Luís Nassif, Jornal GGN
O
desafio é explicar um golpe que tem, na ponta da fiscalização do TCU (Tribunal
de Contas da União) personagens como Aroldo Cedraz e Augusto Nardy, na ponta
política, Michel Temer, Romero Jucá, Eduardo Cunha, Aécio Neves e José Serra
todos envolvidos em inúmeras denúncias de irregularidades e de uso político
indevido do cargo. E, na ponta processual o Procurador Geral da República
Rodrigo Janot e o Ministério Público Federal, na ponta jurídica Gilmar Mendes e
Dias Toffoli falando em nome da moral e dos bons costumes.
Como
se explica que a moral e os bons costumes tenham se aliado ao vício para
implantar o reino dos negócios escusos?
Hoje
em dia, está claro que a disputa não é entre Dilma e Aécio, PT e PSDB, mas por
modelos de país e pelo assalto ao orçamento e ao patrimônio público. A aliança
Temer-Janot permitirá ao novo grupo de poder destruir políticas sociais,
desmontar o modelo de exploração do pré-sal, vender ativos públicos, ampliar os
gastos públicos através das emendas parlamentares. É um pacto de negócios.
A
grande questão é como um país, entre as dez maiores democracias do globo, com
uma tradição cultural, histórica, permite que se destrua o ponto central da
democracia – o voto popular – por uma frente desse nível. Mais do que uma
tragédia, é uma humilhação!
Peça
1 - as grandes ondas globais
O
primeiro passo é minimizar o papel do caráter humano nas grandes definições
políticas. Caráter é matéria rara, pouco disponível, que permite grandes gestos
individuais, mas que raramente consegue segurar a onda.
As
ondas que se movem no século 21 são conhecidas:
1.
A desconfiança em relação à política.
2.
A tentativa de substituir o Executivo pelo Banco Central e o voto popular pelas
corporações do Estado.
3.
Os interesses empresariais na política, através do financiamento de campanha.
5.
A xenofobia, como reação às políticas de inclusão e às ondas migratórias.
6.
A partir de 2008, todos esses processos agravados pela crise mundial com o fim
do sonho neoliberal e pelas tentativas de desmontar Estados de bem-estar
social.
É
um movimento que ressuscita a ultradireita norte-americana, os partidos de
direita radical nos principais países da Europa, açula o terrorismo religioso e
o terrorismo de Estado, ameaça as liberdades civis e as próprias conquistas da
civilização.
Tanto
nos Estados Unidos quanto por aqui, os grupos de mídia não são os agentes
deflagradores desse estado de coisas. São apenas grupos oportunistas valendo-se
desses movimentos em proveito próprio, comercial ou político, mas amplificando
a radicalização.
Para
enfrentar o avanço das empresas de telecomunicações e das redes sociais, os
grupos de mídia organizaram-se em cartel visando um maior protagonismo
político, que lhes dessem condições de administrar sua sobrevivência em tempos
bicudos. Historicamente, ondas de intolerância sempre foram a arma principal da
mídia, permitindo explorar o fantasma do inimigo externo ou interno, como fator
de unificação das ações e dos discursos.
É
nesse contexto que se abre espaço para a campanha em torno da AP 470 e, depois,
para a campanha do impeachment, que surge alimentado pelo estado de espírito
geral revelado pelas manifestações em 2013.
Peça
2 – os personagens e as circunstâncias
Na
física e na química, estudam-se os fenômenos de uma perspectiva radical: tem-se
uma molécula; basta mudar um átomo de sua composição para se transformar em um
novo corpo. As ciências sociais, políticas e econômicas não têm por hábito
analisar processos de ruptura. Tratam os fenômenos sociais e políticos – e seus
personagens – como processos contínuos e progressivos.
À
chegada ao poder muda as pessoas, pelo deslumbramento, pela perda dos
referenciais anteriores. Muitos não conseguem aceitar que, antes de chegar ao
poder, eram cidadãos comuns, sem nenhum traço nobiliárquico. Para os espíritos
mais fracos, ocorre quase uma negação do passado anterior à chegada ao poder.
