01 maio 2025

Uma crônica de Cláudio Carraly

Manual de como não planejar a própria vida
Cláudio Carraly* 

O sol incidia pela janela do escritório dele, destacando no ar partículas de poeira dançantes, como se cada uma contasse sua própria história. Sentado à mesa, encarava a tela do computador que piscava em branco, sem que nada fluísse. Foi então que decidiu escrever algo que muitos já tentaram: sobre o caminhar da vida. Mas não se trataria de um relato genérico, era, na verdade, um monólogo íntimo, encenado em atos, de alguém muito próximo. Essa narrativa poderia ser interpretada como uma peça. Contudo, percebeu logo que aquela aventura com roteiro pré-definido — inspirada na já batida “jornada do herói” — não se comportava como previsto. Vinha impregnada de uma realidade cruel, sutil e irônica.

Durante anos, ele alimentou uma convicção quase religiosa de que estava destinado à grandeza. Algo importante, capaz de fazer tremer os alicerces do mundo (ainda que metaforicamente). Que eternizaria seu nome, um legado digno de ecoar pelas gerações, essa ideia não nasceu do nada, desde a infância, ouvira dos pais que era especial, que o mundo aguardava sua chegada com grande expectativa. Acreditou com a fé dos recém-convertidos, mesmo quando as evidências começavam a desmenti-lo. As mensagens internas, antes otimistas, passaram a cada vez mais sussurrar: eles estavam errados!

Sua jornada começou nas brincadeiras lúdicas da infância, quando voava pelos céus com uma toalha amarrada no pescoço, derrotando robôs gigantes e vilões intergalácticos. Acreditava, com a convicção de quem ainda desconhecia a gravidade, que podia voar, e voava. Mas o tempo tratou de soprar as nuvens dessa ilusão. A física revelou-se uma antagonista implacável e apresentou-lhe a lei da gravidade.

A adolescência chegou como um vendaval hormonal e uma certeza tão intensa quanto fugaz, iria tornar-se uma estrela do rock. Visualizava-se incendiando palcos, engolfado por solos estrondosos de guitarra, cantando letras profundas e existencialistas sobre algum tênis da moda ou um novo videogame. Podia ouvir as multidões aplaudindo. Mas o mundo real mostrou-lhe que talento e esforço eram pré-requisitos para tudo, e mesmo os muito talentosos tinham a garantia de sucesso. Seu estrelato pop ficou relegado a um solo de guitarra inaudível, perdido no vazio da realidade.

Na faculdade, enveredou por outro delírio, tornar-se-ia um cientista brilhante, alguém à altura de Newton. Imaginava-se ganhando prêmios Nobel e decifrando os mistérios do universo, mas rapidamente percebeu que a física quântica, com sua lógica incognoscível, e a matemática avançada, com seus símbolos alienígenas, riam da sua pretensão. Sem saída, seguiu o caminho comum dos medíocres e cursou Direito, como dizia Ariano Suassuna, quem não servia para mais nada virava advogado.

Com o passar dos anos, como um andarilho no deserto em busca de um oásis, pulava de sonho em sonho, cada novo projeto parecia o trampolim certo rumo à glória. Mas todos o lançavam apenas para lugares diferentes, ainda que igualmente frustrantes e mais distantes de suas pretensões. Aos quarenta anos, sentado em um belo escritório de alma cinzenta, sob a luz fluorescente que zumbia no teto, foi atingido por uma dolorosa epifania: o "destino grandioso" era uma construção ilusória, sua e de muitos que também acreditavam na virtuosidade latente dele que ora afloraria. Uma farsa bem-intencionada, mas ainda assim uma farsa.

A sensação de ter um propósito especial esfarelava diante dos olhos, esperara por um trem para a glória que jamais chegaria. Enquanto isso, o mundo real passava veloz, como cantava o Clube da Esquina: "o trem da juventude é veloz, quando vai olhar já passou..."

Com a chegada dos cinquenta, passou a ver tudo com uma ironia mais sofisticada, as rugas tornaram-se cicatrizes de batalhas contra os sonhos já devidamente abandonados. Os cabelos brancos já não indicavam declínio, mas um tipo de piada do tempo, a urgência de “fazer a diferença” dera lugar à aceitação cômica da própria irrelevância cósmica.

Os sonhos antigos, antes fontes de angústia, agora lhe traziam uma graça. Observava a vida neste momento como quem vê um filme repetido, mas que de alguma forma ainda nos arranca risos. Percebeu que, ao contrário do protagonista heroico que sempre imaginara ser, estava mais para um coadjuvante num filme B, daqueles que somem antes da metade da história sem ninguém sentir falta na trama.

Na meia-idade, enfrentava um cruzamento sem placas. Sentia-se mais como um balão esvaziado do que como um majestoso dirigível. O espelho devolvia um rosto marcado, não por glórias épicas, mas por escolhas discutíveis e expectativas irreais. A pergunta agora era inevitável: o que fazer quando se passa a vida acreditando estar destinado a algo importante e descobre-se que esse “algo” nunca existiu?

A tentação de afundar na autopiedade era grande e até doce. Poderia lamentar as oportunidades que pensou ter ou que talvez só existiram em sua cabeça, ou as decisões certas que talvez fossem erradas, quem sabe? Poderia chorar as promessas quebradas por tanta gente que ele ajudou, mas ajudara, pois, era o certo a se fazer, e ele era o herói predestinado a isso. Já o retorno das pessoas ajudadas não dependia dele, mas preferiu outra abordagem: decidiu contar a história em uma tragicomédia. Porque, apesar de tudo, o riso, mesmo que amargo, insiste em nascer nas situações mais complexas.

Talvez a verdadeira grandeza resida nos momentos simples e despercebidos, que ele deixou escapar enquanto perseguia desenhos de nuvens no céu. Talvez o destino não seja uma estrada reta traçada por forças superiores, mas um labirinto de curvas, atalhos e becos, que, no fim, forma um caminho único, ainda que inesperado, que nos leva a uma parede ou, quem sabe, um penhasco.

Na verdade, ao abrir mão do papel de herói de uma epopeia imaginária, sentiu-se livre. Desapegado finalmente de um fardo que nem sabia mais como carregar. Rindo das próprias escolhas, reconheceu que todos, no fundo, estão apenas tentando decifrar um enigma, um móvel desmontado que veio sem o seu manual. A grandeza, talvez, esteja em rir da nossa banalidade e da própria inadequação ao mundo. E, por fim, decidiu abandonar o roteiro previsível e improvisar sempre a próxima cena. Porque, afinal, a melhor piada é a que se conta a si mesmo, com plena consciência de que, no final, nada há de dar certo. E tudo bem que seja assim.

*dvogado, ex-secretário executivo de Direitos Humanos de Pernambuco.

[Ilustração: Nikolai Polyankov]

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2 comentários:

Anônimo disse...

Lendo essa passagem pude ver muito de min apesar de não concordar que tanto fracasso possa trazer algum tipo de alívio ou ou felicidade, falando por mim o fracasso só trouxe tristeza e sensação de estar cada vez mais um indivíduo microscópio

Cláudio Carraly disse...

Todos nós sentimos assim. Mas não quis parecer otimista diferente do que lhe pareceu, é que por vezes depois de tantos tropeços me pego a rir e falo comigo mesmo, isso não vai acabar nunca? É da minha natureza o bom humor, até em momentos muito complicados.