16 setembro 2024

Política de segurança

Eleição municipal pode contribuir para uma nova visão de segurança pública
Processo de escolha de novos prefeitos e vereadores é oportunidade para mudar a concepção atual de segurança pública, ditada pela direita, e ampliar a participação dos municípios
Priscila Lobregatte/Vermelho  

Problema que afeta milhões de brasileiros há anos, a violência é um dos temas que sempre surgem no período eleitoral. Mas, em geral, o debate é contaminado pela visão autoritária e punitivista da direita, que tem sido hegemônica no Brasil e que ganhou novo impulso com a ascensão do bolsonarismo. 

Nesse cenário, o pleito deste ano pode ser um ponto de virada para iniciar uma nova fase no debate sobre a segurança pública que leve em conta os direitos humanos e os problemas sociais, bem como a maior participação dos municípios.

Mesmo que, de acordo com a legislação vigente, a responsabilidade da segurança pública esteja direcionada aos estados e em parte à União, os municípios podem cumprir papel fundamental, principalmente na chave da prevenção, contribuindo para forjar essa nova visão.

“A Constituição, no seu artigo 144, trata da segurança pública, em sentido estrito, como atividade ligada à polícia. E delega aos municípios a formação de guardas para cuidarem de seus próprios públicos. Mas, a minha interpretação vai além”, diz José Carlos Pires, membro da coordenação da Associação dos Advogados e Advogadas pela Democracia, Justiça e Cidadania (ADJC) e ex-secretário de Segurança de Jundiaí (SP) entre 2013 e 2016.

Leia a primeira parte desta reportagem: Segurança pública precisa avançar para além da repressão e do encarceramento 

Além do papel das polícias no artigo 144, argumenta Pires, “a Constituição traz a questão do direito social à segurança em seu artigo 6º, bem como estabelece o papel dos municípios e a sua capacidade de legislar, conforme o interesse local, no artigo 30. Soma-se a isso a Lei do Susp (Sistema Único de Segurança Pública), que coloca a segurança como dever e responsabilidade de todos — União, estados, Distrito Federal e municípios”. 

Ele defende a articulação desses dispositivos legais para estabelecer parâmetros de atuação dos municípios na área da segurança pública e, ao mesmo tempo, a necessidade de desenvolver políticas de âmbito social para enfrentar a violência.

“É possível trabalhar, de um lado, na prevenção, combinando a atuação das guardas municipais com a dos órgãos que têm poder de polícia administrativa como os de fiscalização do comércio, do trânsito e de vigilância sanitária. E de outro lado, é preciso implementar políticas sociais, que também funcionam de maneira preventiva, em áreas como educação, saúde, assistência social, esporte, cultura e lazer. Esse conjunto de políticas, se bem aplicado no território, contribui para o enfrentamento da violência e da criminalidade”, aponta. 

A concepção da socióloga da USP, Vanessa Orban, segue por esse mesmo caminho. “As cidades podem ser facilitadoras ou inibidoras do crime: áreas iluminadas, maior presença de um efetivo da Guarda Municipal nas ruas, uma dinâmica espacial com comércios que permitam o fluxo de pessoas e as estimulem a sair de casa e circular pelo espaço público, locais de lazer que sejam atraentes para as pessoas frequentarem até altas horas…Tudo isso se relaciona à atuação municipal que ajuda (e muito) na inibição dos crimes mais cotidianos, como assaltos e furtos de cidadãos”.

Abordagem policialesca

Principal cidade do Brasil, o que acontece em São Paulo pode influenciar outros municípios e, ainda, servir de termômetro para o que vem sendo pensado pelas forças políticas em disputa pelo país. Na capital paulista, o foco na repressão e na valorização da solução policialesca segue sendo a tônica dos candidatos alinhados à direita ou ao centro.

“Nestas eleições, observamos em São Paulo que todos os candidatos defendem o aumento do contingente da GCM (Guarda Civil Municipal). Dentre os de direita, verifica-se, ainda, a presença do ex-comandante da Rota, Ricardo Mello de Araújo (PL), na chapa do prefeito Ricardo Nunes (MDB) e da policial militar Antonia de Jesus na chapa de Pablo Marçal (PRTB)”, aponta Natasha Bachini, pesquisadora de pós-doutorado no Núcleo de Estudos da Violência (NEV/USP).

Além disso, acrescenta, “temos a reprodução do argumento e de jargões das disputas anteriores, como acontece com José Luiz Datena (PSDB), que afirma que ‘vagabundo não tem vez’, promete colocar fuzis nas mãos da GCM e defende ‘tolerância zero com usuários de drogas’. Marçal, de forma semelhante, defende uma equiparação da GCM à Polícia Militar. Por sua vez, Tabata Amaral (PSB) — que não se diz exatamente de direita — propõe gratificações para profissionais que atuem em áreas com maior índice de criminalidade, o que pode incentivar maior letalidade por parte polícia”. 

Ela salienta, contudo, que no âmbito das campanhas digitais, esse tema ganha maior espaço e gera mais engajamento nos perfis dos candidatos à vereança, especialmente aqueles oriundos das forças de segurança pública, que postulam cada vez mais espaços institucionais. “Neles, verifica-se que a estratégia bolsonarista continua a ser reproduzida em âmbito local, a partir das críticas ao uso de câmeras corporais por policiais (tema do qual os candidatos ao Executivo fogem), e de menções positivas aos treinamentos e operações policiais, especialmente envolvendo membros da Rota”. 

Conforme salienta Vanessa Orban, “para a extrema direita, a guerra é a saída para o alcance da paz. Na narrativa dela, não há como enfrentar o crime sem o confronto bélico. Então, armar a população é como preparar a todos para uma guerra de todos contra todos”. 

Ela aponta que nessa chave discursiva, “a polícia ganha uma posição heróica e a legitimidade de ser a única apta a falar sobre crime. Esse discurso tem, cada vez mais, ganhado hegemonia entre todos os grupos sociais e isso inclui a esquerda. Outras opções de combate à criminalidade estão cada vez mais deslegitimadas e consideradas infrutíferas, mesmo sem terem sido implementadas. A prevenção nem é citada, ou quando é, está associada somente às câmeras de vigilância”.

A socióloga avalia que, de maneira geral, a esquerda “se eximiu de entrar nesse debate e disputar o direito de falar e opinar sobre segurança pública ao longo de anos, o que acabou colaborando na associação entre segurança pública e polícia. E uma vez que polícia é associada à ditadura militar, logo é assunto da direita e não da esquerda”. E completa observando que, durante décadas, “essa associação foi sendo construída no imaginário da população e do eleitor sem nenhuma contraposição”, de maneira que “quem não defende a polícia nas ruas perde voto”.

Perspectiva interdisciplinar

Para mudar essa situação e viabilizar uma proposta democrática e avançada da segurança pública efetiva, Natasha, do NEV, defende ser preciso uma perspectiva interdisciplinar, baseada nos direitos humanos.

“De todos os programas de governo, o de Guilherme Boulos é o que mais traz essa dimensão e se dedica a questões como a redução da violência contra a mulher a partir da descentralização da patrulha guardiã Maria da Penha, e ao caso da ‘cracolândia’, a partir do acolhimento humanizado às pessoas em situação de rua. A respeito desse último caso, Tabata apresenta um plano semelhante e ainda traz uma proposta interessante de programa de promoção à saúde mental para os agentes da GCM, ponto de suma importância, mas ainda pouco discutido”.

