06 dezembro 2025

Violência sexista se agrava

Não há mais espaço para normalizar o horror
A brutalidade contra mulheres se expande como crise nacional, atravessando corpos e instituições, e expondo um país que normalizou o intolerável
Fernanda Macedo/Le Monde Diplomatique   


Há uma epidemia de violência de gênero em curso no Brasil. E como toda epidemia, ela se espalha, adoece, normaliza e mata. Mas diferente das demais, esta não é causada por um vírus, e sim por estruturas. Não é acidental, é histórica. Não é inevitável, é produzida, reproduzida e sustentada socialmente.

A semana que passa expôs, mais uma vez, os contornos brutais dessa crise que se alastra em cenas públicas e privadas, atravessa corpos e instituições, e confirma que a misoginia no país não é desvio: é sistema.

No último sábado, o país testemunhou um episódio que ultrapassa a fronteira do suportável. Um homem atropelou uma mulher com quem supostamente mantinha relacionamento na saída de um bar. Há vídeos, muitos, mostrando o momento em que Tainara Souza Santos foi arrastada por centenas de metros, da Avenida Morvan Dias de Figueiredo até a Rua Manguari, próximo à Marginal Tietê. 

Testemunhas relataram à polícia que o agressor conhecia a vítima, que discutiram no bar instantes antes, uma dinâmica já conhecida pela literatura criminológica sobre violência baseada em gênero. O resultado é devastador: Tainara teve as pernas amputadas, permanece em estado gravíssimo e precisará passar por novas cirurgias.

Se comprovada a intenção, estamos diante de um crime bárbaro, brutal e misógino – mais um registrado em um país onde mulheres seguem sendo alvo preferencial da violência letal e não letal.

Mas a violência não se limita às ruas. 

Na mesma semana, uma professora, mestre em Direito, foi intimidade por um aluno homem em sala de aula, após confrontá-lo por ter comportamento inadequado durante a aplicação de um exame. Ele a agrediu verbalmente, desrespeitando sua autoridade acadêmica, profissional e humana. Só não chegou às vias de fato porque outros alunos intervieram. A sala se converteu em arena. O que deveria ser espaço de conhecimento transformou-se, diante de todos, em palco da hierarquia de gênero naturalizada.

Esses casos não são exceção, são sintoma.

No campo da saúde pública, epidemia é o aumento súbito e descontrolado de casos de uma determinada doença em um período curto. Mas sua dimensão conceitual vai além: epidemia é também um fenômeno que se espalha rapidamente, contamina ambientes diversos e se torna maior do que os mecanismos de contenção existentes.

Quando olhamos para a violência de gênero no Brasil, doméstica, sexual, psicológica, institucional, acadêmica, policial, midiática, logo percebemos que todos esses critérios se aplicam. Temos uma escalada contínua, casos se multiplicando, respostas insuficientes e uma normalização social que garante a perpetuação.

A epidemia se instala quando o Estado falha na prevenção, quando as instituições reproduzem desigualdades, quando a sociedade minimiza o risco e quando o agressor conta com a certeza da impunidade.

A violência contra mulheres no Brasil não é apenas individual. Ela se manifesta:

No âmbito pessoal, em relacionamentos marcados por controle, ciúme, humilhação e tentativas de feminicídio.

No âmbito institucional, quando espaços de educação, saúde, justiça e trabalho falham em proteger ou, pior, expõem e silenciam mulheres.

No âmbito estrutural, na manutenção de discursos e práticas que legitimam a misoginia, culpabilizam vítimas e protegem agressores.

É um ciclo completo. Um sistema fechado. Uma engrenagem que funciona com precisão matemática.

O que aconteceu com Tainara poderia ter acontecido com qualquer mulher. O ataque à professora poderia ter sido contra qualquer profissional que ousasse ocupar um espaço historicamente masculino. E o que assistimos hoje se soma a milhares de outras histórias que não chegam às manchetes, mas seguem destruindo vidas, famílias e futuros.

A epidemia está aí, e não será controlada com silêncio, relativização ou notas de repúdio.

É preciso nomear a misoginia. Enfrentar a violência. Responsabilizar agressores. Estruturar políticas sérias. E reconstruir instituições que não apenas punam, mas impeçam que mulheres continuem sendo feridas por simplesmente existirem.

E cada caso que assistimos não é exceção: é aviso.

Dra. Fernanda Macedo é especialista em ciências criminais pela UERJ, advogada da Gestão Kairós e professora no MBA do IBMEC.

Foto: Ramiro Furquim

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Leia também: Face cruel da opressão de gênero https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/12/violencia-contra-mulher.html 

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