12 novembro 2024

Cintura e Rota e o Brasil

Um “sim” à Rota da Seda e sinergias possíveis
Às vésperas do G20 e da vinda do presidente da China ao Brasil, surge a discussão se o governo Lula aceitará ou não incluir o Brasil como um dos países da Iniciativa Cinturão e Rota (ICR)
Evandro Menezes de Carvalho/Revista Forum  

Às vésperas do G20 e da vinda do presidente da China, Xi Jinping, ao Brasil, ganhou intensidade a discussão sobre se o governo Lula aceitará ou não incluir o Brasil como um dos países participantes da Iniciativa Cinturão e Rota (ICR), também referida como Nova Rota da Seda – carro-chefe da política externa chinesa lançada em 2013 que tem no investimento em infraestrutura dos atuais 150 países participantes a sua coluna vertebral.

Em entrevistas recentes, tanto a ex-presidenta Dilma Rousseff quanto o ex-Ministro de Relações Exteriores, Celso Amorim – dois dos maiores quadros políticos do governo Lula para as relações internacionais – expressaram a opinião de que o Brasil deve aproveitar as oportunidades que a ICR pode oferecer para o PAC e outros programas de reindustrializa&cc edil;ão. Celso Amorim fala em “sinergias”.

As declarações são receptivas aos investimentos chineses e ao incremento das parcerias com a China. O Brasil não repudia a ICR, mas tampouco sinaliza que irá assinar, por exemplo, um Memorando de Entendimento declarando ser participante da ICR.

Caberá ao governo brasileiro e à burocracia do MRE, qualificada para executar a política governamental para as relações internacionais, encontrar e negociar aquela frase ou expressão – a “terceira coisa”, diria Philip Allott – que nenhuma das partes envolvidas realmente quer, mas acabam aceitando. O objetivo, aqui, é fazer com que os chineses não “percam a face”. Diplomatas devem dominar a chamada “ambiguidade construtiva”. Entre o sim e o não está, muitas vezes, o lugar que preserva a coerência de uma ação posterior aparentemente contraditória com uma edição anterior.

Desde que foi lançada, a ICR encontrou resistências no Brasil. E é notória a enfática oposição dos EUA a este projeto chinês. Há quem defenda que o melhor lugar para se estar diante das circunstâncias internacionais atuais onde uma guerra mundial já está em curso na sua fase inicial, é em cima do muro. Getúlio Vargas fez isto com muita maestria. E ele não era tucano, vale a ressalva. E nem poderia ser, claro.

Depois ele desceu do muro ao obter a indústria siderúrgica nacional. Porque uma coisa é estar em cima do muro de maneira construtiva e com uma estratégia em mente; outra é estar em cima do muro na esperança apenas de se esquivar de balas cruzadas porque os lados em conflito (no caso em questão, China e EUA) o perceberiam como “neutro”. É hora de discutir o que é estar “em cima do muro”. Entre Vargas e o estilo tucano pode haver outros equilíbrios e estratégias de ação. Qual é a do governo do Lula? Uma “terceira coisa”? A ver.

Os chineses são bons na arte dos implícitos. Dominam esta arte como ninguém. Leem o que ninguém vê. É por este motivo que sou da opinião que se pode fazer a ginástica frasal que quiser; mas, no plano do significado, o Brasil está pronunciando um sonoro “não” para a ICR. Quem afirma o contrário me faz lembrar aquela canção que certo dia cantou um Ministro do Supremo: “vou negando as aparências, disfarçando as evidências”. E talvez a própria China, paciente e com pós-doutorado em resiliência, cante junto com o Brasil. “É o que tem para hoje”, deverá pensar a China. E segue o jogo.

Não há absolutamente nada de surpreendente em não querer participar da ICR. Desde Dilma 2, Temer, Bolsonaro e, agora, Lula, o Brasil manteve uma distância regulamentar em relação a este assunto. Nos três Fóruns Cinturão e Rota para Cooperação Internacional que ocorreram em 2017, 2019 e 2023, em Beijing, o Brasil nunca se fez presente com seu Chefe de Estado. Argentina e Chile, sim. E com presidentes de governos de direita e de esquerda: Michelle Bachelet, Sebastian Piñera, Gabriel Boric, Mauricio Macri e Alberto Fernandez.

A China tem sido a única grande economia neste século XXI a propor e executar uma política externa que promove um novo tipo de integração econômica. A ICR não é baseada em um tratado multilateral que o Brasil deveria aderir ou não. A participação de um país na ICR é negociada com a China de acordo com as prioridades e características do país participante. Em 10 anos de existência, já foram investidos mais de 1 trilhão de dólares em projetos de infraestrutura no âmbito da ICR. 

