O Carnaval morreu, viva a quaresma!
Machado de Assis
Quando digo que o carnaval morreu apenas me refiro ao fato de haverem passado os seus três dias; não digo que o carnaval espichasse a canela.
Se o dissesse, errava; o carnaval não morreu; está apenas
moribundo. Quem pensaria que esse jovem de 1854, tão cheio de vida. tão lépido,
tão brilhante, havia de acabar vinte anos depois, como o Visconde de
Bragellone, e acabar sem necrológio, nem acompanhamento?
Veio do limão-de-cheiro e do polvilho: volta para o polvilho e o
limão-de-cheiro. Quia pulvi est. Morre triste, entre uma bisnaga e um princês,
ao som de uma charamela de folha-de-flandres, descorado, estafado, desenganado.
Pobre rapaz! Era forte, quando nasceu, rechonchudo, travesso, um pouco
respondão, mas gracioso. Assim viveu; assim parecia viver até à consumação dos
séculos. Vai senão quando raia este ano de 77, e o mísero, que parecia vender
saúde aparece com um nariz de palmo e meio e os olhos mais profundos do que as
convicções de um eleitor. Já é!
Esta moléstia será mortal, ou teremos o gosto de o ver ainda
restabelecido? Só o saberemos em 78. Esse é o ano decisivo. Se aparecer tão
amarelo, como desta vez, e não contar com ele por coisa nenhuma e tratar de
substituí-lo.
II
Caso venha a dar-se essa hipótese, vejamos desde já o que nos
deixará o defunto. Uma coisa. Aposto que não sabem o que é? Um problema
filológico.
Os futuros lingüistas deste país percorrendo os dicionários,
igualmente futuros, lerão o termo bisnaga, com a definição própria: uma
impertinência de água-de-cheiro (ou de outra), que esguichavam sobre o pescoço
dos transeuntes em dias de carnaval.
-Bom! Dirão os lingüistas. Temos notícia do que era bisnaga. Mas por que esse
nome? donde ele vem?
Quem o trouxe?
Neste ponto dividir-se-ão os lingüistas.
Uns dirão que a palavra é persa, outros sânscrita, outros
groenlandesa. Não faltará quem a vá buscar na Turquia; alguns a acharam em
Apúlio ou Salomão.
Um dirá:
-Não, meus colegas,nada disso; a palavra é nossa e só nossa. É nada menos do
que uma corrução de charamela, mudado o cha em bis e o ramela em naga.
Outro:
-Também não. Bisnaga, diz o dicionário de certo Morais que
existiu ali pelo século XIX, que é uma planta de talo alto. Segue-se que a
bisnaga carnavalesca era a mesma bisnaga vegetal, cujo sumo, extremamente
cheiroso , esguichava quando a apertavam com o dedo.
Cada um dos lingüistas
escreverá uma memória em que provará, à força de erudição e raciocínio, que
seus colegas são pouco mais do que ruços pedreses. As Academias celebrarão
sessões noturnas para liquidar esse ponto máximo. Haverá prêmios, motes,
apostas, duelos, etc.
E ninguém se lembrará de ti, bom e galhofeiro Gomes de Freitas,
de ti que és o único autor da palavra, que aconselhavas a bisnaga, e a grande
arnica, no tempo em que o esguicho apareceu, por cujo motivo puseram o nome popularizado
por ti.
Teve a bisnaga uma origem alegre, medicinal e filosófica. Isto é
o que não hão de saber nem de dizer os grandes sábios do futuro. Salvo, se
certo número da Ilustração chegar até eles, em cujo caso lhes peço o favor de
me mandarem a preta dos pastéis.
III
Falei há pouco do que há de substituir o carnaval, se ele
definitivamente expirar. Deve ser alguma coisa igualmente alegre: por exemplo,
a Porta Otomana.
Vejam isto! Um ministro patriota leva a entreter toda a Europa a
roda de uma mesa, a fazer cigarros das propostas diplomáticas, a dizer aos
ministros estrangeiros que eles são excelentes sujeitos para uma partida de
whist ou qualquer outro recreio que não seja impor a sua à Turquia; os ditos
ministros estrangeiros desesperam, saem com um nariz de duas toesas, dando a
Turquia a todos os diabos; vai senão quando o Jornal do Comércio publica um
telegrama em que nos diz que o dito ministro turco, patriota, vencedor da
Europa, foi destituído por conspirar contra o Estado!
Alá! Aquilo é governo o Pera de Satanás? Inclino-me a crer que é
simplesmente Pera. A porta tem muitos outros e vários alçapões, por onde sai ou
mergulha, ora um sultão, ora um grão-vizir, de minuto a minuto ao som de um
apito vingador. Todas as mutações são à vista. Eu, se na Turquia tivesse a
infelicidade de fazer um dos primeiros papéis, metia claque na platéia para ser
pateado. Creio que é o único recurso para voltar inteiro ao camarim.
[Ilustração: Wellington Virgolino]
Leia também: "Carnaval: rebeldia e prazer" https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/02/meu-artigo-para-o-portal-grabois-4.html
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