Aposentado também tira férias
“Um dos grandes problemas da aposentadoria é a falta de rotinas. Acordar sem ter um roteiro predefinido de atividades. O que farei hoje?”
Abraham B. Sicsú/Vermelho
Fazem mais de seis anos. Resolvi assumir a posição de aposentado. Efetivamente, sem grandes concessões, sem fugas paralelas, sem trabalhos remunerados alternativos. Parar as atividades traz seus ônus. Iria enfrentar.
Um dos grandes problemas da aposentadoria é a falta de rotinas. Acordar sem ter um roteiro predefinido de atividades. O que farei hoje? Terrível, muitas horas pela frente e muito a ocupar. Pode ser até angustiante.
As pessoas se reinventam, criam atividades. Uns, aulas de piano ou canto, outros academias de ginástica, artes uma boa alternativa, pilates é quase obrigação, cursos online também, tudo para fugir do ostracismo, da solidão.
Criei a minha rotina sem muito pensar. Preparar o café da manhã. Duas horas de leituras, os jornais importantes, mas literatura fundamental. A cachacinha antes do almoço, grupo de estudos, escrever textos. Duas vezes por semana yoga, três noites Netfflix, duas vezes por mês grupos de aposentados e meditação. Tudo em horários quase sempre repetitivos, uma nova agenda que se estruturou. Dá sentido à vida, preenche os tempos que seriam insuportáveis e longos. Einstein tinha razão quanto à relatividade do tempo, ele jamais é igual e passa no mesmo ritmo para todos.
No entanto, como tudo na vida, anos nessas rotinas cansam e são necessários intervalos para relaxar, se afastar dessas atividades que quase se tornam obrigação. A alternativa é sempre desejável, férias são necessárias e fazem bem. Pelo menos para a cabeça e para o coração.
Este ano teve carnaval. Em Recife associado ao feriado da “Gata Magra”, feriado local. Uma semana inteira sem aulas. Convidamos meu neto de doze anos para uma semana de férias em São Paulo. Ele topa e vamos curtir um bom tempo.
Pergunto o que gostaria de fazer. Sério e pensativo responde. “Conhecer os primos que não conheço, rever a família, comer bem.” Programa feito, vamos cumpri-lo.
A gastronomia é fantástica. Adoramos comida asiática. Um tailandês na Liberdade, Thai E-san, na opinião do neto o melhor de todos, dois japoneses fantásticos, Izakaya Cocoro no Paraíso e o maravilhoso ramen do JôJô. Não deixamos de ir aos tradicionais. Os bons árabes por quilo, as ostras do Mercado Central, os sanduíches tradicionais do Ponto Chic, a maravilhosa pizza do Jardim di Napoli.
Um restaurante me marcou. Tem classificação Michelin. Vista, na cobertura do Museu de Arte Contemporânea no Ibirapuera. Comi um arroz de bacalhau divino. Lúcia e meu neto peixe. Uma torta de sobremesa espetacular. Discordando do meu neto quanto ao melhor restaurante, para mim, este é o melhor.
Parques e Paulista fazem parte da programação. Ibirapuera e Aclimação, muito bem cuidados, com alternativas para diversão. Os espaços culturais da Paulista com programação bem elaborada. Casa Japonesa, Casa das Rosas, Itaú, MASP e Moreira Sales, imperdíveis.
As reuniões familiares, ponto alto. Com um tio, um almoço numa hamburgueria, com meu irmão e família, o conhecer dos primos de quem só tinha ouvido falar, com a família de minha companheira, almoço prolongado, uma tarde de brincadeiras com os primos de idade mais próxima, alegria de poder reencontrar todos e valorizar a convivência familiar.
Não se deixa de ir a espetáculos. No Jardim Botânico um Festival de Luzes. Nunca vi coisa mais brega. Mistura de zoológico, com Grécia e Egito, passando pela Europa e o Oriente. Os leds em profusão. Acabei gostando, ao final de contas, tudo é diversão, fascinação.
Vou ficar sozinho. Quem trabalha e quem estuda tem que voltar. Prolongo por mais uma semana minha estadia.
É bom o se afastar por um tempo. Refletir sobre a vida, sobre os caminhos assumidos. Sobre os acertos e erros ocorridos. Sem cobrança, apenas como um refletir individual.
Não foi só férias. Tive uma Banca Acadêmica que durou apenas duas horas. Foi rápida e já tinha preparado. Por isso, desconsidero.
Uns dias muito interessantes. Onde a cabeça trabalhou a mil.
Resolvo me atualizar com o Oscar, ver os filmes que não tinha assistido. Gostei de Conclave, Flow é muito simpático, e Anore uma pornochanchada insossa, sem graça. Sem puritanismo, achei bem bobinha.
A Pinacoteca está bem organizada. Em três prédios. Vi a valorização do Nordeste na sala da Fundação Joaquim Nabuco, nas obras de Brennand, nos trabalhos de Jonathas. Artistas que me empolgam.
Minhas caminhadas foram longas. O Centro, a região dos jardins, a Paulista e os seus arredores. Cidade limpa e bem cuidada.
O Metrô facilita muito. Para onde se queira ir, facilmente se chega.
Os botecos continuam ótimos, com pão na chapa e pingado, cerveja gelada e torresmo, uma feijoadinha nas quartas.
Resolvo passar uns dias em uma cidade do interior, Botucatu, onde minha irmã mora. Uma delícia, bem apresentada nas suas subidas e descidas, simpática. Já a viagem vale a pena. Estradas como tapetes, ônibus muito confortáveis. Muito diferente dos nossos percursos por aqui no Nordeste.
Duas casas de chopes artesanais. Um bar de um jovem folgado, mas que dominou a arte da cervejaria. Um restaurante em que todos se conhecem. Os carros passam e param para falar com quem está na calçada. Ninguém buzina. Um ambiente de fraternidade, ainda mais com uma polenta mole coberta por um ragu de calabresa, de lamber os beiços.
Uma manhã num sítio. Época de flores, das quaresmeiras vistosas. Tudo verde e bem cuidado. A cachaçaria, sempre com adequações e melhorias bem pensadas. A cachaça, Tipuana, a melhor do Brasil, na minha opinião de especialista.
Um almoço no Celeiro. Restaurante de qualidade em um bairro descolado. A carne desmanchando, as batatas bravas crocantes. Tudo como manda o figurino.
Mas, acaba, inclusive as férias. Neste texto, tratei do material, mas esqueci do mais importante, que só o afastamento e a solidão permitiram consolidar. Das minhas reflexões, algum dia as descreverei. No entanto, tenho a ressaltar duas conclusões:
- Tem que se ter consciência, desapego, aposentadoria é um afastar das atividades que se tinha, só machuca continuar ligados a elas, querer interferir, dar palpites. É uma ruptura importante que deve ser aproveitada. Boas ou más, já demos nossas contribuições, ignorar os que nos contam caminhos dos que discordamos faz-se necessário. Fundamental assumir que é outro tempo, valorizar os novos interesses, os novos projetos de vida.
- Se as rotinas são fundamentais para dar sentido à vida, importante afastar-se delas de tempo em tempo. Romper com rotinas é difícil, nos apegamos a elas, achamos que somos imprescindíveis, se tornam quase obrigações. Lembrar que fomos nós que as criamos para preencher nossos caminhos e podemos, sempre que for necessário, modificá-las. Não são obrigações intransponíveis, temos que ousar, romper sem remorsos, quando os rumos da vida nos encaminharem a outros espaços, outras atividades. Neles, as férias são oasis de felicidade, não podemos abrir mão.
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