17 março 2025

Uma crônica de Cícero Belmar

Carrero e Scliar
Cícero Belmar  

Um dia desses, abrindo a pasta de arquivos com documentos pessoais, que conservo de forma analógica, desdobrei uns papéis, e reencontrei algo cuja importância jamais será medida: uma carta.

Foi escrita de próprio punho, como se costuma dizer para atestar a autenticidade de um documento. E em letra cursiva, para sublinhar a importância dele. Na margem esquerda superior do papel, o nome timbrado do remetente: Moacyr Scliar.

Endereçada a mim, a carta é de fevereiro de 2003. Há apenas 22 anos, portanto, era natural e comum escrever e enviar cartas pelos Correios. O WhatsApp ainda não era essa ferramenta única e exclusiva de hoje em dia.

Ainda bem que se escreviam cartas. Tenho um tesouro. O teor da carta de Moacyr Scliar e a história que está por trás dela são pedras preciosas feitas de um material muito raro, a generosidade.

E ela, a generosidade, começa a partir de outra: foi através do grande escritor pernambucano Raimundo Carrero, a quem chamo Carrerão pela grandeza da alma e da obra literária, que cheguei a Scliar.

Quando escrevi o meu primeiro livro de contos, que tem como título Tudo na Primeira Pessoa, entreguei um exemplar a Carrero, na esperança de ser lido. Tinha a expectativa de saber o que o mestre que influenciou muitos escritores de minha geração, em Pernambuco, achava daqueles textos.

Um dia, encontrei Raimundo Carrero num evento de literatura. “Você é um escritor”, ele me disse. Eu perguntei se ele sugeriria que eu enviasse o livro para outras pessoas. “Para meu amigo Moacyr Scliar”.

O próprio Carrero se prontificou a informar a Scliar sobre o livro e depois me deu sinal verde. “Pode enviar, ele está esperando”. Do Recife, mandei o exemplar pelos Correios, para Porto Alegre. Pense no estado em que ficaram as minhas unhas.

Semanas depois, quando eu tinha apenas a certeza de que o livro fora enviado, recebi a tal carta. Lembro-me perfeitamente do momento em que ela chegou a minhas mãos; parecia eu ter ganho um prêmio. A carta está datada de 11 de fevereiro de 2003.

Moacyr Scliar disse coisas muito bacanas, que deixariam qualquer escritor, iniciante, como era o meu caso, ou mesmo veterano, lisonjeados. Agir como Carrero e Scliar, não tenho dúvidas, é um dom. Tão grande quanto o poder literário de cada um deles.

Respondi agradecendo pela leitura, pelo retorno, pelo apoio. Eu não conheci pessoalmente o escritor gaúcho e acho que, por timidez e insegurança, não mantive outros contatos com ele. Com Carrero, tenho-o sempre por perto. É um grande escritor, um dos maiores deste Brasil. Um ser humano imenso. E meu amigo.

Quando reencontrei a carta, mandei colocá-la num quadro, para ficar como imagem sagrada na sala do meu apartamento. Agora, quando olho para o quadro, é com a gratidão dos que devem. Gosto desta dívida.

Foi a partir desse ato de generosidade de Carrero e de Scliar que eu, um escritor iniciante, um repórter que se aventurava a escrever ficções, senti mais segurança de me autodefinir como escritor.

Eles endossaram aquilo que, na realidade, eu era. Hoje, entendo que a generosidade é uma virtude quase espiritual porque tem o poder místico dos impulsos e das fagulhas.

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Leia: Leitura instantânea e imperfeita https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/02/china-russia-no-contexto-global.html

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