Vale
para políticos, empresários, artistas, Ministros do Supremo e procuradores,
vale para o sujeito que ganhou na loto.
Analise-se
a trajetória de um Ministro do STF (Supremo Tribunal Federal)/
No
momento -1, ele é súplice. Faz romarias aos gabinetes de deputados e senadores,
corteja lideranças políticas e jurídicas, busca padrinhos políticos. No momento
+1, torna-se senhor absoluto da sua vida, irremovível de seu cargo, blindado
contra qualquer força política, mesmo do presidente da República e com poderes
inacessíveis a qualquer outro brasileiro, que não seus colegas de Supremo.
O
que garante a coerência a esse personagem? O caráter.
Não
dividirei as pessoas entre os com e os sem caráter. Para evitar maniqueísmos ou
ferir suscetibilidades, melhor dividi-los entre os de caráter inflexível e os
de caráter adaptativo.
Por
trás de sua educação e lhaneza, Ricardo Lewandowski tem esse caráter
Inflexível, assim como Teori Zavaski e sua sisudez, Marco Aurélio de Melo e sua
independência e Gilmar Mendes e sua falta de limites. Sim: Gilmar Mendes,
absolutamente coerente com seus princípios, atropelando normas de conduta,
processos, em nome de suas lealdades e em defesa de sua turma. É o mais
deletério personagem jurídico da história recente. Mas tem caráter.
No
outro campo, do caráter adaptativo, dos que se transformam com a chegada ao
poder, podem ser incluídos tipos folclóricos, como o senador Magno Malta ou
Cristovam Buarque, Ministros ou ex-Ministros do STF, como Luiz Fux, Ayres Brito
e Carmen Lúcia. Certamente o PGR Rodrigo Janot.
Mencionam-se
aqui os destacados, porque a média é adaptativa. E adaptam-se por razões das
mais variadas.
Tome-se
o ex-Ministro Ayres Brito.
Em
tempos não muito distantes, o ex-Ministro Ayres Brito e a atual Ministra Carmen
Lúcia eram os prediletos do jurista Celso Antônio Bandeira de Mello, guru maior
das esquerdas jurídicas. Ah, e Michel Temer era e continua sendo seu melhor
amigo.
Um
juiz garantista que fez carreira no Piauí, humilde, modesto, chega ao Supremo
e, de repente, escancaram-se para ele os holofotes da mídia. Mefistófeles leva
Ayres até a montanha e desafia: “Comigo você terá as glórias que nunca teve
antes, o reconhecimento de sua reputação de poeta, o aplauso das pessoas na
rua. Sem mim, o escândalo do seu genro”.
Ayres
nem vacilou. Imediatamente protagonizou o capítulo do STF que liquidou com o
direito de resposta, transformou-se no mais intimorato defensor dos grupos de
mídia tradicionais e pode saborear a fama. Até hoje o bravo Celso Antônio tenta
entender o que aconteceu com seu pupilo.
Para
outros Ministros, mais tímidos, sérios (no plano dos negócios públicos) seu
preço é o espaço eventual nas manchetes nos momentos de apoteose em que
experimentam o supremo gozo de exprimir o que pensa a maioria.
O
episódio Rodrigo Janot é mais didático, e vale aqui uma comparação com os
ex-Ministro Katia Abreu e Armando Monteiro para deixar mais nítidas as
comparações entre o caráter inflexível e o caráter adaptativo.
Até
alguns anos atrás, Rodrigo Janot era num bravo esquerdista, que pavimentou a
carreira assessorando algumas referências de direitos humanos no MPF, por
votação dos seus pares, por suas relações com o petismo, e pela a disposição
com que lançava palavras de ordem retóricas contra o avanço da direita,
impressionando e entusiasmando os aliados. Estava, sem dúvida, à esquerda de
seus gurus: Cláudio Fonteles e Wagner Gonçalves. Cultivou a amizade de José
Genoíno, visitou Dirceu no hotel no qual recebia autoridades políticas.
Por
seu lado, Kátia Abreu sempre foi uma direitista convicta; Armando Monteiro um
industrialista convicto. Ambos, portanto, líderes de setores eminentemente
anti-Dilma. Para eles, defender Dilma não apenas não significaria nenhum ganho
ou barganha (posto que uma presidente deposta), como os indisporia perante seu
meio.
