06 dezembro 2023

Qual reforma tributária?

O que queremos com uma reforma tributária?

No Brasil, enquanto os 10% mais pobres pagam o equivalente a 26,4% de sua renda em impostos, os 10% mais ricos pagam 19,2%. Obviamente, os grupos sociais com amplo acesso aos grandes meios de comunicação influenciam a manutenção desse quadro. Para a maioria da população, contudo, um sistema tributário desejável deve ser aquele no qual a tributação direta seja muito maior, e a indireta, muito menor
Fausto Augusto Junior e Leandro Horie/Le Monde Diplomatique

 

Sistema tributário é o conjunto de normas e instrumentos que organizam a arrecadação de tributos de uma sociedade e tem influência decisiva sobre a forma como ela se organiza. O conceito “civilizatório” de sistema tributário considera que essa arrecadação deve financiar o Estado, para satisfação das necessidades coletivas definidas por um pacto político.

Os sistemas tributários dos chamados “países centrais” ou “desenvolvidos”, especialmente nos arranjos políticos e institucionais do pós-Segunda Guerra Mundial, colocaram o acesso aos direitos sociais como condição à cidadania plena, com a adoção de políticas públicas de acesso universal e financiamento solidário. Apesar das evidentes heterogeneidades entre os modelos de Estado de bem-estar social, um aspecto se destacou: o financiamento deveria respeitar o princípio da capacidade contributiva, ou seja, os que tivessem mais recursos, renda ou patrimônio deveriam dar maior contribuição do que os menos favorecidos economicamente. Esse princípio pretendia manter o financiamento dessas políticas estável e em patamar suficiente para atender à s necessidades coletivas, proporcionando maior homogeneidade social e viabilizando a sustentação política do arranjo institucional. Com variações ao longo do tempo – características dos diversos ciclos políticos que se sucederam –, esse pacto social tem se mantido, mesmo diante do recente avanço de grupos políticos com posicionamento mais à direita, que investem contra ele e vêm apostando em um possível esgotamento desse modelo, diante da recente piora da desigualdade social nesses países e diante da ausência de respostas econômicas e sociais adequadas.

No Brasil, a Constituição Federal de 1988 foi responsável tanto por construir o que se denomina Estado de bem-estar social brasileiro como por reconfigurar completamente o sistema tributário. Resultado da correlação de forças políticas da redemocratização do período pós-ditadura, a Constituição buscou estruturar fontes de receitas que financiassem o novo sistema de políticas públicas universais e, ao mesmo tempo, garantissem recursos aos governos subnacionais (estados e municípios) para que também contribuíssem com a operacionalização dessas ações. O princípio norteador do sistema tributário brasileiro era, assim como nos países “desenvolvidos”, o princípio da capacidade contributiva. Dessa forma, em teoria, o sistema seria composto de um conjunto de políticas públicas universais relativas a saúde, educação e seguridade social, ao qual toda a população poderia ter acesso, sem contribuição prévia, com “financiamento solidário”. Na prática, porém, o que se concretizou desde então foram políticas públicas universais que funcionam de forma subfinanciada, algumas inclusive com insuficiência crônica de recursos, a despeito dos evidentes impactos positivos na sociedade, e uma estrutura tributária regressiva, contrariando a ideia de que “os que mais têm são os que mais pagam”.

Há três formas de financiamento do Estado: emitindo moeda, endividando-se e arrecadando tributos. Ainda que se reconheça que os dois primeiros podem ser (e já foram) utilizados em várias circunstâncias, há de se admitir que a arrecadação por meio de um sistema tributário permite maior previsibilidade, transparência e sustentabilidade do financiamento do setor público a longo prazo. 

Um sistema tributário pode ser progressivo ou regressivo. A questão é saber quem paga proporcionalmente mais impostos: os mais pobres ou os mais ricos. Obviamente, o desejável é que seja progressivo, isto é, os que podem mais devem contribuir mais para o financiamento do Estado, já que muitos deles inclusive se aproveitam de formas diretas (isenções) ou indiretas (estímulos fiscais, por exemplo) para manter o status quo econômico. Para que um sistema tributário seja progressivo, é fundamental que haja instrumentos que permitam diferenciar aqueles que podem contribuir mais dos que podem contribuir menos: assim, a tributação direta (aquela que ocorre sobre renda, patrimônio, fortunas, aplicações financeiras, entre outras formas) é preferível à tributação indireta (como sobre o consumo de bens e serviços, em que todos pagam o mesmo imposto sobre determinada mercadoria, independentemente de sua capacidade contributiva). Dito de outra forma: tributar quem tem aplicações em ações ou grandes fortunas, por serem restritas a segmentos da sociedade com maior poder aquisitivo, teria poder de gerar maior progressividade e estabilidade tributária do que um imposto sobre um quilo de arroz, por exemplo, que é o mesmo para o cidadão pobre e para a pessoa mais rica do país, além de se tratar de uma arrecadação muito mais volátil. E é da maior importância que o sistema seja transparente – especialmente sobre quem recebe isenções, que devem ser justificadas pela eficiência para a sociedade – e que não tenha aplicação complexa, para que toda a população entenda como ele funciona e se evite a evasã o fiscal.

