O que
se ouve do Brasil nos corredores do Congresso chinês
Embora os dois países sejam parceiros desde
1993, nunca isso esteve tão presente no imaginário coletivo chinês, do cidadão
comum aos membros da elite política
Marcelo Ninio/O Globo
Há dez anos, quando questionados sobre o Brasil na fila do chá, quase todos os membros do Legislativo chinês se limitavam a falar de futebol, alguns de soja, carne e minério de ferro, destaques da relação comercial. Hoje em dia, falar de futebol ainda é quase um reflexo automático, mas o país evoca também uma conotação política, associada à visão estratégica da China de um mundo multipolar, de combate à hegemonia do Ocidente.
Embora no papel os dois países tenham uma parceria
estratégica desde 1993, nunca isso esteve tão presente no imaginário coletivo
chinês, do cidadão comum aos membros da elite política. Motoristas de táxi
sabem quem é Lula, e a amizade entre os países é ressaltada pela mídia estatal.
O Brasil não é mais só sinônimo de futebol, virou “parceiro”. Esse foi o tom de
cada resposta obtida pela coluna nesta quarta sobre o Brasil, de todos os
delegados ouvidos na abertura do Congresso Nacional do Povo (CNP), o
Legislativo chinês.
E não é somente pelo interesse pelas
matérias-primas que a China importa do Brasil em quantidades como nenhum outro
país, diz Grace Ling, delegada de Hong Kong. Para ela, mesmo distantes na
geografia e na cultura, os dois países devem se unir em defesa de seus
objetivos em comum, entre eles o multilateralismo e a paz. É um caminho que já
vem sendo seguido em diversas frentes. No ano passado, Brasil e China
divulgaram um documento conjunto sobre a guerra na Ucrânia, em que pediam um
cessar-fogo e negociações diretas.
— É importante defender o direito de
cada país de preservar suas particularidades, sem imposições de uma única
cultura dominante — disse Grace antes de deixar o Grande Salão do Povo, onde se
estenderá pela próxima semana a sessão anual do Legislativo.
Na principal atração do dia, o discurso
de abertura do premier, Li Qiang, o foco foi econômico, com destaque para a
esperada meta de crescimento do PIB em torno de 5% para este ano. Não houve uma
análise aprofundada de temas de política externa. Isso fica para sexta, na
entrevista coletiva do chanceler, Wang Yi. Mas Li reiterou a mensagem
principal, que os delegados do Congresso já sabem quase de cor: “A China está
disposta a trabalhar com outros membros da comunidade internacional para
promover um mundo com ordem e igualdade, e uma globalização econômica inclusiva
e universalmente benéfica”.
A cooperação com os países do Sul
Global é a chave para atingir esses objetivos, disse um delegado da província
central de Henan, que pediu para não ter o nome divulgado. A seu lado, um
delegado da província sulista Jiangshi acrescentou que a pressão exercida pelos
Estados Unidos sobre a China, com aplicação de tarifas adicionais e restrições
ao acesso de determinadas tecnologias avançadas, torna ainda mais vital o
fortalecimento de parcerias com grandes países em desenvolvimento, como o
Brasil.
Sintomaticamente, havia mais desenvoltura em falar com
jornalistas entre os delegados do território autônomo de Hong Kong, mais
habituados ao trabalho da imprensa estrangeira. Chan Cheuk-hay, presidente da
Faculdade de Tecnologia de Hong Kong, destacou a importância da cooperação dentro
do grupo Brics e disse esperar que haja mais intercâmbio entre o Brasil e a
China na área de educação superior. O Brasil tornou-se um “amigo próximo da
China”, disse, e um aliado importante no Sul Global.
Enquanto delegados de toda a China
desfilavam pelo tapete vermelho a caminho da sessão de abertura, de modo quase
sincronizado o presidente Donald Trump discursava no Congresso americano,
fazendo um balanço de seu avassalador início de governo, em pouco mais de um
mês desde a sua volta à Casa Branca. Na véspera, havia entrado em vigor a
sobretaxa adicional de 10% ordenada por Trump sobre importações chinesas,
seguida da retaliação imediata de Pequim, com tarifas de até 15% sobre produtos
agrícolas dos EUA.
Trump mencionou a China seis vezes,
todas elas ligadas à guerra tarifária. O premier chinês não citou os EUA pelo
nome, mas o rival estava presente nas entrelinhas: “Um ambiente externo
complexo poderá ter maior impacto sobre a China em áreas como comércio, ciência
e tecnologia. O crescimento global carece de força, o unilateralismo e o
protecionismo estão em alta e o sistema multilateral de comércio experimenta
rupturas, enquanto barreiras tarifárias continuam crescendo”, disse Li Qiang.
Uma das receitas para lidar com o
ambiente externo desfavorável, segundo o premier chinês, será “aumentar a
autossuficiência em ciência e tecnologia”. Para isso, o governo promete remover
barreiras ao setor privado, por meio de um projeto de lei apresentado ao
Congresso. A expectativa é recuperar a confiança dos investidores,
principalmente no setor de tecnologia, que foi abalada por um forte aperto
regulatório aplicado em grandes empresas há alguns anos.
A última tentativa de mostrar sintonia
entre governo e gigantes de tech ganhou as manchetes duas semanas atrás, quando
alguns dos principais nomes do setor se reuniram em Pequim com o presidente
chinês, Xi Jinping. Muitos dos presidentes das grandes firmas de tecnologia
chinesas são membros do Partido Comunista, alguns delegados do Congresso. Entre
eles Lei Jun, o dono da Xiaomi, uma das maiores fabricantes de celulares do
mundo, que recentemente entrou no ramo automotivo ao lançar seu primeiro
veículo elétrico.
Diante de um batalhão de repórteres
chineses, Lei Jun explicou o objetivo das cinco propostas que apresentou ao
Congresso, todas voltadas para a popularização de novas tecnologias, como
inteligência artificial e veículos autônomos.
— A indústria é a base da força da
China. Como criador e beneficiário desse setor, a Xiaomi continuará a inovar
com tecnologias de ponta em IA em nossos produtos e contribuir para a
modernização da China, ao mesmo tempo que melhoramos a vida dos consumidores
por meio da tecnologia — afirmou.
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