Limite ao reajuste do salário mínimo leva os mesmos de sempre a pagarem a conta
Dieese e economista são categóricos ao afirmar que, para haver equilíbrio nas contas públicas, não é preciso penalizar classe trabalhadora. Taxar os ricos é a solução mais justa
Priscila Lobregatte/Vermelho
Considerada uma das mais importantes políticas sociais do país, a valorização do salário mínimo poderá perder parte do seu impacto positivo se for aprovada a limitação em sua correção anual. Essa proposta faz parte do pacote de corte de gastos, elaborado pelo governo num cenário marcado por forte pressão do mercado e de setores do Congresso que não têm compromisso com a vida do povo e com os destinos do país.
Apresentado pelo ministro Fernando Haddad, da Fazenda, no final de novembro, o pacote tem, entre suas propostas, a alteração da política de valorização do salário mínimo, que hoje consiste num reajuste anual tendo como base a inflação somada ao PIB dos dois anos anteriores.
A mudança, se for aprovada tal qual enviada ao Congresso, limitará o aumento real (PIB) ao teto de 2,5%. De outro lado, também estabelecerá um piso para o crescimento real do salário mínimo de 0,6%, nos anos de recessão.
Para se ter uma ideia do que isso pode significar para o trabalhador, se esse teto estivesse valendo a partir de 2023, o salário mínimo hoje seria de R$ 1.385, diferença de R$ 27 ao mês, segundo relatório técnico produzido pelo Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos) sobre o conjunto de medidas.
No caso daqueles que têm carteira assinada e que recebem o piso nacional, isso levaria a uma perda de R$ 389 em um ano — considerando no cálculo 13 salários mensais, 1/3 de férias e FGTS. Na hipótese desse tipo de regra estar valendo há 20 anos, o prejuízo para o trabalhador com carteira assinada seria superior a R$ 19,5 mil.
A projeção de impacto na economia para 2024, ainda conforme o Dieese, “cairia de R$ 69,9 bilhões para R$ 49,4 bilhões. Da mesma forma, a estimativa de R$ 37,7 bilhões na arrecadação tributária sobre o consumo seria reduzida para R$ 26,6 bilhões”.
O Dieese também mostrou que, em uma simulação até 2030, em 2025 e 2026 haverá perdas consideráveis para o trabalhador que recebe o salário mínimo porque o PIB de 2023 e 2024 ultrapassam o teto de 2,5%. “O prejuízo anual estimado é de R$ 158 em 2025 e de R$ 331 em 2026. Mesmo considerando o crescimento médio do PIB de 3% a partir de 2027, os efeitos negativos da imposição de um teto salarial para os trabalhadores são evidentes”, alerta.
Ao opinar sobre a proposta, o Dieese destaca que a política de valorização do salário mínimo tem se mostrado “uma ferramenta crucial na redução das desigualdades sociais no Brasil”.
No entanto, diz que o estabelecimento de um teto para o aumento real “pode reduzir a tendência de crescimento da renda das camadas mais vulneráveis, perpetuando ou até ampliando as disparidades de renda no país. Assegurar que o aumento do salário mínimo pelo menos acompanhe o crescimento da economia pode contribuir significativamente para a redução do processo de concentração de renda no Brasil”.
Trajetória de sucesso
Cássio da Silva Calvete, especialista em Economia Social e do Trabalho, Mercado de Trabalho e Política de Governo e professor da UFRGS, também avalia a mudança como negativa e ressalta o papel que a valorização do salário mínimo tem tido tanto na vida dos brasileiros quanto na economia.
“Essa foi a política mais acertada de todos os governos do PT, na medida em que resgata o poder de compra do salário mínimo e atua na melhoria da distribuição de renda, ainda que o salário mínimo continue sendo baixo”, explica.
Nesse sentido, vale lembrar como foi a evolução do salário mínimo desde o primeiro mandato de Lula. “De 2003 até 2006 não houve uma regra institucionalizada de valorização do salário mínimo, embora tenha havido forte aumento real no primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva. Em 2003, o reajuste foi de 20%, frente a uma inflação acumulada de 18,54% (entre abril de 2002 e março de 2003), o que correspondeu a um aumento real de 1,46%”, escrevem Arthur Welle, Juliane Furno Pedro e Paulo Zahluth Bastos em artigo publicado no final de 2022 pelo Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica, do Instituto de Economia da Unicamp.
Em 2004, acrescentaram, “a elevação foi de 8,33% para INPC de 7,06%. Em 2005, o salário mínimo foi corrigido em 15,38%, para uma inflação de 6,61%, o que significou um aumento real de 8,23%. No primeiro mandato de Lula, portanto, o aumento real do salário mínimo chegou a 27%”.
Após marcha das centrais sindicais a Brasília em 2004, o governo Lula instituiu o Conselho Nacional do Salário Mínimo, com o objetivo de estudar uma política de valorização.
Nasceu assim a Política Permanente de Valorização do Salário Mínimo, que passou a vigorar em 2007, tendo como regras o repasse da inflação do período entre as correções, o aumento real pela variação do PIB e a antecipação da data-base de revisão para janeiro — que passou a vigorar em 2010. “Como resultado dessas políticas, o aumento do salário mínimo nos dois mandatos de Lula chegou a 57%”, lembram os autores.
