As placas tectônicas do Sete de Setembro
Todas as conversas que ouvi na Avenida Paulista eram sobre Pablo Marçal. “Ele é foda”, disse um homem. “Deus queira que ele não seja um Doria da vida”, respondeu seu amigo
Jonas Medeiros/revista Piauí
Tudo indicava que, neste ano, o Sete de Setembro de 2024 ocorreria sob uma tempestade perfeita, como observou a cientista política Camila Rocha. A derrubada do X e a suspensão temporária dos perfis do Pablo Marçal (PRTB-SP) atiçaram o sentimento da extrema direita de que é perseguida pelo “sistema”. Somaram-se a isso as revelações, feitas pela Folha de S.Paulo, de que o ministro Alexandre de Moraes trocou informações com seus assessores fora do devido processo. As reportagens, agora já um pouco esquecidas, serviram para colocá-lo na defensiva.
No ato de 25 de fevereiro, o campo reacionário estava acuado. Seu caráter insurgente e subversivo estava não apenas esvaziado como, pela primeira vez desde 2018, parecia ter se tornado uma armadilha imobilizadora e até mesmo perigosa. Passaram-se sete meses sem manifestações expressivas do bolsonarismo. Em setembro, parecia que o hiato estava para acabar. A conjuntura política vinha reanimando o radicalismo adormecido da extrema direita.
O ato do último sábado (7) na Avenida Paulista, no entanto, foi consideravelmente menor do que o de 25 de fevereiro, caindo de cerca de 185 mil manifestantes para 45 mil, segundo dados do Monitor do Debate Político no Meio Digital, projeto vinculado à USP. Diminuiu não apenas a multidão, mas também sua intensidade emocional. O foco maior de engajamento não estava no carro de som central, de onde saíram discursos pouco inspiradores. O que aconteceu?
Todo protesto é uma construção com agendas e projetos múltiplos – e nem sempre há convergência entre as intenções de quem organiza e as motivações de quem comparece. O ato de sábado foi um comício eleitoral sui generis, como, aliás, já havia sido o Sete de Setembro de dois anos atrás, em plena campanha presidencial. Naquele Bicentenário da Independência havia uma disputa entre quem queria fazer campanha, quem pedia a volta da monarquia e quem defendia a intervenção dos militares para subverter o resultado da eleição que nem havia acontecido. No Sete de Setembro de 2024, pude identificar duas agendas oficiais correndo paralelamente.
A primeira foi aquela programada, apresentada e defendida no carro de som central, com protagonismo de Silas Malafaia e Jair Bolsonaro. O pastor não quis ou não conseguiu manter o monopólio da palavra na manifestação. Além de seu carro de som, havia outros dois, menores: um na altura do Conjunto Nacional, com os palavras de ordem “Fora Moraes” e “Reforma do Judiciário Já”; outro na altura do Shopping Cidade São Paulo, com temática pró-agronegócio (“O Governo Federal está assassinando o agro, com alta taxa de juros para o custeio agrícola!!”, dizia uma faixa). Em nenhum dos dois casos consegui identificar quem eram os organizadores.
A palavra de ordem no carro principal foi “Fora Moraes”, uma senha para construir a campanha pró-impeachment do ministro. Desde que a extrema direita voltou a organizar protestos, na virada de 2023 para 2024, vemos uma estratégia recorrente: ocupar massivamente as ruas para pressionar o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), e demais senadores a votarem pedidos de impeachment contra ministros do Supremo. Embora o ato de 25 de fevereiro tenha sido grande, a palavra de ordem estava muito mais centrada na anistia – tanto de Bolsonaro, tornado inelegível, quanto dos presos do 8 de janeiro – do que no “Fora Moraes”. Isso era efeito da correlação de forças, naquele momento muito mais favorável a Moraes.
Com os acontecimentos dos últimos meses, o campo reacionário sinalizava uma virada na maré. Os discursos de Malafaia e Bolsonaro, no entanto, foram frustrantes. O pastor havia prometido, dois dias antes, que “vai ser muito quente o que eu vou falar lá”. Não cumpriu a promessa. Ele e o ex-presidente repetiram, com outras palavras, o que já tinham dito nos atos de 25 de fevereiro, em São Paulo, e 21 de abril, no Rio de Janeiro. As pessoas ao meu redor, na altura da Rua Peixoto Gomide, aparentavam apatia diante dos discursos demasiadamente longos e que tinham pouco a oferecer de novo. Não basta o orador demonstrar emoção, como nos gritos de Malafaia – é preciso produzir adesão emocional. Uma cena sintomática: no momento em que o pastor profetizou que “a inelegibilidade vai cair”, uma senhora passando do meu lado comentou: “Ah, esquece isso daí.” Se essa manifestante não acredita que Bolsonaro possa voltar como líder eleitoral, isso significa que ela está aberta a novas lideranças? Sob quais condições?