Na avaliação de José Carlos Pires, que contribuiu para os debates em torno do programa de governo de Boulos, um ponto importante é garantir financiamento contínuo aos municípios. “Acho que o governo federal precisava ter uma relação mais direta com os municípios e criar mecanismos para financiar, de forma perene e sistêmica, a política de prevenção. Para isso, o município precisa participar, também de maneira perene e sistêmica, do Fundo Nacional de Segurança Pública e aplicar a política conforme diretrizes da União”.

Outro ponto que destaca é atuação da GCM junto à população. “A guarda pode fazer o patrulhamento no bairro e, no contexto do patrulhamento, estabelecer uma relação de proximidade com a comunidade, fazer a ronda escolar nas entradas e saídas das escolas naquele bairro, atuar na patrulha Maria da Penha, além de mediar conflitos. Muitas vezes, ao mediar um conflito, evita-se um desfecho pior, como um homicídio, ou como o recrutamento de um jovem para o crime organizado”.

O advogado conclui ressaltando que “quem tem capacidade e competência para fazer isso tudo são as administrações municipais, que estão perto da população local; não é o estado e, muito menos, a União”. 

Minha opinião: leitura

O sucesso da Bienal do Livro em São Paulo 

Luciano Siqueira  


Terminou ontem em São Paulo a edição deste ano da Bienal do Livro, que atraiu 722 mil pessoas e registrou bom desempenho das vendas das diversas editoras presentes. 

Em tempos de suposta primazia da comunicação cibernética e das redes sociais, o renovado interesse pela leitura de livros é um bom sinal.

 

Faz-me recordar o que me disse certa vez o livreiro Tarcísio Pereira, da histórica livraria Livro 7, no Recife, que avaliava a expansão das vendas de títulos relacionados uma melhor compreensão da realidade brasileira e mundial em época de crise. 

No balanço que leio da Câmara Brasileira do Livro não enxergo detalhes em relação aos títulos mais vendidos. Entretanto, suponho que é o lado da literatura, parcela expressiva dos frequentadores tenha se interessado por textos relativos a análise da atual situação do país e do contexto mundial. 

Tudo a ver com elevação do nível de consciência social tão necessário para que se erga na sociedade Brasileira de agora um fortinho de resistência e de superação da onda neofacista.

Leia também: https://lucianosiqueira.blogspot.com/2024/09/leitura-e-escrita.html 

Palavra de Nádia Campeão

Nádia Campeão analisa cenário eleitoral e candidaturas municipais de 2024
Em entrevista, ex-vice-prefeita de São Paulo discute o perfil de campanha de vereadores e as perspectivas apontadas por pesquisas eleitorais, além dos desafios políticos do atual cenário eleitoral
Cezar Xavier/Vermelho

No recente episódio do programa Entrelinhas Vermelhas, Nádia Campeão, ex-vice-prefeita de São Paulo (2013-2016) durante a gestão de Fernando Haddad, trouxe reflexões sobre a importância das prefeituras e o atual cenário político-eleitoral. Com a experiência acumulada à frente de uma das maiores metrópoles do mundo, Nádia traçou um panorama da responsabilidade das administrações municipais e sua relevância no cotidiano dos cidadãos.

A entrevista com Nádia Campeão no Entrelinhas Vermelhas foi uma reflexão sobre os desafios das gestões municipais, as dinâmicas eleitorais e a importância da representação democrática. Sua análise reflete uma visão experiente sobre como o cenário político impacta diretamente o dia a dia da população e a necessidade de um olhar atento às questões locais e nacionais nas eleições de 2024. Ela também avaliou as perspectivas apontadas pelas pesquisas de intenção de voto nas capitais.

“A prefeitura é o poder federativo mais próximo do cidadão”, destacou ela ao longo da entrevista. Segundo ela, esse papel de proximidade é evidenciado no cuidado com questões cotidianas, como a manutenção das ruas, a oferta de serviços de saúde, educação, transporte e outros aspectos diretamente ligados à vida nas cidades. A vice-prefeita também enfatizou que essa conexão torna as prefeituras o primeiro espaço de experiência cidadã: “Você pode organizar um movimento, fazer um protesto em frente à prefeitura, marcar uma audiência com o prefeito, participar de atividades… isso é muito diferente do governo estadual ou federal, que têm uma distância maior.”

No entanto, Nádia ressalta que, apesar de uma boa gestão poder transcender orientações políticas, os prefeitos progressistas, em sua visão, tendem a colocar o interesse público e o social em primeiro lugar. Ela reforça que a saúde e a educação públicas de qualidade devem ser prioridades de qualquer prefeito que se alinhe com os princípios democráticos e de esquerda.

Leia: https://lucianosiqueira.blogspot.com/2024/09/minha-opiniao-tatica-do-odio.html

Palavra de poeta: Chico de Assis

VESTÍGIOS PARISIENSES
Chico de Assis*  

Paris é uma cidade
feminina.
 
Ela nos acolhe 
em seu ventre 
e nos encolhe 
por dentro.
 
Como se a vida
fosse apenas isso:
essa leveza 
que nos sacode ao centro
 
e daí nos entrega 
ao vento dos amores 
que se foram;
 
ao óleo balsâmico 
das dores 
que morreram;
 
ao peito intumescido
dos desejos
que nasceram!

[Ilustração: Henri de Toulouse Lautrec]


Neofascismo decadente

As placas tectônicas do Sete de Setembro
Todas as conversas que ouvi na Avenida Paulista eram sobre Pablo Marçal. “Ele é foda”, disse um homem. “Deus queira que ele não seja um Doria da vida”, respondeu seu amigo
Jonas Medeiros/revista Piauí   

Tudo indicava que, neste ano, o Sete de Setembro de 2024 ocorreria sob uma tempestade perfeita, como observou a cientista política Camila Rocha. A derrubada do X e a suspensão temporária dos perfis do Pablo Marçal (PRTB-SP) atiçaram o sentimento da extrema direita de que é perseguida pelo “sistema”. Somaram-se a isso as revelações, feitas pela Folha de S.Paulo, de que o ministro Alexandre de Moraes trocou informações com seus assessores fora do devido processo. As reportagens, agora já um pouco esquecidas, serviram para colocá-lo na defensiva.

No ato de 25 de fevereiro, o campo reacionário estava acuado. Seu caráter insurgente e subversivo estava não apenas esvaziado como, pela primeira vez desde 2018, parecia ter se tornado uma armadilha imobilizadora e até mesmo perigosa. Passaram-se sete meses sem manifestações expressivas do bolsonarismo. Em setembro, parecia que o hiato estava para acabar. A conjuntura política vinha reanimando o radicalismo adormecido da extrema direita.

O ato do último sábado (7) na Avenida Paulista, no entanto, foi consideravelmente menor do que o de 25 de fevereiro, caindo de cerca de 185 mil manifestantes para 45 mil, segundo dados do Monitor do Debate Político no Meio Digital, projeto vinculado à USP. Diminuiu não apenas a multidão, mas também sua intensidade emocional. O foco maior de engajamento não estava no carro de som central, de onde saíram discursos pouco inspiradores. O que aconteceu?  

