Não há mais espaço para normalizar o horror
A brutalidade contra mulheres se expande como crise nacional, atravessando corpos e instituições, e expondo um país que normalizou o intolerável
Fernanda Macedo/Le Monde Diplomatique
A semana que passa expôs, mais uma vez, os contornos brutais dessa crise que se alastra em cenas públicas e privadas, atravessa corpos e instituições, e confirma que a misoginia no país não é desvio: é sistema.
No último sábado, o país testemunhou um episódio que ultrapassa a fronteira do suportável. Um homem atropelou uma mulher com quem supostamente mantinha relacionamento na saída de um bar. Há vídeos, muitos, mostrando o momento em que Tainara Souza Santos foi arrastada por centenas de metros, da Avenida Morvan Dias de Figueiredo até a Rua Manguari, próximo à Marginal Tietê.
Testemunhas relataram à polícia que o agressor conhecia a vítima, que discutiram no bar instantes antes, uma dinâmica já conhecida pela literatura criminológica sobre violência baseada em gênero. O resultado é devastador: Tainara teve as pernas amputadas, permanece em estado gravíssimo e precisará passar por novas cirurgias.
Se comprovada a intenção, estamos diante de um crime bárbaro, brutal e misógino – mais um registrado em um país onde mulheres seguem sendo alvo preferencial da violência letal e não letal.
Mas a violência não se limita às ruas.
Na mesma semana, uma professora, mestre em Direito, foi intimidade por um aluno homem em sala de aula, após confrontá-lo por ter comportamento inadequado durante a aplicação de um exame. Ele a agrediu verbalmente, desrespeitando sua autoridade acadêmica, profissional e humana. Só não chegou às vias de fato porque outros alunos intervieram. A sala se converteu em arena. O que deveria ser espaço de conhecimento transformou-se, diante de todos, em palco da hierarquia de gênero naturalizada.
Esses casos não são exceção, são sintoma.
No campo da saúde pública, epidemia é o aumento súbito e descontrolado de casos de uma determinada doença em um período curto. Mas sua dimensão conceitual vai além: epidemia é também um fenômeno que se espalha rapidamente, contamina ambientes diversos e se torna maior do que os mecanismos de contenção existentes.
Quando olhamos para a violência de gênero no Brasil, doméstica, sexual, psicológica, institucional, acadêmica, policial, midiática, logo percebemos que todos esses critérios se aplicam. Temos uma escalada contínua, casos se multiplicando, respostas insuficientes e uma normalização social que garante a perpetuação.
A epidemia se instala quando o Estado falha na prevenção, quando as instituições reproduzem desigualdades, quando a sociedade minimiza o risco e quando o agressor conta com a certeza da impunidade.
A violência contra mulheres no Brasil não é apenas individual. Ela se manifesta:
No âmbito pessoal, em relacionamentos marcados por controle, ciúme, humilhação e tentativas de feminicídio.
No âmbito institucional, quando espaços de educação, saúde, justiça e trabalho falham em proteger ou, pior, expõem e silenciam mulheres.
No âmbito estrutural, na manutenção de discursos e práticas que legitimam a misoginia, culpabilizam vítimas e protegem agressores.
É um ciclo completo. Um sistema fechado. Uma engrenagem que funciona com precisão matemática.
O que aconteceu com Tainara poderia ter acontecido com qualquer mulher. O ataque à professora poderia ter sido contra qualquer profissional que ousasse ocupar um espaço historicamente masculino. E o que assistimos hoje se soma a milhares de outras histórias que não chegam às manchetes, mas seguem destruindo vidas, famílias e futuros.
A epidemia está aí, e não será controlada com silêncio, relativização ou notas de repúdio.
É preciso nomear a misoginia. Enfrentar a violência. Responsabilizar agressores. Estruturar políticas sérias. E reconstruir instituições que não apenas punam, mas impeçam que mulheres continuem sendo feridas por simplesmente existirem.
E cada caso que assistimos não é exceção: é aviso.
Dra. Fernanda Macedo é especialista em ciências criminais pela UERJ, advogada da Gestão Kairós e professora no MBA do IBMEC.
Foto: Ramiro Furquim
[Qual a sua opinião?]
Leia também: Face cruel da opressão de gênero https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/12/violencia-contra-mulher.html

Nenhum comentário:
Postar um comentário