O socialismo e a excepcionalidade chinesa
Chegou a momento de discutir a excepcionalidade chinesa
enquanto um socialismo com as características daquela formação histórica que
está impondo vitórias sucessivas ao seu próprio povo e derrotas ao imperialismo
Elias Jabbour*/A
Terra é Redonda
O sério e respeitável intelectual e militante Valerio Arcary nos entregou recentemente sua análise particular do processo em curso na China. O texto chamado de “A excepcionalidade chinesa”, publicado no site A Terra é Redonda é mais uma prova da vasta cultura política e histórica de Valerio. Na verdade, ele não trata de uma única excepcionalidade chinesa, mas de algumas – sendo que a linha de cada uma das excepcionalidades leve à constatação de o país ter restaurado o capitalismo, amiúde não ter transformado o regime político; o que em si já instigaria um estudo.
O
núcleo do argumento de Valerio Arcary é muito claro e vai na direção dos riscos
da esquerda mundial em abraçar um novo campismo em torno da China. Vamos aqui
trocar ideias sobre alguns pontos levantados no texto de forma não de criticar
os pressupostos do escrito, mas no sentido de demonstrar que o desenrolar da
experiência chinesa nos demanda não somente uma completa reformulação da
gramática política sobre as experiências socialistas.
Devemos
rediscutir o próprio socialismo diante dos inegáveis avanços à classe
trabalhadora chinesa de um projeto que, antes de mais nada, advoga o
socialismo. E não outro “ismo” como nos lembra Xi Jinping.
O verdadeiro “campismo”
De
imediato não acredito neste risco. Valerio Arcary fala em “o melhor da esquerda
mundial” e os riscos dela se alinhar aos chineses. Em primeiro lugar, o que
seria esta esquerda mundial? Se for a esquerda baseada em um marxismo que não
se livrou da Europa e que hoje é hegemônica em todo o mundo onde PCs não ocupam
o poder político, o risco do campismo não existe. Esta esquerda rejeita as
experiências socialistas e observam a China com a mesma cosmovisão que os
europeus enxergam os negros, índios, latinos etc.
O
que deverá ocorrer, e já ocorre, é a crescente simpatia, de forças
nacionalistas revolucionárias que hoje pipocam na África e desalojam governos
pró-imperialistas, pela experiência chinesa. São bandeiras chinesas que as
pessoas empunham no Níger, Burkina-Faso e alhures como inspiração às suas
lutas. Neste sentido, o melhor da esquerda mundial não está no Brasil, na
Europa e nos EUA e sim na África onde essa esquerda que enfrenta e derrota o
imperialismo francês não é financiada por fundações e/ou ONGs de partidos
socialdemocratas europeus como vemos no Brasil e na América Latina operando uma
tragédia política de grandes proporções.
Logo,
o campismo é entre a esquerda “Open Society” e as forças
políticas que integraram o marxismo às suas realidades nacionais. Assim ao
africanizar o marxismo, forças políticas que operam no campo oposto da “Open
Society” nos entrega esperança, não o niilismo da esquerda no
ocidente e sua franja.
A
China aí é força política com amplo e decisivo papel positivo no fortalecimento
da consciência nacional e revolucionária da periferia africana e asiática do
sistema. Suas relações “Sul-Sul” via Iniciativa Cinturão e Rota demonstram com
clareza as diferenças entre a globalização financeira que “africanizou a
África” e as tendências que o desenvolvimento chinês entrega aos povos do
mundo.
Equívocos básicos
Valerio
Arcary comete equívocos básicos em seu texto. Por exemplo, Deng Xiaoping não
foi preso e torturado na Revolução Cultural, nem tampouco existe uma formulação
oficial do governo chinês de uma “NEP de longa duração”, “transição ao
capitalismo” e em seguida “um novo giro histórico e reiniciar a passagem ao
socialismo.
A
formulação oficial é simples objetiva: a China encontra-se na etapa primária do
socialismo, etapa esta caracterizada pela convivência de diversas formas de
propriedade sob a dominância da propriedade pública. Outro equívoco básico é a
colocar acento no “modelo econômico que aprofunda a desigualdade social por uma
etapa indefinida não pode ser considerada socialista”.
