03 abril 2024

Jonas e Ivan

Jonas, Ivan e o sentido simbólico
Marcelo Mário de Melo

 
Em 1964 havia no Colégio Estadual de Pernambuco – CEP, antigo Ginásio Pernambucano, hoje novamente com o velho nome, no Recife, uma base do Partido Comunista Brasileiro com 25 jovens militantes, homens e algumas mulheres. A ação política se desdobrava nas reivindicações locais, nas campanhas pelo diretório estudantil e nas disputas com a direita em torno das entidades municipal e estadual dos secundaristas: a Associação Recifense dos Estudantes Secundários – ARES e o CESP – Centro dos Estudantes Secundaristas de Pernambuco. 
 
Os estudantes também eram convocados a atuar nas campanhas eleitorais e em mobilizações vinculadas às bandeiras políticas da época. Defendíamos as reformas de base, entre elas a reforma agrária, a reforma urbana, a reforma do ensino. Éramos pelo direito de voto para os analfabetos e cabos das forças armadas. Combatíamos o colonialismo e as ditaduras no mundo, com destaque para a libertação das colônias africanas, as ditaduras de Salazar em Portugal, Franco na Espanha e Strossner no Paraguai. Defendíamos ardorosamente a jovem revolução cubana e, muitas vezes, participávamos de atos públicos, panfletagens e pichações em defesa de Cuba, contra as ameaças e as tentativas de invasão comandadas pelo imperialismo norte-americano, então sob a batuta do bonitão John Kennedy.
 
Na base do CEP havia um grupo de companheiros que participava do Clube Literário Monteiro Lobato, o famoso CLML, que ativava um concurso permanente de crônicas, tinha reuniões sistemáticas, possuía centenas de filiados de diversos colégios e chegou a publicar alguns números do jornal Juvenília, inviabilizado a partir do golpe de abril de 1964. O CLML tinha uma grande força atrativa entre os secundaristas mais novos. Os seus integrantes comunistas formavam um grupo com identidade própria, inclusive, com uma organização de base específica, vinculada ao Comitê Secundarista. Jonas fazia parte desse grupo, juntamente com David Capistrano Filho, Francisco de Assis Barreto da Rocha, Amaro Quintino, Dmitri, Rogério Jansen e outros companheiros.
 
Eu não tinha muita aproximação com Jonas. Convivia com ele nas reuniões e o encontrava constantemente nas agitações de rua e em eventos políticos. Via-o muito ao lado de Davizinho, outras vezes com Davizinho e Rosa Barros, que participava da base do Colégio Estadual do Recife, de alunado feminino, e, como ele, morava no bairro de Santo Amaro. Tinha maior aproximação com o seu irmão mais velho, Carlos Augusto, que participava da base do CEP e chegou a disputar a presidência do diretório. 
 
No dia 1º de abril de 1964, no meio da tarde, saímos em passeata da Escola de Engenharia, na Rua do Hospício, em direção ao Palácio das Princesas, cercado por tropas verde-oliva, para defender o governo de Miguel Arraes. Quando estávamos na altura da Pracinha do Diário, no cruzamento com a Av. Dantas Barreto, em marcha passo de ganso, avançou contra nós um pelotão vindo das imediações do Palácio da Justiça, que começou a disparar, inicialmente, para cima. Depois foi baixando o ângulo até o nível dos manifestantes.  
 
Alguns companheiros gritaram: "é festim"! Mas eu vi os pedaços de reboco caindo do alto de um edifício, sob o efeito das balas, e dei o grito de alarme: "não é festim, não! É bala!” Entre correrias e tiros, avistei o companheiro Oswaldo Coelho, que me havia recrutado para a base do CEP e agora estudava Direito, carregando um corpo masculino com um grande buraco se estendendo pelo pescoço, o queixo arrancado a tiros. Somente depois, voltando para casa, soube que o ferido era Jonas.
 
Junto a Jonas também tombou o jovem Ivan Aguiar, comunista de nascença, filho de Severino Aguiar, que morreu na década de 90 com mais de noventa anos, ostentando o orgulho de ser o mais antigo comunista vivo do Brasil. Ivan havia sido aprovado no vestibular para engenharia e aguardava o momento de começar a fazer o curso. Já ferido, ele ainda conseguiu disparar um tiro de um revólver 38 que Antônio Florêncio, comunista de Palmares, recolheu e guardava como relíquia. 
 
A Ivan, um brinde pela iniciativa desse  - lamentavelmente único -  tiro dado em Pernambuco em defesa da democracia e contra os golpistas de 1964. Diz-se que, ao lado de Ivan e Jonas, também tombaram um homem desconhecido e uma funcionária da loja de produtos masculinos - Remilet - colhida por um tiro no seu local de trabalho, na Av. Dantas Barreto.
 
Aos 16 anos, depois de passar por três meses de prisão, quando perguntado, num inquérito, o que achava da "Revolução de 31 de Março de 1964", Davizinho respondeu que não poderia achar nada de bom, porque o seu pai estava sendo perseguido, ele fora preso e o seu melhor amigo havia sido morto. Em cartas a mim, na década de 1960, David se refere a momentos de profundo sofrimento pela perda de Jonas, denominando-os de "jonismo".
Vim saber mais de Jonas depois da sua morte. Li poemas seus. Apreendi a dimensão da sua amizade grudenta com Davizinho e Rosa, formando um trio inseparável. 
 
Um dia, em 1964, acompanhei numa homenagem a Jonas o poeta Albérgio Maia de Farias, também companheiro do PCB e das lutas estudantis. Na Galeria de Arte, da qual Jonas era freqüentador, suspensa na margem do Rio Capibaribe, em frente aos Correios, destruída na cheia de 1965, ele deixou fixado no mural um poema que começava assim: "Na Galeria de Arte/há um banco de saudade/e há gestos de futuro/quebrando a serenidade".
 
Jonas e Ivan Aguiar tiveram suas vidas interrompidas na juventude. Passaram à condição de referências simbólicas dos jovens que lutaram pela democracia e contra a implantação da ditadura de 1964. Transformaram-se em bandeiras de idealismo e resistência, tremulando em nossos corações e apontando para a coerência dos nossos passos.

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