Em 2012, a política de valorização do salário mínimo passou a ser definida na Lei nº 12.382, que estipulou a correção segundo o INPC do ano anterior e a variação do PIB de dois anos precedentes. A lei vigoraria até 2023 com possibilidade de revisão no ano de 2019.
Quatro anos depois, em 2016, o salário mínimo passou a crescer de acordo com a inflação por conta da desaceleração e posterior retração do PIB verificada nos anos anteriores e assim se manteve até 2018. “Finalmente, em 2019, no governo Bolsonaro, a regra instituída em 2012 não foi renovada, o que eliminou a política de valorização do salário mínimo”.
De acordo com Cássio Calvete, a política de valorização do salário mínimo “tem o mérito, por um lado, de melhorar a condição de vida dos trabalhadores de mais baixa renda — não só dos assalariados formais porque o salário mínimo tem o chamado ‘efeito farol’, ou seja, mesmo o setor informal mira no salário mínimo”. Além disso, favorece os que recebem aposentadoria, pensão ou o Benefício de Prestação Continuada (BPC), indexados ao salário mínimo.
A outra virtude dessa política, apontada pelo professor, está no fato de tornar o reajuste do salário mínimo previsível. “Com isso, os setores produtivos podem se planejar. Além disso, traz um importante componente de estabilidade e de previsibilidade para a economia do país”.
Perdas para o trabalhador
Apesar dessa trajetória de sucesso — que também se reflete nas quedas de pobreza do país —, a política de valorização do salário mínimo, retomada no terceiro mandato de Lula, pode ficar comprometida se a regra proposta pelo próprio Ministério da Fazenda prevalecer.
É cristalino que a situação do governo é complexa, com pressões vindas do mercado financeiro, da extrema-direita — que quer criar todo tipo de desgaste possível para fragilizar Lula e a esquerda — e pelo Congresso, formado majoritariamente por parlamentares que, além de compartilharem dessa visão, também buscam fazer valer os seus interesses e os daqueles que os financiam. E, sabemos, não é a classe trabalhadora, muito menos a de baixa renda, que dá as cartas nesse jogo.
“Ou seja, quem vai pagar a conta são os de sempre”, critica Calvete, da UFRGS. “Por que não se pensar numa regra que limite os juros?”, questiona. Além disso, argumenta que é preciso investir nas reformas referentes aos impostos, tributando herança e grandes fortunas e implementando um sistema tributário realmente progressivo. “Hoje, os ricos, o lucro, não pagam imposto neste país. E a gente continua com uma estrutura tributária regressiva, na qual quem ganha menos paga mais e quem ganha mais paga menos”, declarou.
Ele também defende um mergulho mais a fundo no corte aos privilégios garantidos aos militares, especialmente a pensão paga às filhas solteiras, e na revisão de penduricalhos que aumentam absurdamente os ganhos de uma ínfima parcela do serviço público, mas que custam bilhões ao país.
A nota técnica do Dieese segue nesse mesmo sentido. “É preciso inserir no debate a verdadeira razão dos desequilíbrios fiscais no país. O conjunto de medidas proposto, com todos os possíveis impactos sobre as parcelas menos favorecidas da população, embora apresentado como necessário à sustentabilidade das contas públicas da União, se insere em uma discussão que envolve uma dura disputa pelos fundos públicos”, aponta.
Nesse sentido, continua, “nunca é demasiado mencionar que nem de longe os valores aqui estimados se comparam ao contínuo dreno das despesas com o pagamento de juros da dívida pública”.
O PCdoB, um dos partidos da base aliada que, no entanto, se manifestou contra a penalização da classe trabalhadora, salientou, em resolução recente, que “o governo pagou R$ 869 bilhões de juros nos últimos 12 meses encerrados em setembro. Para se ter uma ideia, uma redução de dois pontos percentuais na taxa de juros economizaria mais de R$ 80 bilhões das despesas financeiras”.
Ao invés disso, diga-se, o Comitê de Política Monetária do Banco Central acaba de aprovar, por unanimidade, um aumento de 1 ponto percentual na Selic, para 12,25%, piorando ainda mais esse descompasso.
O partido assinala, ainda, que “o montante da despesa tributária anual soma R$ 546 bilhões. Uma redução de 10% desse total proporcionaria economia de R$ 54,6 bilhões”.
Outro ponto fundamental a ser observado, diz o Dieese, é a forma como esses projetos vão passar pelo Congresso Nacional. “Um alerta vermelho é o fato de as medidas de restrição ao salário mínimo, BPC e Bolsa Família já terem sido enviadas ao Congresso e tramitarem em regime de urgência, enquanto os aspectos positivos da proposta ficarão para depois, especialmente no que diz respeito ao aumento do limite de isenção do imposto de renda e ao estabelecimento de nova alíquota para as pessoas de maior renda”.
Leia sobre a economia em alta e as pressões do capital financeiro https://lucianosiqueira.blogspot.com/2024/12/editorial-do-vermelho.html
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