Todo protesto é uma construção com agendas e projetos múltiplos – e nem sempre há convergência entre as intenções de quem organiza e as motivações de quem comparece. O ato de sábado foi um comício eleitoral sui generis, como, aliás, já havia sido o Sete de Setembro de dois anos atrás, em plena campanha presidencial. Naquele Bicentenário da Independência havia uma disputa entre quem queria fazer campanha, quem pedia a volta da monarquia e quem defendia a intervenção dos militares para subverter o resultado da eleição que nem havia acontecido. No Sete de Setembro de 2024, pude identificar duas agendas oficiais correndo paralelamente. 

A primeira foi aquela programada, apresentada e defendida no carro de som central, com protagonismo de Silas Malafaia e Jair Bolsonaro. O pastor não quis ou não conseguiu manter o monopólio da palavra na manifestação. Além de seu carro de som, havia outros dois, menores: um na altura do Conjunto Nacional, com os palavras de ordem “Fora Moraes” e “Reforma do Judiciário Já”; outro na altura do Shopping Cidade São Paulo, com temática pró-agronegócio (“O Governo Federal está assassinando o agro, com alta taxa de juros para o custeio agrícola!!”, dizia uma faixa). Em nenhum dos dois casos consegui identificar quem eram os organizadores.

A palavra de ordem no carro principal foi “Fora Moraes”, uma senha para construir a campanha pró-impeachment do ministro. Desde que a extrema direita voltou a organizar protestos, na virada de 2023 para 2024, vemos uma estratégia recorrente: ocupar massivamente as ruas para pressionar o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), e demais senadores a votarem pedidos de impeachment contra ministros do Supremo. Embora o ato de 25 de fevereiro tenha sido grande, a palavra de ordem estava muito mais centrada na anistia – tanto de Bolsonaro, tornado inelegível, quanto dos presos do 8 de janeiro – do que no “Fora Moraes”. Isso era efeito da correlação de forças, naquele momento muito mais favorável a Moraes.  

Com os acontecimentos dos últimos meses, o campo reacionário sinalizava uma virada na maré. Os discursos de Malafaia e Bolsonaro, no entanto, foram frustrantes. O pastor havia prometido, dois dias antes, que “vai ser muito quente o que eu vou falar lá”. Não cumpriu a promessa. Ele e o ex-presidente repetiram, com outras palavras, o que já tinham dito nos atos de 25 de fevereiro, em São Paulo, e 21 de abril, no Rio de Janeiro. As pessoas ao meu redor, na altura da Rua Peixoto Gomide, aparentavam apatia diante dos discursos demasiadamente longos e que tinham pouco a oferecer de novo. Não basta o orador demonstrar emoção, como nos gritos de Malafaia – é preciso produzir adesão emocional. Uma cena sintomática: no momento em que o pastor profetizou que “a inelegibilidade vai cair”, uma senhora passando do meu lado comentou: “Ah, esquece isso daí.” Se essa manifestante não acredita que Bolsonaro possa voltar como líder eleitoral, isso significa que ela está aberta a novas lideranças? Sob quais condições? 

Os organizadores do protesto sabem que, neste momento, não são capazes de criar um movimento de massas que ocupe as ruas e chacoalhe o Senado. Alguns oradores no carro de som central se deram por satisfeitos recomendando que, daqui a dois anos, todos lembrem “quais senadores defenderam a democracia” e quais precisam ser substituídos pelo voto. O curto prazo do “Amanhã vai ser maior” foi substituído pelo médio prazo: aumentar a presença da extrema direita no Senado em 2026, emparedar Pacheco e STF, deslegitimar os processos judiciais conduzidos por Moraes (em linha similar ao que ocorreu com Sérgio Moro e a Lava Jato), reverter a inelegibilidade de Bolsonaro e estender a anistia aos presos do 8 de Janeiro. 

A segunda agenda oficial, no Sete de Setembro, era puramente eleitoral. Adesivos, santinhos, cartazes, camisetas e até um carro exibiam nomes, fotos e números de candidatos a vereador. E não apenas da capital: a Avenida Paulista mobilizou também candidaturas de cidades do interior do estado de São Paulo e de outros estados (como Santa Catarina, Rio de Janeiro e Minas Gerais). Contabilizei os partidos de todos os candidatos com que me deparei naquela tarde. De longe, o que mais vi foram candidatos do PL (11), seguidos por União Brasil (4), Podemos (3), Novo (2), e Avante, DC, PRD e PP (1 cada).  

Não me recordo de ver tantas camisetas do Novo em um ato bolsonarista. Mas não chega a ser surpreendente a incorporação plena do partido ao campo reacionário, tendo em vista dois episódios. O primeiro, em meados de outubro de 2022, quando João Amoêdo declarou apoio a Lula no segundo turno das eleições, mas logo em seguida se viu forçado a se desfiliar do partido, hostilizado por correligionários que tinham mergulhado de cabeça no bolsonarismo. O segundo episódio foi um ato organizado por atores libertarianos e anarcocapitalistas em 25 de outubro daquele mesmo ano, quando ficou evidente o grau de convergência do discurso do deputado Marcel Van Hattem (Novo-RS) com o projeto bolsonarista de intervir no Judiciário. O impeachment de ministros do Supremo já estava na ordem do dia. 

A grande ausência que se fez sentir no sábado, na Avenida Paulista, foi o prefeito e candidato à reeleição Ricardo Nunes (MDB). Ele estava lá, de pé ao lado de Bolsonaro, mas não se ouvia falar dele, ausente também dos santinhos distribuídos na rua. O único momento em que vi algum material com seu nome e número foi desconcertante. Fui parado na virada da Alameda Santos com a Rua Pamplona por dois policiais que queriam revistar minha mochila. Nesse momento, percebi que alguém havia colado nela, sem meu consentimento, um adesivo com a cara de Nunes. (Indiferente ao meu constrangimento de estar fazendo propaganda inadvertidamente, o PM pareceu satisfeito com a minha aparente identidade política.) 

As agendas oficiais – tanto a do chão do ato quanto a do carro de som central – tiveram caráter abertamente institucionalista. Seu norte eram as eleições municipais de 2024 e as eleições para o Senado em 2026. Esgotado o intervencionismo militar, reprimido o golpismo no 8 de janeiro, a extrema direita ficou órfã de estratégia. Tenho insistido desde então que o campo reacionário poderia canalizar suas energias para a disputa institucional. Isso, porém, requer o fortalecimento de novas lideranças políticas, até porque Bolsonaro está inelegível. Se for mantido o caráter antissistêmico – isto é, transgressivo e subversivo – da extrema direita, composições eleitorais de ocasião, como a alian&ccedi l;a Nunes-Bolsonaro, não terão êxito. A própria base bolsonarista deseja o desvio às normas da política tradicional.  

Apaisagem simbólica dos atos da extrema direita tem elementos recorrentes que refletem suas alianças históricas, inter-religiosas e transnacionais: a bandeira do Brasil Império (os monarquistas fazem questão de reivindicar o Sete de Setembro), a bandeira de Israel e o Leão de Judá (parte da apropriação evangélica de símbolos judaicos), a figura de Trump e, mais recentemente, a de Javier Milei. A grande novidade desta vez foram bonés azuis com a letra “M”, adesivos pequenos com o número 28 e adesivos maiores com a frase “Faz o M”. 

Os símbolos da candidatura de Pablo Marçal (PRTB) estavam por todo lado. Exibidos por orgulho nas cabeças e camisetas, ajudavam a alimentar a identidade coletiva reacionária. A simbologia também fortalece a sensação de que uma onda seria capaz de eleger Marçal como prefeito de São Paulo, contra tudo e contra todos. Se eleito, ele não apenas atropelaria a costura política que o próprio Bolsonaro fez em apoio a Nunes, como radicalizaria e aprofundaria os impulsos antissistêmicos da extrema direita brasileira. Marçal, um outsider dentre outsiders. Será que o ímpeto reacionário é como Saturno e devora seus próprios filhos?

