O corpo é o cavalo da arte
Cícero Belmar*
Todo fim de ano, escolho um presente para dar a mim
mesmo. É como um afago, que me faço: você foi um bom menino, eis a recompensa.
Por exemplo, já escolhi livros maravilhosos, almoçar num restaurante da moda,
comprar uma caixa de CDs na época dos CDs, fazer uma viagem. Neste 2024, que
está com dias contados, fui ao show de Ney Matogrosso, que fez 52 anos de
carreira.
Comprei o ingresso com antecedência, para não
perder a oportunidade do preço e garantir o presente a mim mesmo. Dia a dia,
esperava o 30 de novembro chegar. Quem ama a MPB e nunca sonhou com a
apresentação dessa estrela incontestável? Uma fila quilométrica se formou na
entra da do Classic Hall, em Olinda (PE), duas horas antes de o show começar.
Na tarde do dia 30, meu amigo Ney, não o cantor,
mas o escritor, crítico literário e jornalista Ney Anderson, conversou
longamente com Ney por telefone. Ele tem acesso direto ao cantor e ouviu o
questionamento: “Será que vai dar público?”. A pergunta chega ao prosaico. Ney
fe z uma pergunta que todo artista do palco se faz antes do espetáculo. Ele só
não sabia que os ingressos estavam esgotados havia semanas.
Ao colocar o seu “Bloco na Rua”, Ney Matogrosso me
fez cantar e dançar. Os milhares de fãs que lotaram o Classic Hall, também.
Dono da alegria e das emoções, o cantor fica do tamanho do palco quando se
apresenta. Coloca o seu corpo a serviço da arte, predispõe-s e de uma maneira
tão genuína que todos embarcam na sua proposta. De imediato, estabelece um elo
com o público, mobiliza quem está abaixo, ali, à sua frente.
O show tem um repertório que percorre várias fases
de sua carreira, iniciada em 10 de dezembro de 1972. No set list estavam
sucessos antigos (seus) como Poema e Homem com H; as canções Postal do Amor (de
Fagner/Fausto Nilo/Ricardo Bezerra) e Ponta do Lápis (Clodô/Rodger Rogerio); C
omo 2 e 2 (Caetano Veloso); Eu quero é botar meu bloco na rua (Sergio Sampaio);
Balada do Louco (Mutantes); A Maçã (Raul Seixas).
Cada música escolhida tem um objetivo. Cada gesto
seu, na interpretação, também. Ney não está no palco por estar. Todo mundo
percebe e acredita nas suas alegrias, nas suas paixões, nos seus desvarios, nas
suas consternações. O coletivo se identifica com a verd ade que pulsa.
O
show se efetua com elementos cênicos delicadamente pensados. O figurino, do
estilista carioca João Paulo, reforça um personagem que Ney criou para si
mesmo. O cenário, de Luiz Stein, é composto por projeções que causam efeitos
poéticos; a iluminação, d e Juarez Farinon, é essencial e útil para despertar
emoções. Com uma banda foda, potência vocal surpreendente e performance
eletrizante, Ney faz você se questionar: essa pessoa tem mesmo 83 anos?
No
final do show, meu amigo Ney me disse que iria com sua esposa, Karla, ao
camarim, dar um abraço em Ney. “Quer ir conosco?” Só se eu estivesse louco,
para não ir. Foi uma experiência à parte: ao conhecê-lo, acaba-se a magia do
palco. Esqueçam o personagem fulgur ante de minutos atrás.
Em
cena, Ney se revela, sugere, requebra, seduz, põe fogo no mundo. No camarim,
não mais. A simplicidade contrasta com a exuberância. Há uma distância muito
grande entre o cantor, o forte personagem de que ele nos convenceu de sua
existência, e o homem simples e quieto.
A
reação inevitável é de surpresa. Ele é de estatura pequena, magrinho,
educadíssimo, diria humilde. É então que você descobre que foi persuadido por
um artista na expressão do corpo e do canto, no palco. Diante da metamorfose,
você conjectura que o corpo de Ney é apenas o cavalo à disposição do espírito
da arte. Ney é gigante.
Ney
nos trata com atenção e gentileza. O show foi o melhor presente que eu poderia
me dar. O meu amigo Ney também me presenteou ao me levar ao camarim. Falar
nisso, Ney Anderson fez 40 anos ontem. Parabéns, amigo! Fico devendo este
presente que jamais será esquecido.
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