Aliás,
concordo com Valerio Arcary nisso, mas os dados dizem o contrário. Uma pesquisa
rápida e fácil nos demonstrará a que as desigualdades sociais e territoriais na
China está em curva descendente há pelo menos 20 anos e que esta mesma
burguesia que, segundo ele, se favorece de uma ilimitada acumulação de capital
tem visto seu patrimônio cair em um terço nos últimos cinco anos, fruto de uma
operação em que a contabilidade da firma se submete cada vez mais à
contabilidade social. Aqui vou dispensar as fontes, apenas sugerindo pesquisar
cada afirmação que exponho aqui.
Valerio
Arcary não demonstra conhecimento das políticas executadas pela governança
chinesa voltadas ao controle da expansão do capital privado, o verdadeiro
enquadramento de sua burguesia a uma ordem política que se tem demonstrado cada
vez mais hostil a ela e a inexistência de elementos de contabilidade da firma
nas decisões de investimentos estratégicos: o capitalismo é incapaz, em
qualquer momento histórico, de entregar 45000 km de trens de alta velocidade em
apenas vinte anos.
Outro
ponto, que não se trata de um equívoco em si, é o fato de no texto não existir
nenhum dado que demonstre de fato que houve uma restauração capitalista na
China. Valerio Arcary se contradiz ao propor um estudo capaz de entender a tal
da “contrarrevolução social” (sic) sem mudança de regime. Qual o regime
anterior a 1978? Não podemos tratar, também, como equívoco a sua alusão ao
“massacre” da Praça Tiananmen de 1989. Guarda certa ingenuidade não perceber ou
mesmo não se dar ao trabalho de ler os relatórios liberados pela CIA sobre aqueles
acontecimentos.
O
mesmo pode se dizer sobre a comparação entre Deng Xiaoping e Mikhail Gorbachev.
São figuras históricas e políticas antagônicas, inclusive na gramática política
chinesa o homem que destruiu a URSS é tratado como um traidor e idiota (adjetivo
usado por Deng Xiaoping). As reformas econômicas chinesas nada tem a ver com a Perestroika e
a Glasnost.
A primeira legitimou um Estado Socialista e as outras duas foram funcionais à
destruição da primeira experiência socialista de nossa época.
A “burocracia”
Um
dos problemas que identifico nas formulações da corrente política a qual se
afilia o professor Valerio Arcary é um certo universalismo de noções pari passu
a um envelhecimento das mesmas. Por exemplo, o que não se encaixa em um check-list pode
ser considerada “restauração capitalista”. O mesmo se aplica ao conceito
amplamente utilizado, e de forma muito séria e competente por León Trótsky, de
“burocracia”.
É
inescapável em trabalhos de trotskistas o refúgio nessas noções. Aqui eu sugiro
substituir o universalismo (um desvio claramente liberal) pela categoria de
formação econômico-social. O que significa que a burocracia descrita por León
Tróstky, herdeira do czarismo, pouco tem a ver com a burocracia herdeira do
modo de produção asiático.
Evidente
que a tendência da burocratização é o aburguesamento e digo mais, à corrupção.
Esse fenômeno também ocorre na China e é inegável. Não proponho passar por cima
desta contradição, que não se tornou uma “contradição antagônica” na China, mas
observar que essa burocracia simplesmente realiza: retirou 800 milhões de
pessoas da linha da pobreza em 40 anos, construiu 45000 km de trens de alta
velocidade em 20 anos, construiu uma imensa economia baseada no setor público
capaz de rivalizar a colocar de joelhos o capitalismo estadunidense.
E
entrega aumentos salariais nos últimos dez anos acima da inflação, do
crescimento do PIB e da produtividade do trabalho, enquadra e coloca limites na
burguesia, expropria seus bens e delibera pela distribuição ao povo, constrói
um sistema de assembleias populares e de comitês de bairros que foram
fundamentais na mobilização de quatro milhões de profissionais da saúde
voluntários para enfrentar a morte em Wuhan, planeja a destruição criativa
schumpeteriana a ponto de deslocar 200 milhões de chineses do campo às cidades
em dez anos sem o risco de favelização etc. etc. etc.
Esta
burocracia é herdeira da casta de burocratas que exerciam a administração
estatal desde antes de Cristo ocupada com o gerenciamento e execução de imensas
obras públicas. A perda de capacidade desta burocracia em entregar grandes
obras levava massas camponesas influenciadas por Laotsé a derrubar dinastias.