O principal tema das poucas conversas que ouvi no ato era justamente Marçal. Como no caso de duas senhoras conversando – uma delas, sentada no chão, disse “Eu amo o Marçal”, e a outra, de pé, respondeu “Eu também”. Um vendedor, atento à vibe, começa a gritar: “É a água do Pablo Marçal!” Marçal foi um sucesso na produção de símbolos, likes, consumo e afetos. 

Ninguém sabia se Marçal ia mesmo comparecer ao ato. Na véspera, ele estava passeando por El Salvador, numa tentativa fracassada de se encontrar com Nayib Bukele, extremista que preside o país. O elemento surpresa criou expectativa crescente entre os manifestantes. Quando Marçal finalmente chegou ao ato, o carro de som já tinha encerrado suas atividades, conforme alegou Malafaia. Nas redes sociais, Marçal interpretou positivamente o fato de não ter sido convidado para o carro de som principal. “Ó, nós tamo aqui, não querem deixar eu subir no caminhão. A gente fica com o povo, a gente fica com o povo [manda beijo para a câmera].”

Presenciei o frisson que Marçal produziu no chão do ato. Em busca de um lugar melhor para ouvir os discursos do carro de som, me acomodei num ponto da Rua Peixoto Gomide em que o som era audível e a muvuca não era grande, em uma calçada espremida por grades que impediam as pessoas de ocupar o asfalto. Isso criou uma espécie de corredor de segurança, quase emulando uma dinâmica de tapete vermelho do Oscar. Antes que figuras como Nikolas Ferreira, Zé Trovão, Alexandre Ramagem e Sargento Fahur passassem pelo corredor, onde foram tietados, o grande acontecimento que eletrizou as pessoas foi um corre-corre promovido por Marçal. 

Eu mesmo não consegui vê-lo. Sua presença era fantasmática: primeiro correndo ladeira abaixo (câmeras, clicks, vídeos e sorrisos preenchendo o ar); depois, subindo a rua novamente, tão rápido quanto havia descido. As pessoas por alguns instantes ficaram alheias às disputas de poder em torno do carro de som. Aquele era seu candidato à prefeitura, com um magnetismo digno de celebridade. Tentei primeiro descer a rua, depois subir para ver se conseguia registrar alguma interação entre Marçal e os manifestantes. Em vão. As pessoas ao meu redor ficaram um bom tempo na expectativa de que ele fosse retornar. Uma senhora, carregando uma carteira de trabalho enorme, me perguntou: “Será que o Marçal vai passar de novo?”. Em seguida arrematou: “Esse cara tem coragem!” O ato foi se desmobilizando, e ficou claro que não haveria reprise. 

Mas a pesquisa de campo sempre surpreende. Já de saída, entreouvi uma conversa entre dois homens. “Você acha que o Marçal vai ganhar?”, perguntou um deles. O outro respondeu: “Ah, eu vou votar nele. Ele é foda”. O primeiro, então, comentou: “Deus queira que ele não seja um Doria da vida.” O entusiasmo com a candidatura de Marçal era nítido, mas pode-se perceber que, entre os eleitores bolsonaristas, a confiança não é irrestrita. Ela precisa ser constantemente construída, negociada, avaliada e comprovada. O campo progressista pode insistir o quanto quiser – não se trata de um “gado” que toma decisões em manada e sem reflexão.

Por debaixo das agendas oficiais, a agenda subterrânea de Marçal foi a grande vitoriosa do Sete de Setembro. Ele valorizou sua marca no campo reacionário a um baixíssimo custo, sabendo que sairia no lucro de qualquer jeito: se o convidassem para o carro de som, seria ovacionado; como não o fizeram, ele pôde posar de vítima de poderosos. Em comparação com o mar de santinhos largados na rua, foi uma forma muito mais eficaz de parasitar o protesto.

Minha opinião: a tática do ódio

Baixo nível na Paulicéia 
Luciano Siqueira  

Recomenda muito mal o destaque que se dá à cadeirada desferida por José Luiz Datena (PSDB), atingindo a cabeça de Pablo Marçal (PRTB).

Trata-se da disputa pela prefeitura da principal capital do país. 

Portanto, uma péssima referência em relação ao nível real em que se trava a luta política nos dias que correm, sob o impacto da dialética do ódio. 

Mais: o episódio é contabilizado como vitória tática parcial do ex-coach direitista, que provocou o oponente justamente com essa intenção. Apresentando-se como vítima, tenta se recuperar da tendência à queda de sua candidatura em intenções de votos, segundo pesquisas mais recentes. 

O destaque dado ao episódio pelo complexo midiático dominante contribui para isso, em prejuízo dos temas que realmente importam no debate eleitoral, relativos aos problemas centrais da cidade e sua conexão com os rumos do país. 

Leia também: https://lucianosiqueira.blogspot.com/2024/09/minha-opiniao-redes.html 

15 setembro 2024

Postei no Threads

Trump 'parece' ter sido alvo de 'tentativa de assassinato', diz FBI. Falta completar que se trata das eleições presidenciais em ambiente de decadência dos EUA. 

Leia https://lucianosiqueira.blogspot.com/2024/06/eua-decadencia-explicita.html

Arte é vida: Gustav de Smet

 

Gustav de Smet

Leia: https://lucianosiqueira.blogspot.com/2024/08/minha-opiniao-campanha_31.html 

Crise ambiental: implicações

As queimadas e a luta pela justiça social
Elen Fraga*   

As queimadas criminosas, muitas vezes promovidas por latifundiários que detêm o poder no Planalto Central e no setor agroexportador, são um dos maiores desafios enfrentados pelo governo brasileiro. O inimigo, nesse caso, está ao lado, no próprio território, o que torna a luta ainda mais complexa. Embora se diga que 70% ou 80% do nosso agronegócio é "limpo" e subsidiado, é evidente que há interesses em acabar com movimentos como o dos trabalhadores sem terra. Essas queimadas fazem parte de uma estratégia orquestrada, como mencionado por Ricardo Salles, quando falou da infame "boiada" que passaria, em uma das declarações mais absurdas de seu tempo no governo. Querem nos vender a imagem de um agro "tech, pop", mas isso acontece às custas da destruição da flora e fauna originais.

Enquanto isso, grande parte da população parece distraída, já pensando no carnaval e em suas prévias, em festas ou raves que nada acrescentam à nossa qualidade de vida, alheia a essas questões críticas. Apenas uma pequena parcela está atenta às políticas progressistas e humanitárias, e mesmo dentro desse grupo, há aqueles que preferem se manter na obscuridade, desfrutando de suas vantagens. No entanto, essa atitude é insustentável. Não há cidadão que possa resistir à poluição severa, e os insetos e mosquitos que fogem das florestas queimadas em busca de abrigo nas capitais se tornam grandes vetores (involuntários) de doenças perigosas para a vida humana. Um exemplo disso é a febre oropouche, que tradicionalmente tem seu nicho no Norte do Brasil, mas já registrou casos no Nordeste.

Em nosso estado, na capital recifense, já tem um caso amplamente divulgado pelas autoridades sanitárias. Além disso, há um silêncio preocupante em torno da Mpox, que ninguém parece estar discutindo, apesar dos riscos.

