04 maio 2020

Poesia de resistência


Os descanteiros
Marcelo Mário de Melo
(Aos pobres que agonizam sem socorro e aos corpos insepultos na pandemia)
Feito couraça
o coração se acostuma
à dor
à morte alheia
anônima
fria
estatística
que desgermina
dessementeiras
do ter
não ter.

Desflorações plurais
de largo fôlego
e antigo tempo escravo
descanteiros múltiplos
irrigados em sangue
abrindo leques.

As dessementeiras
dão sinais
rotas rotinas
nas ruas da cidade
pulsações de dor
múltiplicadas
em preto e branco
desvivendas periféricas
à margem
e no centro
catadores
de emprego e lixo
mendicantes
e ensaios
de empreendedorismo
de corda no pescoço
por esquinas e cruzamentos
juntando moedas
para uma rejeição.

Mas há momentos
em que os frutos podres
dos descanteiros
se exacerbam
nas filas de espera
de corpos agonizantes
e cadáveres insepultos.

Aí então
na couraça-coração
faz-se uma fenda
e brotam
lágrimas de sangue
a cada dor
a cada vida.

E se vão irrigando
mesmo que em sonho
e gesto frágil
canteiros sãos
onde vicejam
flores ao sol
sem dor nem morte.

* Do livro em andamento Poesiavírus

[ILustração: Lasar Segall]

Fique sabendo https://bit.ly/2Yt4W6l

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