A ICR é um projeto com amplo escopo e que pode contemplar inúmeros itens da agenda bilateral que foram elencados na Declaração Conjunta entre o Brasil e a China sobre o Aprofundamento da Parceria Estratégica Global, assinada em 14 de abril de 2023[1], por ocasião da visita de Lula à China. Basta o leitor ou a leitora ler para perceber que tem jogo a ser jogado nesta relação bilateral. Por ser um tema central da política externa do nosso maior parceiro comercial desde 2009 e que nos dá um superávit de 50 bilhões de dólares, o Brasil poderia substituir o seu “não” vacilante por um “sim” sincero e seguro, sem “melindrar alguém cujo apoio é importante”, como diria uma trist e figura, que está situado na América do Norte.

Vamos aos exemplos.

O Brasil poderia, ao menos, negociar a sua participação na Rota da Seda da Saúde. E por razões muito justificadas. A parceria da China durante a pandemia foi essencial para o enfrentamento da Covid-19 no Brasil. Cooperações já foram estabelecidas com a Fiocruz e o Instituto Butantã. Diversos governadores dos estados da federação tiveram apoio da China no período mais crítico da pandemia. Há uma relação de confiança e parceria bem estabelecida neste setor da saúde. Indo além, poderíamos negociar a instalação de indústria de equipamentos médicos, de parcerias no campo da genômica e – por que, não? – um centro de formação em med icina tradicional chinesa no Brasil. Estas iniciativas poderiam ser localizadas no Nordeste ou Norte do Brasil. Propus isto ao ser procurado por especialistas da área de saúde e por integrantes do Ministério da Saúde e do Ministério de Ciência e Tecnologia. Gostaram. Tentaram avançar esta proposta dentro do governo. 

No ano passado, por ocasião de uma conferência na Universidade de Ciência e Tecnologia de Macau, propus uma Rota da Seda da Língua Portuguesa para engajar o Forum Macau em uma agenda de promoção do idioma português, do turismo e da cultura da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) junto aos 150 países participantes da ICR. Esta Rota da Seda da Língua Portuguesa poderia impulsionar os projetos de cooperação entre Brasil e China nos países de língua portuguesa no continente africano. Ademais, o Brasil poderia apresentar como parte fundamental da agenda desta Rota a defesa do idioma português como sétimo idioma oficial da Organização das Nações Unidas. A China aceitaria? A condição brasileira estaria posta à mesa.

A ICR é mais do que investimento em portos, aeroportos, rodovias, ferrovias, infraestrutura digital etc. É óbvio que a buscada sinergia entre os dois países deve se concentrar nestes setores. Mas vale a pena lembrar que a ICR é também uma proposta de um intercâmbio intenso de ciência e cultura no âmbito do eixo voltado para o intercâmbio de pessoas – dimensões essenciais em um momento em que o Ocidente flerta abertamente com o discurso anticiência, com o obscurantismo e com o extremismo político.

No 3º Fórum Cinturão e Rota de Cooperação Internacional o presidente Xi Jinping anunciou a Aliança Internacional de Turismo das Cidades da Rota da Seda que se somará à Liga Internacional de Teatros da Rota da Seda, à Aliança Internacional de Museus da Rota da Seda, à Aliança Internacional de Museus de Arte da Rota da Seda e à Aliança Internacional de Bibliotecas da Rota da Seda. Não seria uma boa ocasião negociar apoio à restauração do Museu Nacional – cujo incêndio em 2018 queimou a maior parte dos 20 milhões de itens que abrigava – no contexto destas Alianças?

O momento exige muita disposição para derrubarmos os muros que outros países insistem em levantar para nos dividir. Ficar em cima do muro não basta. Às vezes a ambiguidade pode ser destrutiva. O desafio é maior. Assim, no que diz respeito à relação sino-brasileira, participar da Rota da Seda da Saúde, propor uma Rota da Seda da Língua Portuguesa, ingressar na Aliança Internacional de Museus da Rota da Seda seriam exemplos de formas soberanamente criativas de dizer um sonoro “sim” ao menos a certas iniciativas que estão inseridas na ICR.

[1] A declaração está disponível no seguinte link: https://www.gov.br/mre/pt-br/canais_atendimento/imprensa/notas-a-imprensa/declaracao-conjunta-entre-a-republica-federativa-do-brasil-e-a-republica-popular-da-china-sobre-o-aprofundamento-da-parceria-estrategica-global-pequim-14-de-abril-de-2023 

* Professor de direito internacional da Faculdade de Direito da UFF e da FGV do Rio de Janeiro. Pós-Doutorado na Escola de Governo da Universidade de Pequim e na Faculdade de Direito da Universidade de Shanghai de Finanças e Economia. Professor da Cátedra Wutong da Universidade de Língua e Cultura de Pequim. Ganhador do “Prêmio Amizade do Governo Chinês 2023”.

Leia mais sobre a cooperação Brasil-China https://lucianosiqueira.blogspot.com/2024/09/brasil-china.html

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