Mesmo
assim, na sessão do Senado, ambos – Kátia e Monteiro – tiveram o belo gesto de
reconhecer as virtudes do governo Dilma em relação aos seus setores.
Quando
a onda virou, Janot autorizou o vazamento de grampos em Lula e vestiu a capa da
indignação quando Lula lembrou sua ingratidão. Disse que devia sua carreira a
ele próprio (Janot) e ao concurso público. Em nenhum momento teve o belo gesto
de reconhecer que devia a Lula e Dilma a absoluta liberdade de atuação do MPF,
Polícia Federal e da PGR e sua indicação à PGR. Dia desses fui almoçar em um
restaurante na Bela Cintra e lá me apontaram uma mesa: foi ali que Janot
almoçou com Lula, para pedir sua benção para a indicação a PGR.
Dá
para entender a diferença?
O
jogo é mais hipócrita. Há os vendavais que chacoalham os céus e os caráteres
adaptativos vão se reorganizando como as nuvens. Venta-se à esquerda, adapta-se
ao vento. O vento muda de direção? As nuvens do céu se reorganizam.
Tome-se
o caso de Ela Wiecko, uma subprocuradora notável, uma das referências do MPF na
área de direitos humanos. Ficou na lista tríplice dos mais votados. Seu
trabalho consistia em levar adiante sua missão, plantando sementes de
civilização por onde passou. Mas não batia bumbo nem apregoava sua condição de
progressista. Não levou. O cargo ficou com Janot.
Ontem
a revista Veja revelou que Ela estava em Portugal em
uma manifestação que ocorreu na Universidade contra Temer.
Ela,
talvez o mais precioso ativo do MPF, foi tratada como descartável
por
Robalinho, presidente da ANPR
Por ser de um caráter inflexível, Ela pediu demissão do cargo de
subprocuradora. Por ser de caráter adaptativo, Janot aceitou. E a ANPR
(Associação Nacional dos Procuradores da República) apoiou a saída em carta ao
blog O Antagonista, que é a melhor expressão do que se tornou o MPF.
Suponha-se que os ventos ainda estivessem soprando na direção
das políticas sociais, das práticas civilizatórias, da tolerância. Qual teria
sido o papel de Janot e da ANPR? Certamente, de hipotecar total solidariedade a
Ela, tratando-a como merecia: um ativo valiosíssimo do Ministério Público.
Nem se condene Janot, José Cavalcanti Robalinho (da ANPR) e
outros: eles são humanos, demasiadamente humanos, aliás. Não vieram para tentar
conduzir as ondas, mas para entender seus movimentos e surfar, se adaptando às
marés da política. Eles representam a média. São "malacos" e se
orgulham de sua esperteza.
No curto prazo, a sociedade não se rege por belos gestos, pelo
poder disseminador do bom exemplo. Se a falta de escrúpulos levar à vitória, aos
vitoriosos será assegurada a devida revisão biográfica e os maus gestos
condenados ao esquecimento.
A médio prazo, o jogo é outro.
Peça 3 – os próximos passos
Com Dilma cassada, haverá uma nova rodada do chamado porre dos
vencedores.
O jogo da Lava Jato será contido por duas ações paralelas:
STF – Os processos da Lava Jato estão
sendo julgados pela 2a Turma,
que estava desfalcada porque já haviam passado sete meses da aposentadoria de
Joaquim Barbosa e Dilma ainda não tinha indicado o substituto. Para preencher a
turma, Dias Toffoli se ofereceu para sair da 1a para a 2a Turma. Como nenhum outro Ministro se
ofereceu, transferiu-se e assumiu a presidência. Quem planejou toda a
operação? Gilmar, claro (https://is.gd/DDliEo).
No dia 31 de maio passado terminou o mandato de Toffoli e Gilmar
assumiu a presidência da 2aTurma. Atualmente, compõem a 2a Turma Gilmar, Toffoli, Carmen Lúcia,
Celso de Mello e Teori Zavascki. Ontem, Gilmar Mendes defendeu que caberá ao
STF balizar as delações. É questão de tempo para tirar do MPF o poder de que
dispõe hoje em dia.