A pergunta que surge é: quem se beneficia da eliminação da população menos favorecida? O Brasil é, de fato, um país de preconceitos e regalias, mas se essa parcela da população desaparecer, quem ficará para produzir a mão de obra pesada e os produtos de alto valor que sustentam a economia e a regalia de uma minoria? É irônico pensar que esses trabalhadores, que mal conseguem consumir aquilo que produzem, sustentam um sistema que os oprime.

A consciência de classe é crucial para que entendamos que a "sinhazinha" ou o "senhorzinho" dos prédios de luxo não sabem preparar a própria salada fitness que consomem, muito menos entendem o verdadeiro custo da mão de obra simbólica por trás de seus produtos superfaturados. Talvez, quando essa consciência for amplamente disseminada, o Brasil comece a encontrar um caminho para a justiça social.

Hoje, em tempos de mídias baseadas em inteligência artificial (IA), os desafios são ainda maiores. Nós, cidadãos comuns, pedimos socorro por meio de ações legalistas, na esperança de acabar com essa desordem e caos moral que se instalaram no Brasil desde 1500. Não podemos mais ser ingênuos e nos deixar enganar por "espelhinhos" ou "santinhos". A luta pela justiça social e ambiental é mais urgente do que nunca.

Uma dica que não pode ser esquecida em vésperas de eleições é: quais melhorias queremos? Não aquelas individuais, mas as que são definidas pela Constituição de 1988. Basta verificar a primeira página: saúde, educação, moradia e lazer. E hoje, como não falar em quem votaram nas últimas eleições, em que contribuíram seus candidatos, em quem irão votar (voto é secreto, apenas reflita)? O voto, porém, obrigatoriamente deveria ser consciente sobre de onde viemos e aonde queremos chegar ! 

Lembro-me também de um amigo que, apesar de transitar por diferentes realidades, ora simples, ora mais elitizadas, prefere trocar os colarinhos de suas camisas em vez de comprar novas. Com isso, ele alimenta o mercado de pequenos empreendedores e contribui para a sustentabilidade econômica, ambiental e social.

*bióloga, sanitarista 

Palavra de poeta: Maurílio Rodrigues

MORRER DE AMOR AUSENTE .
Maurílio Rodrigues* 
Existe um encontro,
Marcado com o silêncio,
Nesta noite nefasta,
Quando de mim,
Tua voz se afasta,
Só ficando a certeza,
Da madrugada fria,
Sem o prenúncio do dia.

Sem o sol, e sua realeza,
Apenas, a inútil beleza,
De um quarto estagnado,
Com o desejo parado,
E um amor de prontidão,
A espera de uma solução,
Para não chegar a morrer,
De um amor ausente,
Ou então, infelizmente,
Viver solitariamente,
Essa inútil paixão.

[Ilustração: Casey Baugh]

Decadência ocidental

Adeus ao mundo eurocêntrico?
Um pensador destacado do altermundismo sustenta: o poder do Ocidente nunca foi tão frágil. É possível esperar um novo Sul Global? Por que a China é muito diferente da antiga URSS? Que esperar dela numa nova ordem mundial?
Walden Bello, entrevistado a Néstor Restivo, em Tektónicos | Tradução: < /span>Antonio Martins/Outras Palavras  

A primeira vez que encontrei Walden Bello foi no verão de 2001, em Porto Alegre. Por ocasião do primeiro Fórum Social Mundial (FSM), há mais de duas décadas, esse sociólogo das Filipinas, ex-membro do parlamento de seu país viajou para o sul do Brasil como tantos ativistas, líderes e acadêmicos ou pesquisadores que esperavam que esse fórum, e os que o seguiram por vários anos, se consolidasse como uma tribuna internacionalista de resistência ao neoliberalismo – então em seu momento de expansão – e, ao mesmo tempo, uma plataforma para ideias alternativas. Bello, pouco conhecido na América do Sul, já era presença importante nos movimentos “altermundistas”. Dirigia uma rede de organizações sul-asiáticas denominada Focus on the Global South, cujo nome me chamou atenção.

O termo “Sul Global” apareceu pela primeira vez em 1969, quando o professor e ativista norte-americano Carl Oglesby escreveu um artigo sobre a Guerra do Vietnã no qual mencionou a “dominação do Norte sobre o Sul Global” — causa, segundo ele, de uma “ordem social intolerável”. 

“Certamente não fomos os inventores nem os pioneiros em falar do ‘Sul Global'””, diz Walden Bello na Casa de las Madres de Plaza de Mayo, no inverno de 2024 em Buenos Aires, uma cidade que ele está visitando pela primeira vez. Ele conta que a Focus on the Global South foi estabelecida em Bangkok, Tailândia, em 1995, acrescentando:”de qualquer forma, adotamos esse nome, sintonizando-nos no momento certo com o que estava começando a acontecer no mundo”.

Walden Bello visitou à capital argentina (e não deixou de observar com perplexidade tudo o que emerge do governo de Javier Milei) a convite do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (CLACSO) e da Fundação para a Pesquisa Social e Política (FISYP). Palestrou sobre o “Impacto e oportunidades da crise da hegemonia dos EUA” e conversou com a Tektónikos sobre esse tema.

O que o Sul Global significa para você hoje?

– O que chamamos de países em desenvolvimento, subdesenvolvidos ou colonizados costumava ser chamado de “Terceiro Mundo”. Mas a União Soviética e a Europa Oriental entraram em colapso, entre 1989 e 91. Isso pôs fim à ideia de que havia um “segundo mundo”, um mundo comunista. Ficou difícil manter estes termos. Então, o termo Sul Global, que já havia sido inventado, ressurgiu como uma ideia na década de 1990, sob a premissa de reivindicar o fim de sua dominação.

Quais foram os principais desafios — e quais ainda são agora — nesse novo mundo em formação?

Continuam a ser o fim da dominação econômica e política dos Estados Unidos e de suas potências aliadas no Ocidente. São forças estruturais que dominaram o mundo por 500 anos, um cenário que, no entanto, está sendo questionado neste século XXI. Isso se dá principalmente por causa do surgimento de um grande ator como a China. Isso criou algum espaço para que o Sul Global pudesse se distanciar do Ocidente, tramar seu próprio desenvolvimento, ensaiar políticas autônomas – e não continuar a ser dominado por uma força ocidental liderada pelos Estados Unidos.A disputa da União Soviética com os EUA abriu espaço de manobra para o Terceiro Mundo. Mas a diferença é que agora a China possibilita outro cenário: é uma grande potência econômica e política de uma forma que a URSS não era – ou era apenas militarmente, mas não em outros níveis. Em outras palavras, agora a China tem grandes recursos econômicos e pode cooperar muito melhor com o mundo em desenvolvimento. Essas são condições muito diferentes daquelas da Guerra Fria.

Qual é o papel do BRICS? 