Ao
invés de enveredar a discussões abstratas sobre o “substitucionismo social”
seria mais interessante entender a dialética entre o papel histórico do
camponês chinês, sua capacidade de pressão sobre a burocracia e as razões de a
China não ter sucumbido à contrarrevolução de 1989: os camponeses estavam com o
socialismo e não ladeando com um levante pró-imperialista. Hoje esses
camponeses são trabalhadores urbanos responsáveis por rebeliões de diversa
ordem, colocando contra a parede os herdeiros de Mao Zedong.
Não
se entende a China sem conhecer profundamente sua história. O que significa que
se é atual a velha máxima do “mandato dos céus ser revogável pelo povo”, não é
difícil concluir, conhecendo as minúcias de como aquela sociedade funciona, e a
história dessas minúcias, que se trata de um país onde ceder a frágeis noções
de “país fechado” e “autoritarismo” para descrever um país e sociedade onde o
niilismo não comparece e onde se respira futuro.
“Defesa incondicional de
realizações”?
Em
1949 a expectativa de vida dos chineses era de 35 anos. Hoje ultrapassou os
EUA. As mulheres estavam submetidas ao processo de enfaixar seus pés de forma a
criar uma sinistra forma artística para agradar os homens e hoje ocupam postos
de destaque em todos os âmbitos da sociedade. O Tibet era uma semicolônia
inglesa submetida por uma teocracia escravista e hoje seu padrão de vida
melhora de forma mais rápida que as verificadas em outras regiões do país. A
China derrotou o imperialismo em sua guerra civil e na Guerra da Coreia e hoje
a derrota novamente no campo comercial e tecnológico.
Os
avanços sociais incontestes aprofundados desde 1978, não reduzindo à eliminação
da pobreza extrema, mas também a possibilidade de um camponês pobre ser
submetido a intervenções cirúrgicas complexas e gratuitas há milhares de km de
distâncias por um médico mediado por esquemas de inteligência artificial
deveria por si ser um desmentido ao despautério de apontar na China uma
“contrarrevolução social” quando ocorre simplesmente o oposto e sua realização
não se separa do poder político erigido por uma longa luta revolucionária.
Nenhum
cidadão chinês minimamente informado concordaria com uma afirmação tão irreal
quanto absurda vendo camponeses pobres se transformando em cientistas e uma
vibrante democracia de base enviar mais de 3000 emendas às resoluções da última
Assembleia Popular Nacional. A decadência da ciência social ocidental, que
atinge duramente o marxismo, não está no não reconhecimento dos feitos da
revolução chinesa e sim na elaboração de noções sem nenhuma conexão com aquela
realidade e a igualando com completa miséria extrema que assola um país, esse
sim, de capitalismo dinâmico como a Índia. É o fundo do poço.
Reconhecer
os feitos das revoluções socialistas é um ato de humanismo em um mundo onde a
miséria, a fome e a guerra se tornam a regra. É negar a tendência ao ceticismo
e ao niilismo e uma quase adesão ao racismo; pois é de racismo que se trata
quando lemos os veredictos de intelectuais sem nenhum compromisso com o poder
político e influenciado pela decadência do marxismo ocidental. Não é o caso de
Valerio Arcary, evidente. A humanidade pode vencer e qualquer indicador social
chinês nos demonstra isso.
Seria
“campismo” o reconhecimento desses feitos? Não. Seria demonstração de fé no
futuro. Isso não significa fechar os olhos para as imensas contradições que
afetam a sociedade chinesa. A corrupção, a luxuria, a existência (cada vez
menor) de bilionários e milionários, crise ambiental, fosso social formado por
imensos equívocos de políticas executadas na segunda fase de reformas.
Tudo
isso está apontado em meus livros e artigos sobre
a China. Mas só se cria contradições onde o Partido Comunista se propõe a ser
motor do desenvolvimento. Nada do que ocorreu após 1978 foi planejado
milimetricamente. Não, o que veio foi um gigantesco processo de desenvolvimento
e suas contradições proporcionais a este processo, além do altíssimo preço
deste desenvolvimento.
