06 fevereiro 2025

Uma crônica de Abraham Sicsú

Um dia e dois documentários
Entre memórias e reflexões, um dia comum se transforma em um profundo mergulho na história e na injustiça social através de dois documentários impactantes.
Abraham B. Sicsú/Vermelho  


Levanto um pouco preocupado. O motivo não me é claro. Dia em que deixo de lado meu hábito de leitura, meu vício de escrita.

A cabeça funcionando a mil, algo de estranho pode acontecer, sei lá? Família, problemas na estrutura da casa, finanças desarrumadas, dia em que parece que nada está no local, não sei por onde começar a me estruturar, o que enfrentar primeiro.

Respiro, procuro não me desesperar, procuro caminhos alternativos. Como ocioso remunerado posso me dar ao direito de postergar muito, ou quase tudo, do que tinha programado. Não sabendo priorizar, nada deve ser prioritário.

Não deixo de ver minhas mensagens e ler os jornais, antes do café da manhã. Mania que me é instintiva. E nelas, nas mensagens, começo a me organizar.

Da Federação israelita de Pernambuco recebo um informe de que 27 de janeiro é o Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto. Não sabia, não tinha a menor noção, mas é um fato relevante a não ser esquecido. Desde que visitei o Museu de Jerusalém, Yad Vashem, fiquei muito impressionado com o que foi feito, procuro não me fazer presente a esses eventos e espaços públicos, dói demais o recordar e o saber que o ser humano pode cometer atrocidades inimagináveis. No entanto, não deixar de lembrar, jamais, principalmente para as gerações futuras, para que tenham consciência do que sempre é uma ameaça presente.

De um amigo, ligado aos temas judaicos, recebo uma divulgação de um documentário que ajudou a produzir e está disponível no Youtube. Apenas esta semana. Achando interessante ele, engenheiro que se tornou produtor cinematográfico, defini meu programa dessa manhã, pelo menos em boa parte dela.

As Três Vidas de Frieda Wolff”, fiquei bastante emocionado, lembrei da história de minha vó Paulina que sobreviveu por estar em viagem de férias quando da invasão e aniquilamentos de judeus na Alsácia Lorena, à época, se não me engano, ainda sob o domínio francês. (assista ao trailer aqui)

Um filme que retrata a história de um casal que conseguiu fugir do nazismo, no período derradeiro de implantação do regime hitlerista. Por perseguição tiveram que abandonar os estudos, Direito e Literatura, abandonar a família, tudo enfim, e resolvem vir ao Brasil, ao Rio de Janeiro. Aqui as coisas se ajeitam e eles com um comércio de armação para óculos e muito esforço fazem a vida, conseguem se estabelecer e prosperar.

Mesmo sem serem historiadores, ou terem formação na área, são pesquisadores natos. Começam a pesquisar a vinda de judeus que aqui viveram na época do império, se embrenham em cemitérios e bibliotecas, escrevem mais de quarenta livros. O primeiro deles, vejam a importância, foi publicado pela USP. Achados valiosíssimos para resgatar os caminhos trilhados pelos antecessores judeus que aqui se estabeleceram. Seus estudos viraram referência obrigatória na área. Uma história de superação que vale ser vista e contada.

O dia continua. Consertos em casa e algumas conversas despretensiosas. O almoço sempre agradável, a rabada estimulante, feita por Deo, o suco de acerola. Vem a tarde e a tristeza não passa. Resolvo ver mais um filme. Abro a Netflix e escolho o primeiro baseado em fatos reais, meus prediletos, que surge no cardápio.

Origin“, a história da escritora e jornalista Isabel Wilkerson. O assunto é justiça social e discriminação. Dá o que pensar. Baseado em dados que ocorreram nos Estados Unidos, Alemanha e Índia, a autora se faz perguntas provocativas: qual a base da discriminação social? O que leva a grupos serem excluídos e menosprezados ou mesmo aniquilados? O que tem em comum o racismo contra os afro-descendentes americanos, o regime de castas contra os dalits na Índia e o nazismo contra os judeus na Alemanha? (assista ao trailer aqui)

Mostra com clareza a necessidade dos poderosos de desumanizar grupos para manter a dominação. Mostra que ao não individualizar atitudes e assumir traços comuns atribuídos a um grupo, geralmente inventados e idealizados pelos opressores, se destrói a identidade individual dos pertencentes a um grupo étnico, racial ou mesmo partes relegadas de uma sociedade hierarquizada. Se “justificam” medidas atrozes e totalmente irracionais. Criam-se estereótipos e falsas verdades para caracterizar o todo de um estamento social, sempre vendo um lado perverso nele que seria comum a qualquer um que se encaixasse naquele segmento social humano. Portanto, são párias a serem combatidos.

Pode-se concluir que os três, negros, dalits e judeus, são vítimas do mesmo estado opressor que vê na aniquilação ou desumanização uma forma de submissão e destruição de semelhantes para manter um status quo injusto e muito cruel.

O extermínio em campos de concentração, o enforcamento e segregação dos negros americanos, o chafurdar na merda para limpar esgotos das castas inferiores indianas, têm a mesma origem. A necessidade de esconder as mazelas e perversidades dos dominadores, tornando-os “superiores”, justificando a dominação dos semelhantes. Humanos que devem ser caracterizados como não humanos, como ameaças aos princípios que dão consistência a uma civilização hipócrita. O homem que se auto define superior se torna cruel, pior, as perversidades são direcionadas ao coletivo de um grupo “maligno” e, portanto, não precisam ser justificadas.

Hoje, novos bodes expiatórios aparecem. O latino de pele queimada e o árabe muçulmano, por exemplo. Em princípio, julgados bandidos ou terroristas. Eliminá-los é a solução. Impedir seu convívio em um meio específico onde haja abundância e o mínimo de oportunidades. Não são vistos como pessoas que tentam sobreviver, que procuram espaços onde possam dignamente buscar seu sustento, saindo da pobreza absoluta que lhes é imposta por um sistema cruel de exploração e alijamento em seus países de origem. Para lá devem voltar, para regiões e países condenados à pobreza, à morte lenta e vegetativa por falta de opções, caminho certo para o desestruturar seu e de seus familiares.

Com tristeza, vejo o mundo não se libertar dos preconceitos, criados e reforçados para manter nossos iguais em condições subumanas. Uma atitude que despreza totalmente qualquer solidariedade.

Dia nada programado, mas me fez pensar e retomar o dia do aniquilamento humano do holocausto. Dia em que, sem nenhuma intenção, fui exposto a um dos problemas mais sérios que a nossa civilização enfrenta. Falta de empatia e solidariedade. O semelhante é o que menos importa se nós estivermos bem, pensam os hipócritas idiotas. Jamais imaginam que algum dia seus descendentes poderão estar em situação semelhante.

Dois filmes interessantes que sugiro sejam vistos. Um alerta para as consciências que querem um mundo menos desigual, mais humano, mais fraterno e libertário.

[Foto: "As Três Vidas de Frieda Wolff" narra a história da pesquisadora que escapou do Holocausto | divulgação/Bretz Filmes]

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