Ao contrário dos países mais desenvolvidos, o sistema tributário brasileiro é regressivo. O peso da tributação indireta é muito maior que o da direta, o que faz com que os mais pobres paguem proporcionalmente mais impostos que os mais ricos. Não é um sistema transparente, pois há dificuldade para obter informações sobre recolhimento de impostos e isenções, especialmente de grandes empresas e da população mais rica. O sistema também apresenta grande complexidade, o que permite interpretações dúbias e abre espaço para o planejamento tributário (uma forma legal de interpretação das leis para reduzir o pagamento de tributos) e a sonegação de impostos. Não é um sistema que promove justiça fiscal nem eficiência: enquanto um(a) assalariado(a) tem a renda tributada na fonte e paga o mesmo imposto sobre os alimentos que a população mais rica, esta, por sua vez, utiliza diversos subterfúgios para recolher quantias menores do que as que deveria. Segundo o artigo “Tributação indireta: alíquotas efetivas e incidência sobre as famílias”, de Fernando Gaiger Silveira et al., divulgado em 2022 em publicação do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), no Brasil, enquanto os 10% mais pobres pagam o equivalente a 26,4% de sua renda em impostos, os 10% mais ricos pagam 19,2%. Vale salientar que essa diferença é provavelmente maior quando considerados os 5% e o “topo” 1% mais rico.

Obviamente, esses grupos sociais com amplo acesso aos grandes meios de comunicação e atores políticos relevantes influenciam a manutenção desse quadro que os favorece, geralmente apontando outra saída quando incitados sobre ele: menos Estado, com redução do tamanho do setor público; fim da universalidade das políticas públicas; reforma do sistema de seguridade e previdência, entre outras fórmulas vendidas diariamente como panaceia do subfinanciamento dessas políticas. Tais soluções, porém, aprofundariam ainda mais a desigualdade, em um dos países mais desiguais do mundo (com grande contribuição do sistema tributário). Também é frequente a “criminalização” do pagamento de impostos, que seriam exagerados: o patamar de arrecadação tributária está muito mais próximo d o verificado em países desenvolvidos porque o Brasil tem um perfil de políticas públicas muito mais próximo destes do que de outros – por exemplo, os que não contam com seguridade universal. No caso brasileiro, o mais importante deve ser quem paga, e não quanto se paga; e o segmento mais rico da população, pelo privilégio tributário, não tem interesse nesse debate.  

Para a maioria imensa da população brasileira, o sistema tributário desejável deve ser aquele no qual a tributação direta seja muito maior, e a indireta, muito menor, em um sistema progressivo que respeite a capacidade contributiva da população, com justiça fiscal, e que tenha maior estabilidade de receitas, quadro inverso ao atual. Esse modelo de tributação geraria menor desigualdade de renda e maior eficiência arrecadatória, e estimularia o crescimento da economia, já que permitiria a redução de preços e o aumento da renda disponível especialmente entre os mais pobres, entre outros efeitos positivos. 

A relação entre maior tributação indireta e menor desenvolvimento é inequívoca, como pode se observado no gráfico desta página, que relaciona o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) com a porcentagem da tributação indireta (sobre o consumo) sobre a tributação total: dos países considerados pela Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) – como França, Estados Unidos e Dinamarca –, além do Brasil, quanto maior é a tributação indireta, menor é o IDH. Percebe-se que o Brasil, com participação dos impostos indiretos muito maior que dos diretos, tem IDH muito menor que a média dos países analisados, localizando-se no estrato inferior do gráfico. Já a maioria dos países com IDH superior apresenta faixas de tributação indireta menores, ou seja, a maior parte da tributação é direta.

Sobre a proposta de reforma tributária no Brasil em 2023, a ideia inicial tem sido dividi-la em etapas. Primeiro, adotar medidas com base na Proposta de Emenda Constitucional n. 45/2019, que cria o Imposto sobre Valor Adicionado (IVA) brasileiro, avançando em direção à simplificação do sistema tributário; desenvolver instrumentos de política regional; e mudar alguns impostos sobre propriedades – como jatinhos, iates e outros equipamentos de transporte – e herança (sem aumento de alíquotas), tendo como princípio a neutralidade, ou seja, atuar em como se cobra, e não de quem se cobra. A outra parte da reforma versaria sobre a modificação do imposto de renda e a desoneração da folha de pagamentos. Ainda há outras medidas necessárias tramitando paralelamente no Co ngresso Nacional e que certamente afetariam a parcela mais rica da população, como a que trata dos fundos offshore (MPs 1.174 e 1.184/2023), que, caso avance, pode dar algum auxílio à busca pela progressividade tributária.

Sobre o conteúdo da PEC 45/2019, apesar de desejável, pois ajuda a simplificar o sistema e acaba com a “guerra fiscal”, entre outros dispositivos, as medidas estão aquém, isoladamente, de sanar as distorções do sistema tributário brasileiro, sobretudo a regressividade. É necessário avançar no debate sobre tributação direta, renda e patrimônio, dividendos, lucros e instituição do imposto sobre grandes fortunas, por exemplo, em tributos formais e específicos. Sem isso não haverá avanços, podendo, inclusive, resultar em uma alíquota do IVA superior à média no mundo, pois, sem o aumento da tributação sobre renda e patrimônio, a tributação sobre o consumo terá de continuar elevada. 

A grande imprensa e o empresariado têm alardeado como “unanimidade” que a PEC 45 é um avanço sobre a questão tributária. Não há espaço para uma análise que mostre que, isolada, a proposta é insuficiente, apesar de representar um passo importante. Sem atacar as causas fundamentais da regressividade tributária, o debate atual servirá apenas para dar um verniz de legitimidade política à questão. Mais do que isso, o resultado pode fraturar o pacto político e social consolidado na Constituição Federal, com impactos sociais e econômicos imprevisíveis, dado que coloca em risco o modelo de financiamento desse pacto e as aspirações de desenvolvimento do país: sem a ação do Estado, financiada pela sociedade, não há como lograr sucesso a longo prazo.

*Fausto Augusto Junior é diretor técnico e Leandro Horie é economista e técnico do Dieese.

Ilustração: João Bacellar

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