A
“prova do pudim” de um Partido Comunista no poder está no exercício absoluto de
seu poder sobre todas as esferas da produção, da finança e impor à burguesia o
seu ritmo e objetivos. Afora isso, este teste também se estende à demonstração
de capacidade de o Partido Comunista em perceber a contradição e indicar rumos
à sua superação.
Desafio
alguém me mostrar que o Partido Comunista da China não enfrenta, e está
vencendo e apontando rumos, a todas as contradições criadas pelo seu processo
de desenvolvimento.
Discutindo o socialismo em
nossa época como adultos
A
experiência chinesa, imersa tanto em contradições quanto em ferramentas
políticas e institucionais para enfrentar suas contradições, deveria nos
obrigar não a temer um “campismo” ou nos refugiar em noções criadas na década
de 1930 para compreender os limites da URSS sob a ótica de uma corrente
política derrotada e sem nenhuma experiência pratica de poder político desde
1917. Deveríamos os render a mais abstrações (visão de processo histórico) e
menos prisões no abstrato (visão ideológica e imersa em apriorismos).
Chegou
a momento de discutir a excepcionalidade chinesa enquanto um socialismo com as
características daquela formação histórica que está impondo vitórias sucessivas
ao seu próprio povo e derrotas ao imperialismo vistas somente na 2ª Guerra
Mundial.
É
preciso encarar o objeto e penetrar nele; descobrir as suas regularidades e
coerência interna. Observar como adultos seria colocar todas as contradições
daquele processo em perspectiva de movimento real da mesma forma como
observamos seus encaminhamentos resultando em um país estranhamente capitalista
que nunca passou por uma crise. As estruturas de propriedade baseadas na
propriedade pública e crescente participação de conselhos de trabalhadores em
decisões de investimento, o amplo controle do Partido Comunista sobre o setor
privado.
É
descobrir como após 75 anos de poder político exercido no então país mais pobre
do mundo, hoje observamos essa forma histórica encaminhando soluções tanto às
três questões centrais de nossa época: o desenvolvimento, a paz e a crise
climática. É inescapável não colocar, repetindo, que a base dessas realizações
é o próprio poder político que se propõe a revolucionar a sua sociedade em
saltos qualitativos e fazendo com que a ciência penetre nos poros de seu tecido
social.
No
detalhe, é ir fundo na investigação de como aquela experiência consegue dar
início, meio e fim a todos os projetos as quais ela se propõe. Aqui, percebemos
que a ciência do projetamento criada por Ignacio Rangel se realiza na China sob
diversas formas. Por exemplo, o sucesso de um grande projeto depende da
equalização das estruturas de custo e benefício de todas as cadeias produtivas
envolvidas, por exemplo, no projeto de erradicação da pobreza.
A
prática de construção de mais de cem anos de socialismo no mundo nos coloca a
evidência empírica de que somente o socialismo é capaz de operar essa
equalização e que a mesmo sob o capitalismo hoje é impossível e quando foi
possível (consenso keynesiano) ocorreu às custas de desperdício imenso de
recursos.
O
socialismo ainda está no início de sua trajetória histórica, portanto com
regularidades ainda em construção. Em nossa época, a experiência chinesa pode
nos entregar uma definição de socialismo que a relaciona com a transformação de
ciência em instrumento de governo.
Penetrando
à fundo na experiência, percebemos que o “socialismo com características
chinesas” se distingue dos estados desenvolvimentistas, além da natureza do
poder político e da estrutura de propriedade, pelo fato de dar forma a um
Estado Socialista que absorve a natureza do Estado Desenvolvimentista e a
supera de forma que se demonstre capaz de introduzir contradição no seio do
organismo econômico, gerando movimento e corrida da sociedade empenhada no
exercício de observar “just in time” a matriz
insumo-produto e entregar as soluções institucionais para promover a
transferência intersetorial de recursos.
Está
aí a excepcionalidade chinesa. O contrário seria admitirmos que o capitalismo –
dados os feitos da experiência chinesa – tem um ainda largo caminho
civilizatório pela frente. Precisamos sair do jardim da infância que ainda
domina o debate sobre o socialismo.
*Elias
Jabbour é
professor da Faculdade de Ciências Econômicas da UERJ. Autor, entre outros
livros, junto com Alberto Gabriele, de China: o socialismo do
século XXI (Boitempo) [https://amzn.to/46yHsMp]
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