O último lance se dará nos próximos dias. Antes do fim da gestão
Ricardo Lewandowski, a próxima presidente Carmen Lúcia trocará de turma com
Luiz Fux, que passará a compor a maioria com Gilmar e Toffoli.
Aí se entenderá melhor o significado da expressão “matar no
peito”.
MPF –
o jogo de cena em torno da capa de Veja com o factoide sobre Dias Toffoli
permitiu ao PGR realinhar a tropa. Na segunda-feira todos os membros da
força-tarefa assinaram um comunicado endossando a atitude de Janot de suspender
a delação de Léo Pinheiro, ex-presidente da OAS. No material divulgado na
última edição de Veja, havia um
pré-acordo de delação pelo qual Pinheiro se comprometia a revelar os esquemas
de pagamentos (em dinheiro vivo ou em contas no exterior) de Aécio Neves e José
Serra. Provavelmente os inquéritos andarão em marcha lenta. Mais à frente, com
os poderes devidamente podados pela ofensiva Temer-Gilmar, os bravos procuradores
terão bastante tempo para analisar a aventura imprudente em que meteram o MPF.
Peça 4 – os desdobramentos no médio prazo
Nos próximos meses, no plano jurídico-policial se terá a
ampliação da ofensiva contra os críticos do novo regime – ofensiva que já está
a pleno vapor. O governo Temer está se valendo de todas as armas que dispõe,
como utilizar a Anatel para inviabilizar emissoras alternativas e a Secom para
comprar o apoio dos grupos de mídia. Na Lava Jato, nas conversas prévias com os
delatores, não gravadas, alguns deles são instados a incluir nomes de
advogados, jornalistas e críticos em geral da operação.
Não se tenha ilusões sobre a escalada fascista.
Ao mesmo tempo, a cabeça fervilhante de Gilmar Mendes certamente
já está a mil por hora definindo estratégias para o governo Temer aproveitar o
lapso democrático e enquadrar definitivamente o MPF, os tribunais superiores e
o Supremo, planejando as próximas nomeações.
Durante algum tempo será possível impor uma narrativa
salvacionista para o golpe, ainda mais contando com a aliança fechada com a
Globo.
Em que pese a predominância do oportunismo no curto prazo, a
moral ainda é o grande fator unificador das sociedades civilizadas. Não é
possível conviver eternamente com a mentira, a hipocrisia.
A não ser que se desacredite totalmente do Brasil, como nação
civilizada, que se ignore o que foi plantado nesses séculos, Machado de Assis,
Villa-Lobos, Sérgio Buarque, Gilberto Freyre, Antônio Cândido, que se ignore os
compositores populares, os homens que cantaram a alma do país, Ary, Tom,
Cartola, Chico, Caetano, Paulinho, a não ser que se esqueça Campos e Furtado,
Merchior e Wanderley, os homens que à esquerda e à direita ajudaram na
construção da Nação, será impossível acreditar na perenização desse golpe.
Um país que deu Paulo Brossard não pode terminar em Magno Malta,
que deu João Mangabeira não pode resultar em Janaina Paschoal, que deu Miguel
Reali, pai, não pode se contentar com Reali filho, que deu Faoro, Pertence,
Fonteles, não pode incensar Janot, que deu Juscelino, não pode aceitar Temer.
A cada dia que se afastar a imagem do inimigo externo, as
tolices sobre chavismo e outras bobagens se diluirão e cairão da face da nação
como as maquiagens dos palhaços após a função. No início, timidamente, depois
mais fortemente a consciência cívica começará a despertar novamente e a se
manifestar. Até a velha mídia, nos seus estertores, se dará conta de que não há
difusor de notícia que resista à falsificação, à mentira. E aí se começará a
reconstrução democrática, as reações contra o arbítrio, a montagem de um novo
modelo sem os vícios do presidencialismo de coalizão, sem os financiamentos de
campanha, sem a hipocrisia do jogo político convencional.
O grande desafio será a resistência ao arbítrio até que essa noite
turbulenta passe.
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