É uma nova formação importante, hoje já com 10 países que se juntaram ao chamado BRICS+. Isso significa que não apenas os quatro e depois cinco fundadores do início (Brasil, Rússia, Índia, China e depois África do Sul), mas agora o dobro de nações (Egito, Irã, Etiópia, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos se juntaram desde 2024). Além disso, outros países querem aderir. Em outras palavras, agora temos um nível maior de recursos que podem ser usados para o desenvolvimento do Sul Global. Em segundo lugar, e talvez o mais importante, temos a China novamente, não apenas como uma potência econômica, mas oferecendo um modelo bem-sucedido de desenvolvimento liderado pelo Estado, em contraste com o que o FMI ou o Banco Mundial vêm defendendo há décadas, com seu foco no mercado como condutor. E, em terceiro lugar, o p eso político dos BRICS é muito importante para fornecer recursos, espaço e margem de manobra, além de crédito para o Sul Global. Os BRICS também oferecem diversidade, pois em muitos aspectos os parceiros são diferentes uns dos outros (Brasil da Arábia Saudita ou Rússia do Irã etc.). Ainda assim, o importante é que o grupo agora ampliado não pode mais, devido ao seu tamanho e peso, ser dominado pelas potências ocidentais.

E quanto ao papel da China em particular, sendo a mais poderosa desse grupo?

É claro que a China lidera o grupo, é a principal fornecedora de recursos e impulsionadora dos bancos de desenvolvimento que estão sendo criados nesse novo ambiente, dos fundos de contingência, que têm formatos e exigências diferentes dos esquemas do FMI (o que mostra uma alternativa em potencial à ordem multilateral existente). A liderança da China é muito interessante. Pequim forneceu uma quantidade impressionante de recursos aos países do Sul Global e é um modelo, insisto nisso, em que o Estado controla as forças de mercado. Cada vez mais países estão olhando para isso como uma alternativa às economias orientadas pelo mercado. E, por fim, há o peso político e militar da China, embora ainda seja muito menor do que o dos EUA. A China tem muito cuidado para não se apresentar como um substituto dos EUA e disse explicitamente que bancos como o Novo Banco de Dese nvolvimento (NDB) ou o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (AIIB) não querem substituir o sistema de Bretton Woods. Entretanto, os EUA afirmam que a China é uma potência revisionista e ambiciosa, que quer ser a número um, substituir tudo, não se integrar ao capitalismo e que representa um desafio. Na verdade, essa é uma tentativa de justificar o primeiro objetivo dos EUA, que é conter a China com uma postura muito agressiva, presente em especial no governo Biden, que está saindo.

A GUERRA INTERNA IMPERIAL

O Ocidente está inevitavelmente entrando em guerra ou há setores que querem negociar algum tipo de transição?

Acho que a Europa está sendo arrastada pelos EUA nesse objetivo de conter a China. Ela foi fortemente influenciada e isso levou à expansão da OTAN para o leste e para a Ásia. Por meios econômicos, diplomáticos e militares, os EUA têm procurado conter a China durante todos esses anos e o Partido Democrata (PD) deu sinais muito claros aos seus militares de que é isso que eles querem em relação à China. O número de missões e bases dos comandos militares dos EUA no Pacífico foi aumentado e as forças armadas receberam sinal verde para isso. O comandante da Força Aérea, Mike Minihan, chegou a ser citado como tendo falado sobre a possibilidade de entrar em guerra contra a China em 2025.

A posição da extrema direita e do Partido Republicano em geral nos Estados Unidos é menos clara, você não acha?

Vamos examinar isso com atenção. A candidata democrata Kamala Harris e os líderes democratas gostariam de manter o papel do “livre comércio”, a hegemonia dos EUA, o uso de órgãos multilaterais que controlam e o fluxo “livre” de capital. Mas basicamente essa é a velha ordem. O presidente Biden e outros disseram que os EUA são os únicos capazes de preservar tudo isso, as instituições do domínio ocidental em seu conjunto, etc. Eles também acreditam que o desafiante republicano, Donald Trump, não faria isso. Com relação a Trump, acho que ele não está tão interessado em expandir o poder econômico dos EUA no Sul Global — nem no fluxo de capitais, nem na promoção de uma economia global ou transfronteiriça. Pense que, em seu primeiro governo, uma das ações imediatas de seu governo, em jan eiro de 2017, foi retirar-se da Parceria Transpacífica (TPP). Isso é muito diferente do que o Partido Democrata quer. A mesma coisa aconteceu com a forma diferente de lidar com a ocupação do Afeganistão durante a mudança de governo de Trump para Biden. Acho que Trump está basicamente interessado em trazer o capital de volta para os EUA, o chamado reshoring, porque ele acusa as corporações de levar empregos para fora do país. Toda essa ideia de colocar os “Estados Unidos em primeiro lugar” é seu ponto de apoio. E seus apoiadores odeiam as grandes empresas de tecnologia do Vale do Silício e de Wall Street. Embora o próprio Trump seja obviamente um grande capitalista, ele explora esses sentimentos contra o grande capital. Entretanto, sua ideia não é tanto expandir os EUA, mas priorizar o mercado doméstico.

Será que o trumpismo se posiciona como completamente alheio aos problemas globais?

Eu diria que, em geral, sim, embora obviamente preservando o poder unilateral em questões mundiais. Ele é claramente anti-imigração. Em termos militares, eu o vejo mais comprometido e interessado em ter um país poderoso em si mesmo novamente, não um país de alianças como a OTAN, pois ele não gosta disso. Em resumo, vejo uma perspectiva diferente da dos democratas. Há diferenças reais entre os dois candidatos e os dois projetos. A pergunta que faço é se nós, no Sul Global, devemos escolher uma dessas duas opções. Minha resposta é que não precisamos fazer isso, não temos interesse na ordem liberal ou na ordem “América em primeiro lugar”. Mas precisamos prestar atenção em qual das duas posições prevalece e tentar tirar proveito dessas contradições.

Olhando das Filipinas, qual é o papel do Sudeste Asiático na reconfiguração global em andamento?

Há muitas contradições. O Vietnã e as Filipinas são muito críticos em relação à China pelo mesmo motivo: a disputa de limites no Mar do Sul da China, onde a China assumiu unilateralmente uma posição. É um mar com seis países reivindicantes e a China estabeleceu unilateralmente que 90% dele lhe pertence. Pode-se entender que a razão chinesa não é expansionista, mas defensiva – porque o Sudeste Asiático está muito próximo do núcleo industrial da China (Xangai, Guangzhou, suas áreas adjacentes etc.) e a ideia é que ela precisa proteger ou impedir um ataque dos EUA à sua infraestrutura produtiva. Em um cenário de guerra, isso é fundamental para a China, e os norte-americanos têm muitos ativos militares na área. Isso é compreensível do lado chinês, o que não é c ompreensível foi seu método unilateral de dizer “isso é nosso e, por ser nosso, vamos desenvolvê-lo de tal maneira”. A China deveria ter negociado isso com os outros países. Então, talvez fosse possível avançar na desmilitarização da área. É por isso, entre outros motivos, que o Vietnã critica a China nesse ponto. O país tem uma política externa independente. Como você sabe, já lutou no passado contra os norte-americanos e os franceses e exerce neutralidade diplomática.

E quanto ao seu país?

As Filipinas são diferentes. São totalmente aliadas militarmente aos EUA com o atual presidente Ferdinand Marcos Jr. Os norte-americanos têm nove bases militares e Marcos não tem nenhum senso de nacionalismo. Ele não se importa, só se preocupa com a fortuna de sua família, seu grupo central de pessoas próximas, a dinastia, seus investimentos milionários nos EUA e em outros países ocidentais, que podem ser facilmente expropriados se ele não fizer o que Washington quer. O governo de Marcos está completamente vendido aos EUA e não tem controle sobre a política de defesa.

E quanto ao cenário global, o restante das nações do Sudeste Asiático?