Os organizadores do protesto sabem que, neste momento, não são capazes de criar um movimento de massas que ocupe as ruas e chacoalhe o Senado. Alguns oradores no carro de som central se deram por satisfeitos recomendando que, daqui a dois anos, todos lembrem “quais senadores defenderam a democracia” e quais precisam ser substituídos pelo voto. O curto prazo do “Amanhã vai ser maior” foi substituído pelo médio prazo: aumentar a presença da extrema direita no Senado em 2026, emparedar Pacheco e STF, deslegitimar os processos judiciais conduzidos por Moraes (em linha similar ao que ocorreu com Sérgio Moro e a Lava Jato), reverter a inelegibilidade de Bolsonaro e estender a anistia aos presos do 8 de Janeiro.
A segunda agenda oficial, no Sete de Setembro, era puramente eleitoral. Adesivos, santinhos, cartazes, camisetas e até um carro exibiam nomes, fotos e números de candidatos a vereador. E não apenas da capital: a Avenida Paulista mobilizou também candidaturas de cidades do interior do estado de São Paulo e de outros estados (como Santa Catarina, Rio de Janeiro e Minas Gerais). Contabilizei os partidos de todos os candidatos com que me deparei naquela tarde. De longe, o que mais vi foram candidatos do PL (11), seguidos por União Brasil (4), Podemos (3), Novo (2), e Avante, DC, PRD e PP (1 cada).
Não me recordo de ver tantas camisetas do Novo em um ato bolsonarista. Mas não chega a ser surpreendente a incorporação plena do partido ao campo reacionário, tendo em vista dois episódios. O primeiro, em meados de outubro de 2022, quando João Amoêdo declarou apoio a Lula no segundo turno das eleições, mas logo em seguida se viu forçado a se desfiliar do partido, hostilizado por correligionários que tinham mergulhado de cabeça no bolsonarismo. O segundo episódio foi um ato organizado por atores libertarianos e anarcocapitalistas em 25 de outubro daquele mesmo ano, quando ficou evidente o grau de convergência do discurso do deputado Marcel Van Hattem (Novo-RS) com o projeto bolsonarista de intervir no Judiciário. O impeachment de ministros do Supremo já estava na ordem do dia.
A grande ausência que se fez sentir no sábado, na Avenida Paulista, foi o prefeito e candidato à reeleição Ricardo Nunes (MDB). Ele estava lá, de pé ao lado de Bolsonaro, mas não se ouvia falar dele, ausente também dos santinhos distribuídos na rua. O único momento em que vi algum material com seu nome e número foi desconcertante. Fui parado na virada da Alameda Santos com a Rua Pamplona por dois policiais que queriam revistar minha mochila. Nesse momento, percebi que alguém havia colado nela, sem meu consentimento, um adesivo com a cara de Nunes. (Indiferente ao meu constrangimento de estar fazendo propaganda inadvertidamente, o PM pareceu satisfeito com a minha aparente identidade política.)
As agendas oficiais – tanto a do chão do ato quanto a do carro de som central – tiveram caráter abertamente institucionalista. Seu norte eram as eleições municipais de 2024 e as eleições para o Senado em 2026. Esgotado o intervencionismo militar, reprimido o golpismo no 8 de janeiro, a extrema direita ficou órfã de estratégia. Tenho insistido desde então que o campo reacionário poderia canalizar suas energias para a disputa institucional. Isso, porém, requer o fortalecimento de novas lideranças políticas, até porque Bolsonaro está inelegível. Se for mantido o caráter antissistêmico – isto é, transgressivo e subversivo – da extrema direita, composições eleitorais de ocasião, como a alian&ccedi l;a Nunes-Bolsonaro, não terão êxito. A própria base bolsonarista deseja o desvio às normas da política tradicional.
Apaisagem simbólica dos atos da extrema direita tem elementos recorrentes que refletem suas alianças históricas, inter-religiosas e transnacionais: a bandeira do Brasil Império (os monarquistas fazem questão de reivindicar o Sete de Setembro), a bandeira de Israel e o Leão de Judá (parte da apropriação evangélica de símbolos judaicos), a figura de Trump e, mais recentemente, a de Javier Milei. A grande novidade desta vez foram bonés azuis com a letra “M”, adesivos pequenos com o número 28 e adesivos maiores com a frase “Faz o M”.
