choque financeiro extra do Reino Unido tinha o potencial de causar
enormes efeitos colaterais em toda a Europa e além. Se o mercado subprime dos
EUA pôde empurrar os bancos franceses e alemães para a beira de um precipício
em 2008-09, essa última onda de choque da anglosfera poderia causar danos
semelhantes, especialmente se abalasse o mercado de títulos do Tesouro dos EUA.
Diante dessa crescente tempestade transatlântica, a decisão do FMI de
intervir não foi surpreendente. O único enigma restante é por que o FMI apontou
ou ultrarricos como beneficiários da desigualdade ampliada pelos cortes de
impostos do governo Truss. Embora a força das circunstâncias tenha mudado de
forma significativa, duvido que isso signifique o fim dos instintos neoliberais
do FMI. Muito mais provável é o seguinte: o FMI percebeu que as políticas de
geração de desigualdade pós-2008, que ajudou a aplicar, mergulharam o
capitalismo do Atlântico Norte em um estado de estagnação que agora é instável,
e teme que esse vórtice de volatilidade piore com as novas medidas, e que isso
criasse desigualdade ainda maior. Se o FMI começou a não gostar da
desigualdade, é apenas porque a vê como causadora de instabilidade sistêmica.
Após o colapso financeiro de 2008, os EUA e a UE adotaram uma política
de socialismo para banqueiros e austeridade para as classes médias e os
trabalhadores. Isso acabou por sabotar o dinamismo do capitalismo ocidental. A
austeridade encolheu os gastos públicos precisamente quando os gastos privados
estavam em colapso, e isso acelerou o declínio dos gastos públicos e privados.
Em outras palavras, fez despencar a demanda agregada na economia. Ao mesmo
tempo, a flexibilização quantitativa [quantitative easing] dos
bancos centrais canalizou rios de dinheiro para o Big Finance, que
o repassou para o Big Business, que, diante dessa baixa demanda
agregada, o utilizou para recomprar suas próprias ações e outros ativos
improdutivos.
A riqueza pessoal de alguns disparou, os salários da maioria estagnaram,
o investimento desmoronou, as taxas de juros despencaram e os Estados e as
corporações tornaram-se viciados em dinheiro grátis. Então, quando os bloqueios
da pandemia sufocaram a oferta de bens e os auxílios governamentais aumentaram
a demanda, a inflação voltou. Isso forçou os bancos centrais a escolher entre
concordar com o aumento dos preços ou destruir os zumbis corporativos e
estatais que eles alimentaram por mais de uma década. Eles escolheram o
primeiro.
De repente, porém, o FMI viu a capacidade perdida do establishment liberal
de estabilizar o capitalismo refletida no aumento da desigualdade econômica.
Assim, a última coisa que os mercados precisavam, perceberam os tecnocratas do
Fundo, era mais socialismo para os ricos. Mas seria preciso muita boa vontade
para interpretar a reação de pânico do FMI como uma conversão sincera à
redistribuição econômica e à social-democracia. Foi apenas uma advertência
contra um ato de automutilação da elite.
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