O restante da ASEAN, a associação que integra todas essas nações, é diversificado, mas a maioria da população tem uma opinião melhor sobre a China do que sobre os Estados Unidos, especialmente na Tailândia, no Camboja, na Indonésia e na Malásia. A maioria prefere a China como parceira aos EUA, de acordo com relatórios recentes. Os únicos dois países que se opõem a isso são, não surpreendentemente pelo que expliquei, embora por motivos diferentes, o Vietnã e as Filipinas. Essa é a situação atual na região, que se tornou decisiva no tabuleiro de xadrez global.

Ilustração: Nelson Makamo 

Leia também: https://lucianosiqueira.blogspot.com/2022/02/guerra-suja-midiatica.html

Humor de resistência: Aroeira

 

Aroeira

Leia: https://lucianosiqueira.blogspot.com/2024/09/redes-do-neofascismo.html

Sylvio: acerto

A projeção de crescimento do nosso PIB para 3,2% nesse ano, um dos maiores do mundo, é uma grande vitória do ministro Fernando Haddad e sua equipe e mostra o acerto da política econômica do Governo.

Sylvio Belém 

Uma crônica de Urariano Mota

Morte de gestantes
Perdido eu estava até há pouco em uma selva escura. Quero dizer, eu estava até agora sem saber sobre o […]
Urariano Mota*/Vermelho 

Perdido eu estava até há pouco em uma selva escura. Quero dizer, eu estava até agora sem saber sobre o que escrever, mas me iluminou esta notícia que acabo de ler no Diário de Pernambuco:

Lula se emociona e lembra morte de esposa ao anunciar apoio para gestantes

O presidente citou a morte de sua primeira esposa ao anunciar programa para melhorar o atendimento médico a grávidas.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva se emocionou nesta quinta-feira (12/9) ao comentar a morte de sua primeira esposa e de seu filho no parto, ao anunciar programa voltado para gestantes. Em discurso, o petista disse ter certeza de que a morte foi causada ‘por relaxamento’.

‘Cheguei no hospital, encontrei minha mulher morta e meu filho morto. Eu tenho certeza absoluta que foi relaxamento, que foi falta de trato. Porque as pessoas pobres, muitas vezes, são tratadas como se fossem pessoas de segunda categoria’”

Então me veio como uma pancada uma lembrança de trauma que me acompanha desde a mais frágil infância, quando eu estava com 8 anos de idade e perdi a minha mãe “que morreu de parto”, como se dizia no Recife em 1958. E só recentemente pude notar que existe uma linha que unifica os meus romances, quando escrevo “Soledad no Recife” e “O filho renegado de Deus”. Nesses romances, uma brava é morta com o feto no ventre. Assim foi com Soledad Barrett em 1973, assim foi com Maria, eterna no Recife em 1958. Assim tem sido, até hoje, com as perdas de vidas de mulheres do povo. Ainda agora mulheres continuam a ter a destruição de suas vidas por desprezo, por desprezo, por desprezo, por desprezo, ao infinito dos infernos.

Com o Presidente Lula nesta quinta-feira temos:

“O chefe do Executivo participou hoje, em Belford Roxo, Rio de Janeiro, do lançamento da Rede Alyne, um programa que visa melhorar o cuidado com a saúde das grávidas. Segundo o governo, a primeira fase de implementação terá investimento de R$ 4,85 bilhões, beneficiando 30 milhões de mulheres”.

Ah, Maria, se pudesses ter atravessado o tempo da infâmia em Água Fria e s ressuscitado em 12 de setembro de 2024! Mas não, estavas em dezembro de 1958, e eu apenas pude escrever em “O filho renegado de Deus” esta terrível recuperação:

“Ele estava na cama da mãe, onde ficara a dormir desde a madrugada, quando ela saiu de casa. Esse era um plano de corte em sua memória. Ele não queria lembrar, e por isso não lembraria os momentos que antecederam a saída de Maria para a maternidade. Havia cantos e pessoas na salinha, no quartinho, que estavam escondidos em um desvão impossível, do que lhe ficara da noite anterior. No quartinho entravam e saíam mulheres, isso ele mal lembrava. Mal lembrava ainda o choro, o pedido da sua mãe, que, apesar de altiva, determinada, naquela hora suplicava entre gemidos:

– Eu quero morrer com o meu filho.

Isso ele não queria nem podia lembrar. Talvez porque mesmo sem ver no quarto aquele adorado rosto a pedir, a face atravessava a parede, e pôde ver com os olhos da imaginação a face bela da mãe toda úmida, a balançar o maravilhoso e gordo rosto a falar:

– Não, não, eu não quero ir para a maternidade. Eu sei que vou morrer. Eu quero morrer aqui com o meu filho.

Isso ele ouviu, com o começo da percepção a que ficaria reduzido, ver, sentir, falar com os ouvidos. E por assim vê-la, ah, maldição de palavras que não expressam, via com timidez, que é o outro nome de impotência, a sua mãe suada, muito suada, alagada em suor no forno daquele quartinho, a chorar em angústia, na sua melhor camisola, pregada ao ventre inchado. Cercada de mulheres, de vizinhas, que mais pareciam urubus, com a solidariedade dos abutres que esperam a agonia, ela não parava de repetir:

– Eu quero morrer com meu filho.                  

As respostas a esse pedido eram um misto de fala bondosa e de arbitrariedade, daquele abuso covarde que os saudáveis têm para com os agonizantes:

– Maria, você vai.

Falavam, mas tudo, é certo, mascarado em um tom meigo, de blandícia, beatífico como as beatas de igreja costumam falar, quando se referem às virtudes e coisas santas:

– Na maternidade, você fica boazinha.

Ao que a mãe, crendo-se apenas com aquelas aves de agouro a rondá-la, respondia sem consolo, de modo mais franco:

– Eu sei que vou morrer. Eu quero ficar com meu filho.

Isso ele ouviu, escutou e viu, mas lhe chegava feito uma língua arcaica, uma fala de escravos na cidade soterrada de Pompeia. Porque ouvia, escutava e duro era alcançar o entendimento. Lembra, lembraria as palavras que se repetiam em um mantra, de invocação ou anúncio da desgraça que a razão confortável não podia compreender: “eu quero morrer com o meu filho, eu quero morrer com o meu filho”, aos soluços, do outro lado da parede. Até que chegou o pai, o homem. Com que ironia de sentido ele recordaria o termo, o homem. Diria melhor, com o significado dos anos de luta contra a ditadura, no medo, doze anos adiante: “chegou a repressão, chegou a polícia, aí vem o torturador”. Pois quando chegou o homem, aquele que é temido poder de destruição, todas as vizinhas se calaram, inclusive os abutres, que faziam o papel de carpideiras antes do corpo v irar defunto. E quando o homem chegou, entrou no quartinho abrupto, sem pedir licença, pois estava na sua casa, naquilo que chamava a sua casa. Ele entrou, no próprio desejo, vestido na pessoa do Anjo Salvador, mas para todos entrou com o império de Lúcifer, de um Lúcifer que jamais tem dúvida sobre os infelizes que tem sob domínio: são seus, estão seus, ele usa, abusa e pune. Aos olhos aterrorizados do menino parecia que ali chegava a definição do destino. E com os seus olhos de ouvido viu:

– Ela vai para a maternidade. Agora.        

Maria aumentou mais o seu pranto. Se antes estava em desvantagem, nesta hora, que não podia se levantar e partir para cima, ainda mais miserável se encontrava. E já sem forças, ainda assim murmurava:

– Eu quero morrer com meu filho.