Os símbolos da candidatura de Pablo Marçal (PRTB) estavam por todo lado. Exibidos por orgulho nas cabeças e camisetas, ajudavam a alimentar a identidade coletiva reacionária. A simbologia também fortalece a sensação de que uma onda seria capaz de eleger Marçal como prefeito de São Paulo, contra tudo e contra todos. Se eleito, ele não apenas atropelaria a costura política que o próprio Bolsonaro fez em apoio a Nunes, como radicalizaria e aprofundaria os impulsos antissistêmicos da extrema direita brasileira. Marçal, um outsider dentre outsiders. Será que o ímpeto reacionário é como Saturno e devora seus próprios filhos?
O principal tema das poucas conversas que ouvi no ato era justamente Marçal. Como no caso de duas senhoras conversando – uma delas, sentada no chão, disse “Eu amo o Marçal”, e a outra, de pé, respondeu “Eu também”. Um vendedor, atento à vibe, começa a gritar: “É a água do Pablo Marçal!” Marçal foi um sucesso na produção de símbolos, likes, consumo e afetos.
Ninguém sabia se Marçal ia mesmo comparecer ao ato. Na véspera, ele estava passeando por El Salvador, numa tentativa fracassada de se encontrar com Nayib Bukele, extremista que preside o país. O elemento surpresa criou expectativa crescente entre os manifestantes. Quando Marçal finalmente chegou ao ato, o carro de som já tinha encerrado suas atividades, conforme alegou Malafaia. Nas redes sociais, Marçal interpretou positivamente o fato de não ter sido convidado para o carro de som principal. “Ó, nós tamo aqui, não querem deixar eu subir no caminhão. A gente fica com o povo, a gente fica com o povo [manda beijo para a câmera].”
Presenciei o frisson que Marçal produziu no chão do ato. Em busca de um lugar melhor para ouvir os discursos do carro de som, me acomodei num ponto da Rua Peixoto Gomide em que o som era audível e a muvuca não era grande, em uma calçada espremida por grades que impediam as pessoas de ocupar o asfalto. Isso criou uma espécie de corredor de segurança, quase emulando uma dinâmica de tapete vermelho do Oscar. Antes que figuras como Nikolas Ferreira, Zé Trovão, Alexandre Ramagem e Sargento Fahur passassem pelo corredor, onde foram tietados, o grande acontecimento que eletrizou as pessoas foi um corre-corre promovido por Marçal.
Eu mesmo não consegui vê-lo. Sua presença era fantasmática: primeiro correndo ladeira abaixo (câmeras, clicks, vídeos e sorrisos preenchendo o ar); depois, subindo a rua novamente, tão rápido quanto havia descido. As pessoas por alguns instantes ficaram alheias às disputas de poder em torno do carro de som. Aquele era seu candidato à prefeitura, com um magnetismo digno de celebridade. Tentei primeiro descer a rua, depois subir para ver se conseguia registrar alguma interação entre Marçal e os manifestantes. Em vão. As pessoas ao meu redor ficaram um bom tempo na expectativa de que ele fosse retornar. Uma senhora, carregando uma carteira de trabalho enorme, me perguntou: “Será que o Marçal vai passar de novo?”. Em seguida arrematou: “Esse cara tem coragem!” O ato foi se desmobilizando, e ficou claro que não haveria reprise.
Mas a pesquisa de campo sempre surpreende. Já de saída, entreouvi uma conversa entre dois homens. “Você acha que o Marçal vai ganhar?”, perguntou um deles. O outro respondeu: “Ah, eu vou votar nele. Ele é foda”. O primeiro, então, comentou: “Deus queira que ele não seja um Doria da vida.” O entusiasmo com a candidatura de Marçal era nítido, mas pode-se perceber que, entre os eleitores bolsonaristas, a confiança não é irrestrita. Ela precisa ser constantemente construída, negociada, avaliada e comprovada. O campo progressista pode insistir o quanto quiser – não se trata de um “gado” que toma decisões em manada e sem reflexão.
Por debaixo das agendas oficiais, a agenda subterrânea de Marçal foi a grande vitoriosa do Sete de Setembro. Ele valorizou sua marca no campo reacionário a um baixíssimo custo, sabendo que sairia no lucro de qualquer jeito: se o convidassem para o carro de som, seria ovacionado; como não o fizeram, ele pôde posar de vítima de poderosos. Em comparação com o mar de santinhos largados na rua, foi uma forma muito mais eficaz de parasitar o protesto.
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