28 maio 2024

Urariano Mota opina

O sucesso de Machado de Assis em inglês e José Carlos Ruy

“Sem qualquer patriotada, Machado de Assis no topo da Amazon é uma notícia que faz um bem imenso à literatura”
Urariano Mota*/Vermelho


 

A tradução para o inglês de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, por Flora Thomson-DeVeaux, e a divulgação do livro pela influencer Courtney Henning Novak puseram Machado de Assis como o autor mais vendido neste mês na Amazon. Sem qualquer patriotada, esta é uma notícia que faz um bem imenso à literatura e a todos escritores brasileiros.

O vídeo de Courtney Henning Novak, que impulsionou as vendas, pode ser visto aqui.

Diz ela: “O que eu vou fazer pelo resto da minha vida depois deste livro? Tenho um monte de coisa para ler ainda, mas nada vai se comparar a isso daqui. Eu agora quero aprender português, preciso aprender”.

Observem como aquela inesquecível dedicatória de “Memórias Póstumas de Brás Cubas” é hoje vista como:

“TO THE WORM
THAT
FIRST GNAWED AT THE COLD FLESH
OF MY CADAVER
I DEDICATE
AS A FOND REMEBRANCE”

No original:

“AO VERME
QUE
PRIMEIRO ROEU AS FRIAS CARNES
DO MEU CADÁVER
DEDICO
COMO SAUDOSA LEMBRANÇA
ESTAS
MEMÓRIAS PÓSTUMAS”

E na abertura do primeiro capítulo da tradução do romance:

“THE DEMISE OF THE AUTHOR

I debated for a time as to whether I ought to open these memoirs at the beginning or at the end-that is, if I would start out with my birth or with my death. Granting that the common practice may be to begin with one’s birth, two considerations led me to adopt a different method: the first is that I am not exactly an author recently deceased, but a deceased man recently an author, for whom the tomb was another cradle; the second is that this would make the writing wittier and more novel. Moses, who also recounted his own death, did not put it at the commencement but at the finish: a radical difference between this book and the Pentateuch”.

Traduzido deste original, ou melhor, deste mais que original:

“ÓBITO DO AUTOR

Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar diferente método: a primeira é que eu não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor, para quem a campa foi outro berço; a segunda é que o escrito ficaria assim mais galante e mais novo. Moisés, que também contou a sua morte, não a pôs no introito, mas no cabo: diferença radical entre este livro e o Pentateuco”.

Mas a excelência do maior escritor brasileiro já se encontra refletida e aprofundada no “Dicionário Machado de Assis”, que reúne verbetes claros e fundamentais, uma apresentação de Machado e a descrição dos 1065 personagens dos contos e romances do gênio da nossa literatura. O autor do Dicionário, o pensador José Carlos Ruy, nas linhas dedicadas a “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, expõe em 90 entradas descrições sintéticas dos personagens e análises críticas do próprio Ruy ao romance que agora é sucesso em língua inglesa. Para deixar uma ideia da qualidade das reflexões de José Carlos Ruy, destaco entre as 90 referências ao romance:

“Machado de Assis foi um realista dialético e uma excelente afirmação desta ideia está no romance “Memórias póstumas de Brás Cubas” (1881), cujo narrador já não se encontra entre os vivos: o falecido Brás Cubas…

As referências agudas à escravidão, condenando este regime cruel, são inúmeras na obra machadiana. A certa altura, no romance ‘Memórias póstumas de Brás Cubas’ (1881), descreve uma conversa entre dois personagens, numa recepção festiva, sobre a breve chegada de um navio negreiro vindo de Angola, com um carregamento de escravos. Refletindo os hábitos da época, deixa claro que era ‘normal’ em rodas sociais as pessoas conversarem sobre o sequestro e o tráfico de seres humanos, e os lucros alcançados com esse comércio nefando. Um dos personagens dava ao outro notícia da breve chegada de um carregamento de negros novos, e repetia o que diziam ‘cartas que recebera de Luanda’; elas garantiam que ‘podíamos contar, só nessa viagem, uns cento e vinte negros, pelo menos”

E para os personagens, por mais rápido e breve que eu procure ser neste artigo, não posso deixar de lado sob qualquer hipótese:

“Brás Cubas – Morreu numa sexta-feira, em sua casa, no Catumbi. Tinha 64 anos de idade, era solteiro, e dono de uma fortuna em torno de 300 contos. Morreu de pneumonia. Foi estudante superficial na Universidade de Coimbra, mas se tornou bacharel. Em Coimbra teve fama de folião; foi um estudante estroina, superficial, tumultuário e petulante, dado às aventuras, fazendo romantismo prático e liberalismo teórico…

Marcela – Foi namorada de Brás Cubas, na juventude. Era bonita, filha de um hortelão das Astúrias. Era boa moça, lépida, sem escrúpulos, amiga de dinheiro e de rapazes. “Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis”, escreve o narrador. Ela morava no Rossio Grande. Brás Cubas a encontrou muitos anos depois, envelhecida, com o rosto bexiguento. Voltou a vê-la muito depois, pobre e doente, num hospital, no dia em que morreu…

Prudêncio – um moleque da casa, que o pai de Brás Cubas libertou ao morrer. Um dia, andando pela cidade, Brás Cubas o encontrou chicoteando outro negro, que era seu escavo”.

E esta pequena obra-prima de síntese:

“Viegas – Parente de Virgília; tem 70 anos de idade, reumatismo, asma e uma lesão no coração. Virgília diz que quando ele parecia olhar fixo para alguém, estava só contando dinheiro: era avaro”.

E mais não devo cometer spoiler da excelência do Dicionário Machado de Assis, de José Carlos Ruy. O livro se encontra todo revisado, diagramado. com pesquisa de imagens raras de Machado de Assis por André Cintra. Pronto e acabado há mais de três anos. Mas continua inédito. As idas e vindas para a sua publicação até parecem gerar um novo romance, que o grande José Carlos Ruy não quis escrever.

*Jornalista, escritor

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