Filadelfo não a ouviu nem a considerou. Do que reclamava a mulher? Jimeralto era só um menino, mas nem por isso conviveria bem com a lembrança de que não fosse mais que um menino subjugado ante forças maiores, naquele momento. De não obedecer àquele raio de segundo único em que poderia afrontar o despotismo do pai:

– Que autoridade você tem de matar minha mãe? Venha para mim.        

Mas Jimeralto era só um menino. De que adiantava lamentar o herói que não fora, o herói impossível que poderia resolver a dor de Maria? Os seus grãos de valor, assemelhados a grãos de ouro, se revelaram grãos de areia. Então veio o instante de que não se lembrava, o instante que nunca desejou se lembrar, que tão oculto e marcado não lembrava, uma coisa que houve mas não aconteceu, porque não podia nunca acontecer: Maria passou pela sala, onde ele se encontrava, levada em uma cadeira e muitos braços. Então ele não pôde ver, não pôde ouvir, porque ao passar por ele Maria não mais gemeu, calou-se, quis-lhe sorrir. Mas tão agoniada ia que apenas lhe jogou um último olhar, um olhar em que a esclerótica dos olhos veio menor que a pupila. Era um olhar de Maria porque estava em seu rosto, mas ali já não estava M aria. Passou outra. Passou outra mulher, à procura do filho. E grande e feroz foi a dor do menino.”

Bravo, Presidente Lula! Gerações de mulheres humilhadas te saúdam.

Leia também: https://lucianosiqueira.blogspot.com/2024/06/violencia-sexista.html

Especulação rentista

Bancos ‘bombam’ expectativa por alta de juros e renovam suspeitas sobre Boletim Focus
Desde o início do governo Lula, em nenhum momento a previsão subiu de forma tão abrupta de uma semana para outra
Vinicius Konchinski/Brasil de Fato/ICL 

A previsão dos bancos para a taxa básica de juros da economia nacional, a chamada Selic, registrada nesta semana no Boletim Focus, renovou suspeitas de que a pesquisa realizada pelo do Banco Central (BC) está sendo alvo de manipulação de agentes financeiros. A expectativa para a taxa ao final de 2024, que há uma semana era de 10,5% ao ano, passou para 11,25% poucos dias depois.

O BC divulga o Boletim Focus semanalmente, sempre baseado em previsões de bancos que se cadastraram em seu sistema enviam para a instituição. Desde o início do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), em 2023, em nenhum momento a previsão deles subiu de forma tão abrupta de uma semana para outra como agora.

A expectativa dos bancos sobre a Selic é usada pelo Comitê de Política Monetária (Copom) do BC para definir a própria taxa. No próximo dia 17, o Copom volta a reunir-se para discutir o patamar da taxa básica de juros — atualmente em 10,5% ao ano. Com a previsão dos bancos medidas pelo Boletim Focus apontando para alta dos juros, cresce a pressão para que o BC eleve a Selic visando, no jargão econômico, “ancorar expectativas”.

Baseado no Boletim Focus, o Copom decidiu manter a taxa Selic em 10,5% ao ano em junho, quando economistas e governo cobravam uma redução. Naquela época, o programa ICL Notícias realizou um estudo sobre o Focus indicando a manipulação das previsões sobre inflação justamente para coibir um eventual corte da Selic.

Segundo Eduardo Moreira, fundador do ICL, alguns bancos teriam elevado exageradamente suas previsões sobre inflação para influenciar na expectativa média, que acaba sendo registrada no Boletim Focus. Com uma previsão média de inflação crescente, foi reduzido o espaço para corte da Selic.

O estudo divulgado no programa levou o Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União (MP-TCU) a pedir que o tribunal apure a influência de bancos na Selic. O BC foi procurado algumas vezes pelo Brasil de Fato para comentar o caso. Nunca se pronunciou.

Nova manipulação do Boletim Focus?

Mauricio Weiss, economista e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), disse que a forte elevação da previsão da Selic para 2024 pode, sim, ser resultado de atos de agentes de mercado interessados para “manipular” as expectativas do Boletim Focus e ganhar com isso.

“Eu acho que pode ter, sim, uma especulação, por alguns bancos de investimento. Empresas que atuam no mercado de capitais com a Selic mais alta e com a variação da taxa de juros em si. Então, eventualmente pode estar sendo manipulado.”

Weiss não vê dados que justifiquem uma mudança tão brusca nas expectativas para a Selic deste ano, que termina em menos de quatro meses. A própria previsão do mercado para a inflação em 2024 mudou pouco nas últimas quatro semanas, passando de 4,20% para 4,30% — percentual ainda dentro da meta estabelecida para o índice.

Ele lembrou que a seca no Brasil até pode criar uma pressão inflacionária no país daqui até o final do ano. Ainda assim, a aposta numa alta de 0,75 ponto da Selic até o final do ano parece ser algo exagerado para Weiss.

Weslley Cantelmo, economista e presidente do Instituto Economias e Planejamento, também vê risco de manipulação do Boletim Focus por agentes de mercado. Por isso, ele é crítico quanto ao uso do boletim em discussões sobre os rumos da economia.

“O Focus é basicamente uma relação de alguns gestores do mercado financeiro com o monopólio da opinião dos dados que alimentam os modelos do BC”, reclamou. “A expectativa de outros setores da economia, como a indústria e o comércio, são negligenciadas. Se fossem considerados, poderiam mostrar uma expectativa diferente.”

Para Cantelmo, o mercado financeiro tem interesse na alta da taxa Selic. É ela quem garante que investidores terão alto retorno só aplicando seu dinheiro em títulos.

“Esse setor está muito confortável com a taxa Selic em alta e tem no Boletim Focus uma forma de pressão para garantir isso”, resumiu. 

Controvérsias

O economista Miguel de Oliveira, diretor-executivo da Associação Nacional dos Executivos de Finanças, Administração e Contabilidade (Anefac), não vê a mudança de expectativas sobre a Selic como algo orquestrado.

Ele, aliás, vê no crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) acima do esperado para o segundo trimestre como uma justificativa para uma elevação da taxa. “A economia está crescendo muito, mais do que imaginado. Se a demanda [por produtos] está aumentando e a oferta não é suficiente, vai pressionar os preços. Para segurar os preços, o BC tem que subir os juros”, defendeu ele. “É basicamente este cenário.”

Pedro Faria, também economista, não concorda com essa visão de que o crescimento do PIB precisa levar a um aumento de juros. Ele admite, porém, que alguns economistas tendem a fazer essa relação. Por isso, eles elevaram — sem má intenção — sua expectativa para a Selic.

Erros seguidos

Faria, aliás, já reclamou de previsões de bancos por excesso de pessimismo com a economia nacional e com as ações do governo Lula. Segundo ele, existe uma predisposição ideológica contra governos de esquerda por parte dos economistas ligados a bancos.

“O mercado depende muito da confiança no governo [para fazer suas previsões] e subestima as estatísticas”, criticou Faria. “Eles acham que um governo de esquerda vai errar em suas decisões e isso vai impactar na economia. Não é bem assim que as coisas funcionam.”

O governo estima que a economia brasileira cresça entre 2,7% e 2,8% neste ano. Economistas ligados a bancos preveem que a economia brasileira crescerá 2,68%, segundo o Boletim Focus.

[Ilustração: Cícero]

Leia também: https://lucianosiqueira.blogspot.com/2023/03/juros-altos-para-quem.html